Nos últimos anos o Tema 210 de repercussão geral tem sido alvo de uma intensa discussão, especialmente entre os que atuam entre o Direito dos Seguros e o Direito dos Transportes. Até aí nenhuma novidade. Já escrevemos bastante a respeito dele, posicionando-nos com firmeza sobre alguns de seus pontos, em parte sob a perspectiva do mercado segurador, em parte motivados por um profundo interesse acadêmico.
Acertou, sim, o STF ao dizer que é a Convenção de Montreal, e não o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que se aplica às disputas entre passageiros e empresas aéreas de transportes nas viagens internacionais. Acertou em reconhecer a possibilidade de limitar a responsabilidade das transportadoras pelos danos e prejuízos decorrentes de extravios de bagagens.
O primeiro acerto se funda na própria natureza da Corte Constitucional. O Brasil assinou a Convenção de Montreal, ratificou-a e a inseriu em seu ordenamento jurídico. No caso em questão (o de transporte de passageiros), é de se compreender a primazia da Convenção Internacional sobre a lei nacional, ainda que complementar e principiológica.
O segundo acerto, indissociavelmente ligado ao primeiro, é, chamemos assim, ontológico. Raramente o passageiro tem como provar o que realmente continha a bagagem que se extraviou durante o voo, de tal forma que, até para evitar os mais abusos mais oportunísticos, a limitação se revela como um cuidado importante, como mecanismo de calibragem jurídico que guarda certa intimidade com a Teoria da Preservação da Empresa.
O princípio (e a presunção) da boa-fé objetiva é poderoso, mas não absoluto.
Por isso, e a despeito do que já escrevemos antes, consideramos dignos de aplausos o enunciado e o propósito do Tema. Não há discordância quanto a nenhuma de suas vírgulas.
O que temos defendido, porém, é muito simples: é preciso fazer o distinguishing em relação aos casos de danos em cargas e/ou aos litígios protagonizados por seguradores sub-rogados nas pretensões originais dos seus segurados, os donos dessas mesmas cargas, normalmente pessoas jurídicas de direito privado.
Razões de ser diferentes reclamam tratamentos jurídicos diferentes. E, como se fará notar, o STF tem percebido isso.
O transporte de cargas é bem distinto do transporte de passageiros, e essa diferença não pode ser desprezada, ou com isso algumas injustiças graves serão facilmente cometidas. Diferentemente das bagagens, as cargas perdidas (avariadas ou extraviadas, total ou parcialmente) têm valores prévia e formalmente conhecidos pelos transportadores, a despeito do recolhimento ou não do chamado frete ad valorem.
Em razão do pleno conhecimento que os transportadores têm sobre o valor do que transportam, uma declaração formal que implica pagamento muito maior de frete torna-se irrelevante, e até abusivo. Frete ad valorem, no fundo, é isso. Dados os documentos que os próprios transportadores emitem e que informam os processos de comércio exterior, cada embarque oferece o conhecimento, real ou potencial, desse valor.
Diante disso, não se nota, nos danos a cargas, a mesma causa que justifica a limitação nos extravios de bagagens Sendo a carga conhecida, sendo conhecido o seu valor, a limitação tarifada se transmuta numa injustificável proteção ao transportador inadimplente, opondo-se assim a todo o espírito da responsabilidade civil atual.
Além disso, a aplicação indistinta do Tema 210, sem um aprofundamento nas peculiaridades do dano de carga, impede a avaliação cuidadosa das circunstâncias e o perfeito desenho da responsabilidade civil. Isso porque a própria Convenção de Montreal dispõe que, em caso de conduta temerária do transportador, a limitação de responsabilidade não incidirá, pago ou não o frete ad valorem.
Outro ponto que destacamos é a posição do segurador sub-rogado como litigante, como autor da ação. Essa posição muda tudo, até o enquadramento da responsabilização civil.
Diante do contrato de seguro do ramo de transportes internacionais, o dono da carga, usuário do serviço de transporte, ao ser vítima de dano, invoca sua apólice e lhe reclama a cobertura. Constatando as condições devidas, o segurador efetua o pagamento da indenização de seguro, sub-rogando-se nos direitos e ações do segurado. Em seguida, defendendo os seus legítimos direitos, e os do mútuo que representa, busca o ressarcimento contra o causador do dano, o transportador.
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