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Linguagem simples no Judiciário e o tal Pacto Nacional

CNJ publica Recomendação 144 em agosto de 2023, incentivando o uso de linguagem simples no Judiciário. Juristas levantam dúvidas, alegando que o direito exige linguagem específica, mas a recomendação busca aproximar o Judiciário do público, facilitando a compreensão.

23/2/2024

Em agosto de 2023 o CNJ publica a Recomendação 144, que trata sobre a implementação do uso da linguagem simples nas comunicações e atos que editem – o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. A Recomendação tem gerado muitas dúvidas e até mesmo reclamações de alguns juristas, sobre alegações de que o direito teria uma linguagem própria e a norma – dita culta – não poderia se simplificada. 

Contudo, basta uma simples leitura, objetiva, da Recomendação, para que se compreenda que se trata de uma tentativa de aproximação do Judiciário com o jurisdicionado (quem depende de uma decisão judicial), ou seja, uma aproximação do serviço público justamente com o seu público.

Seu objetivo é: adotar linguagem simples, direta e compreensível a todas as pessoas na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade. Essa linguagem tem como pressuposto a acessibilidade, pelo que os tribunais também devem se utilizar da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e outras formas e ferramentas de comunicação. 

Já a justificativa para o Pacto também é louvável:

O uso da linguagem técnica e a extensão dos pronunciamentos em sessões no Poder Judiciário não podem se perpetuar como obstáculo à compreensão das decisões pela sociedade. O desafio de aliar boa técnica, clareza e brevidade na comunicação precisa ser assumido como compromisso da magistratura nacional, ante o reconhecimento de que são condições indispensáveis para garantia do acesso à Justiça.

Ou seja, a comunicação do Judiciário deve ser realizada de tal forma que todos compreendam, principalmente os seus usuários, os jurisdicionados. Trata-se de um movimento que busca dar efetividade à própria garantia de acesso à justiça, constitucionalmente assegurada no art. 5º, incisos XXXIV e XXXV1.

Em um posicionamento extremo, o uso excessivo de uma “linguagem técnica”, “carinhosamente” apelidada de “juridiquês”, pode limitar, inclusive, a garantia à ampla defesa e ao contraditório. 

Para tanto, imagina-se um cenário em que uma pessoa foi presa e ao dispor de seu direito constitucional de se defender por meio de um habeas corpus (art. 5º, LXVII, da Constituição), sequer consiga entender os motivos pelo qual está detida/presa. Lembra-se que o instrumento do habeas corpus pode ser utilizado por qualquer pessoa, para qualquer pessoa. Uma decisão, ainda que fundamentada, mas incompreensível para o jurisdicionado, nesse caso, barra o seu direito mais fundamental à petição e ao acesso à justiça.

Conforme já exposto, esse compromisso não envolve falar em gírias, ou com abreviações. A língua portuguesa é vasta, bonita e deve ser compreensível, nada mais do que isso. 

Esse movimento reflete também o que já está exposto na lei federal que regula o processo administrativo (lei 9.784/99), na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB e no CPC:

Lei 9.784/99

Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

(...)

III - OBJETIVIDADE no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;

(...)

VI - ADEQUAÇÃO ENTRE MEIOS E FINS, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

(...)

IX - adoção de FORMAS SIMPLES, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

(...)

XIII - interpretação da norma administrativa da FORMA QUE MELHOR GARANTA O ATENDIMENTO DO FIM PÚBLICO a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

LINDB

Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

CPC

Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Tem-se então, como norte na comunicação da administração (já contabilizado Poder Judiciário): objetividade; adequação entre fins e meios; adoção de formas simples; interpretação que melhor garanta o atendimento ao fim público; e atendimento dos fins sociais, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana na aplicação do ordenamento jurídico.

O Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, portanto, não inova no ordenamento jurídico. Mas, sem dúvida, e uma declaração de intenção que pode renovar os ares do judiciário e, quem sabe, trazer mais eficiência à prestação jurisdicional, além de se aproximar de seu destinatário final.

Quantos às normas legais expostas acimas, sobre o acesso à justiça,  veja-se o entendimento do Ministro – e constitucionalista – Gilmar Mendes2:

Embora o texto constitucional não se refira a um direito de ser informado sobre o resultado da apreciação, parece corolário do direito de petição essa consequência. Pieroth e Schlink anotam, referindo­-se ao direito constitucional alemão, que, da fórmula constitucional adotada (Lei Fundamental, art. 17) resulta, literalmente, apenas um direito a se dirigir ao órgão competente, que permitiria extrair também para a outra parte o dever de receber a petição, o que reduziria imensamente o significado jurídico do instituto. Por isso, afirma­-se que do direito de petição decorre uma pretensão quanto ao exame ou análise da petição (Prüfung) e à comunicação sobre a decisão (Bescheidung). Da comunicação há de constar informação sobre o conhecimento do conteúdo da petição e a forma do seu processamento. Embora a jurisprudência alemã não vislumbre aqui um dever de motivação, a doutrina majoritária considera que a decisão há de ser motivada825.

Não parece que deva ser outro o entendimento no Direito brasileiro, tendo em vista a função de instrumento de defesa de direitos no nosso sistema constitucional. Não se trata, apenas, de um direito amplamente disponível, mas de garantia processual que figura como mecanismo apto para a materialização do plexo normativo de outros direitos fundamentais, entre os quais sobressai, de modo indissociável, o direito de acesso à informação previsto no art. 5º, XXXIII, do texto constitucional.

Diante do exposto, parece que o dever de informar está, finalmente, sendo levado em consideração para fins de atendimento ao seu real significado gramatical, que se refere a: dar conhecimento; ensinar; fazer saber; ou dar instrução. Todos sinônimos a “informar”, mas por muitas vezes distantes das “informações” contidas em um enunciado ou em uma decisão judicial.

Simplicidade não significa ausência de refinamento. Objetividade não significa grosseria.

Assim, esse movimento deve ser visto como um “protocolo de intenção”, até porque o próprio CNJ, uma instituição pública que tem como objetivo aperfeiçoar o trabalho do Judiciário brasileiro, tem muito a melhorar, tendo como ponto de partida a sua presidência, exercida pelo presidente do STF. 

Isso porque há inúmeros dados que indicam que os ministros do STF passaram a escrever votos maiores desde que as sessões começaram a ser transmitidas ao vivo pela televisão3

O estudo referenciado indica que os acórdãos tiveram um acréscimo médio de 26 páginas. Esse acréscimo, evidentemente, aumenta o tempo de leitura e prejudica a objetividade e a simplicidade pretendidas pelo Pacto. E os dados deixam claro: infelizmente, o motivo desse aumento não é uma maior dificuldade para a discussão técnica da questão, mas, aparentemente, “apenas” ter mais tempo na TV.

Há outro estudo que aponta que, enquanto o tamanho dos votos e acórdãos aumentou, a sua quantidade caiu4. Portanto, fica evidente a queda de eficiência no Tribunal Constitucional do país. 

Essa exposição transformou o Supremo em um efetivo protagonista do processo político brasileiro – o que não parece ser a função primordial da justiça, uma vez que, supostamente cega, deve ser imparcial e neutra, sem assumir posição de protagonismo.

Quem sabe esse Pacto gere uma reflexão nos órgãos da Justiça, para que a prestação jurisdicional seja mais clara e eficiente – esse, sim, o maior objetivo de qualquer Pacto – ou Recomendação – que a Justiça deva cumprir...

Ultrapassado es ponto, mais sensível e polêmico, deve-se destacar que, dentre os principais compromissos desse Pacto, são os mais relevantes: a tentativa de se eliminar o excesso de formalidade para que a decisão seja compreendida; a adoção de linguagem direta; explicar o impacto da decisão; e utilizar linguagem acessível. 

Como apontado anteriormente, não há razão para qualquer alvoroço, eis que se trata de uma explicitação – ou uma explicação – das próprias regras processuais já expostas nas leis e na constituição.

Quanto ao excesso de formalidade, à linguagem direta e à obrigação de explicação do impacto da decisão, basta uma rápida leitura da lei 9.784/99, quanto à “forma simples” – já referenciada acima; e do CPC, em seu art. 489, § 1º, o qual indica ausência de fundamentação quando a decisão judicial se limita à mera indicação de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida, ou emprega conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.

Tudo isso evitaria a oposição de Embargos de Declaração (art. 1.022, do CPC), os quais, infelizmente, são – em grande maioria – alvo de decisões que invocam motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão (art. 489, § 1º, III, do CPC)5. Ou seja, após oposição do recurso específico para combater uma decisão não fundamentada, sobrevém uma decisão ainda mais genérica. Talvez seja necessário um Pacto específico para o julgamento objetivo – e específico – dos Embargos de Declaração, mas é papo para outra hora...

Para fechar o raciocínio anterior, a linguagem acessível é, senão, consequência da objetividade da decisão e possui reflexo ao destinatário final da decisão: o jurisdicionado. 

E quanto à acessibilidade, não há norma mais adequada do que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146, de 6 de julho de 2015). Veja a sua definição legal de comunicação, com destaques:

comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais - Libras, a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações.

Ainda em referência ao Estatuto da PCD, o próprio acesso à justiça tem destaque, impondo ao poder público assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, garantindo, sempre que requeridos, adaptações e recursos de tecnologia assistiva. Desse modo, a pessoa com deficiência deve ter garantido o acesso ao conteúdo de todos os atos processuais de seu interesse.

O Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples culmina com a instituição do Selo Linguagem Simples para certificação dos segmentos da justiça, o qual tem a finalidade de reconhecer, dar publicidade, estimular e disseminar em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição o uso de linguagem simples. O Selo é instituído pela Portaria 351/23, do CNJ, a qual também descreve como linguagem simples aquela que é direta e compreensível a todos os cidadãos na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade.

Para obter o Selo pelo Tribunal, há alguns critérios que mais chamam atenção:

criação de manuais e guias para orientar os cidadãos sobre o significado das expressões técnicas indispensáveis nos textos jurídicos;

promoção de campanhas de amplo alcance de conscientização sobre a importância do acesso à justiça de forma compreensível;

utilização de recursos de áudio, vídeos explicativos e traduções para facilitar a compreensão dos documentos e informações do Poder Judiciário;

b) criação de uma rede de defesa dos direitos de acesso à justiça por meio da comunicação simples e clara.

Diante de tudo exposto, o tal Pacto deve ser visto como um verdadeiro ponto de partida, ou até mesmo uma possibilidade de autorreflexão e autocrítica, para que o Judiciário possa se lembrar qual o seu verdadeiro papel: servir – de maneira eficiente – ao jurisdicionado. 

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BRASIL, Código de Processo Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em 11 de fevereiro de 2024.

_____, Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 11 de fevereiro de 2024.

_____, Lei de Introdução às Norma do Direito Brasileiro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em 11 de fevereiro de 2024.

_____, Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.ht. Acesso em 11 de fevereiro de 2024.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo Gonet Branco. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. P. 235

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1 XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

2 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo Gonet Branco. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. P. 235

3 Disponível em: https://exame.com/brasil/sessoes-do-stf-na-tv-alongam-votos-de-ministros/

4 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-mai-20/acordaos-stf-adis-aumentam-producao-cai-tv-justica/#:~:text=Ap%C3%B3s%20o%20advento%20da%20TV,de%20p%C3%A1ginas%20lidas%20subiu%2059%25.

5 Dado fundamentado exclusivamente na prática processual de mais de dez anos de advocacia do autor.

Matheus Corrêa de Melo
Matheus Corrêa de Melo é advogado associado de nosso escritório. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, o profissional foi graduado em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB). Atualmente, é membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/DF. Matheus Corrêa de Melo também foi-membro da Comissão de Empreendedorismo Jurídico da OAB/DF.

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