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Criminalização do stealthing: O mais do mesmo na deficiente proteção penal da vítima de crimes sexuais

Aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, o PL 965/22 busca criminalizar o "stealthing" no Brasil, podendo uniformizar o tratamento legal do aborto decorrente de crime sexual, beneficiando possíveis condenados sob a legislação atual.

23/2/2024

A recente aprovação, no final do ano passado, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados do PL 965/22, que pretende criminalizar expressamente a prática do stealthing no Brasil, deveria dar a oportunidade ao Congresso para uniformizar o tratamento dado ao aborto decorrente de crime sexual no ordenamento jurídico nacional.

O projeto em questão, de autoria do deputado delegado Marcelo Freitas, prevê a adição de um artigo 215-B ao Código Penal Brasileiro, estipulando pena de seis meses a dois anos de detenção para a conduta de “Remover propositalmente o preservativo, durante o ato sexual, ou deixar de colocá-lo, sem o consentimento do parceiro ou da parceira.”

A bem da verdade, parcela da doutrina e jurisprudência1 já vinham formando entendimento de que esta conduta poderia amoldar-se ao tipo penal previsto no art. 215 do Código Penal, tratando-se de violação sexual mediante fraude2, cuja pena é inclusive mais gravosa, de dois a seis anos de reclusão. De tal sorte, o projeto de lei, se aprovado, poderia até mesmo considerar-se nova lei penal benéfica, beneficiando eventuais condenados por essa conduta pela lei penal atual.

Todavia, a questão que queremos abordar no presente artigo envolve direitos reprodutivos femininos e a eterna questão de como a solução punitiva quase sempre faz-se de cega e surda para ações que efetivamente podem proteger e garantir direitos dos afetados pela conduta criminosa, privilegiando sempre e apenas o aumento de penas e de condutas incriminadas.

Ora, para isso, demos uma olhada primeiro na justificação do projeto de lei:

O que se pretende com o presente projeto de lei é a tipificação da conduta de ter relação sexual com alguém, de forma diferente da consentida, por meio de uma verdadeira enganação ou ato que contrarie ou distorça a vontade da vítima. Ainda que a relação tenha sido, inicialmente, consentida, a partir do momento em que o autor retira ou deixa de colocar o preservativo, sem o consentimento da outra pessoa, muda a situação de fato, passando a relação sexual a ser abusiva, por não contar com o consentimento da parceira ou do parceiro.

Sem uma legislação específica tratando do tema, pessoas que, de fato, são abusadas sexualmente, continuarão sem o amparo que deveriam receber de nossa sociedade. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2022)

Agora, confiramos alguns trechos do parecer do relator do projeto na CCJ da Câmara, Deputado Felipe Francischini (União-PR):

“Stealthing", palavra inglesa que em tradução livre significa “furtivo”, é o termo utilizado para descrever a ação de remover o preservativo durante o ato sexual sem o conhecimento ou consentimento da parceira, ou do parceiro. Inicialmente, o ato sexual é acordado com a condição de uso do preservativo, mas o agressor, de forma enganosa, faz a vítima acreditar que está ocorrendo um ato sexual seguro. Em seguida, ele dissimula e retira a proteção sem a autorização, o que gera o vício no consentimento da relação sexual.

Em síntese, há muitos desdobramentos da prática do stealthing, tendo como principais, a transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis DST’s e/ou uma gravidez indesejada. No primeiro caso, o desconhecimento da vítima, na relação em que houve a remoção do preservativo, a impede de buscar assistência médica imediata, a fim de mitigar ou eliminar o risco de contrair doenças. No segundo caso, ainda mais grave, o desconhecimento impede a vítima de buscar contraceptivos de emergência e evitar uma gravidez indesejada.

(...) Noutro giro, o inciso III do art. 7 da lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), prevê como forma de violência sexual, no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, a restrição ao uso de métodos contraceptivos, podendo ser identificado o stealthing nesse tipo de conduta, vejamos:

“Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

...

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;”

Nesse sentido, não há dúvidas que a prática do stealthing constitui grave violação de direitos fundamentais da pessoa, o que torna necessária uma atuação firme e proporcional do Direito Penal, como forma de prevenção e repressão desse tipo de conduta. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2023)

Pois bem, vemos claramente que tanto a justificação do projeto quanto o parecer do relator salientam o caráter abusivo da conduta, deixando claro que o consentimento da mulher para o ato está viciado, impedindo-a de exercer seus direitos sexuais e reprodutivos e de evitar uma gravidez indesejada através do uso de contraceptivos. Diante disso, a pergunta que não quer calar é: porque não consta do projeto a possibilidade de interrupção da gestação à mulher vítima do crime?3

A atual redação do inciso II do art. 128 do Código Penal, a mesma desde sua criação em 1940, estabelece que não é punível o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro, o que gerou ao longo de décadas debates doutrinários sobre sua aplicação a outros crimes sexuais, como o antigo delito de atentado violento ao pudor, por exemplo, antes de sua incorporação ao tipo penal de estupro, em 2009. Embora o texto refira-se expressamente ao crime de estupro, há posicionamento daqueles que entendem pela possibilidade de analogia in bonan partem para outros crimes sexuais4, enquanto outros a rechaçam5, gerando insegurança jurídica à mulher vitimizada.

A manutenção do projeto, sem alteração do atual status quo, inclusive, pode levar à seguinte situação, a nosso ver absurda: caso a mulher vítima do stealthing procure interromper a gravidez, tanto ela quanto o médico que porventura lhe atenda estão sujeitos a penas maiores (um a três e um a quatro anos de prisão, respectivamente) do que a aplicável ao homem que de forma reconhecidamente criminosa provocou a gestação indesejada!

Trata-se, pois, de excelente oportunidade para o legislativo tratar dessa questão quando da votação do projeto em plenário, quiçá permitindo a uniformização de acesso ao aborto legal a todos os crimes sexuais, de forma a realmente, como consta na justificativa do projeto, dar às mulheres o amparo que deveriam receber de nossa sociedade e não só a ilusão da punição simbólica.

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DIREITO PENAL. APELAÇAO CRIMINAL. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ART. 215 DO CÓDIGO PENAL). ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PALAVRA DA VÍTIMA FIRME, COESA E VEROSSÍMIL. Recorrente que de forma dolosa e sorrateiramente, retirou o preservativo durante o segundo ato sexual, sem que a vítima percebesse. Stealthing configurado. Afastamento da indenização fixada à vítima (artigo 387, inciso IV, do CPP). Impossibilidade. Pedido expresso na denúncia. Valor que se mostrou adequado diante das circunstâncias fáticas e das condições socioeconômicas das partes. Sentença mantida. Recurso conhecido, porém desprovido, em consonância com a procuradoria de justiça. (TJRR; ACr 0814816-73.2021.8.23.0010; Câmara Criminal; Rel. Des. Luiz Fernando Mallet; Julg. 31/08/2023; DJE 01/09/2023)

2 NAVES, 2022. p. 739.

3Irônico que a ementa do projeto afirma o seguinte: “Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, acrescentando o artigo 215-B, a fim de tipificar o ato de remoção proposital de preservativo, sem o consentimento do parceiro ou da parceira, "stealthing", e dá outras providências.” Que outras providências existem? Nenhuma.

4 NAVES, 2022, p. 447-448. No mesmo sentido: DE SOUZA, 2021. p. 113.

5 Gonçalves, 2019. p. 181.

BRASIL ONLINE.  Comissão aprova pena de prisão para quem tirar camisinha sem consentimento. 2023. Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/entretenimento/2023/09/27/prisao-stealthing-tirar-camisinha-sem-consentimento.htm. Acesso em 28 set 2023.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 965 DE 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2159319&filename=PL%20965/2022. Acesso em 28 set 2023.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PRL n. 1 CCJC (Parecer do Relator), pelo Deputado Felipe Francischini (União/PR). Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2309355&filename=Tramitacao-PL%20965/2022. Acesso em 29 set 2023.

DE SOUZA, Luciano Anderson. Direito penal: volume 2: parte especial: arts. 121 a 154-B do CP [livro eletrônico]. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.P. 113.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Curso de direito penal: parte especial (arts. 121 a 183) – volume 2. 3. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. P. 181.

NAVES, José Paulo Micheletto. Dos crimes contra a dignidade sexual. In: De SOUZA, Luciano Anderson (coord.) Código Penal Comentado. 2ª ed. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2022. p. 739.

Filipe Knaak Sodré
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestre em Ciências Criminológico-forenses pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales de Buenos Aires, na Argentina, é presidente e cofundador do Instituto Capixaba de Criminologia e Estudos Penais (ICCEP) e autor do livro "O Direito Penal e a Vingança do Leopardo", publicado pela Núria Fabris Editora em 2011.

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