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Uma abordagem jurídica envolvendo cuidados na criação de embalagens: o papel do Trade Dress

Embalagens distintivas podem ser protegidas pelo instituto do Trade Dress, sendo este um conceito jurídico importante para agências de marketing e inovação para evitar infração de direitos de terceiros e agregar valor aos seus produtos.

16/2/2024

Sabe-se que um dos principais desafios de agências de marketing e inovação ao criar embalagens é a concepção de elementos distintivos visuais e sensoriais distintivos, visando oferecer aos clientes uma entrega inovadora e de destaque. Este processo certamente envolve diversos desafios técnicos, mas esbarra também no risco jurídico de potencial infração de direitos de terceiros, especialmente voltados a propriedade intelectual. Portanto, o objetivo deste artigo é explorar como conceitos jurídicos podem ser aliados ao desenvolvimento diferenciado de embalagens, considerando diversas perspectivas e aspetos legais relevantes.

O conceito jurídico de trade dress, originado nos EUA, refere-se ao “conjunto-imagem” ou o “look and feel” de determinado produto e/ou embalagem, que é suficientemente distintivo, merecendo uma proteção jurídica autônoma e independente dos conceitos tradicionais de propriedade intelectual. 

O trade dress emerge como o conjunto visual distintivo de um produto ou serviço, podendo compor embalagens, fachadas de estabelecimentos, bem como a apresentação estética de websites ou plataformas digitais. Este conceito envolve não apenas a aparência, mas também a atmosfera, sons, aromas e o design, tanto dos estabelecimentos físicos, quanto dos virtuais. 

Para assegurar a exclusividade do trade dress, é fundamental que as características apresentadas no conjunto sejam únicas e capazes de fazer com que terceiros associem a instantaneamente à empresa que ele representa.

Considerando o recorte de análise estabelecido, i.e., criação de embalagens, é de suma importância que agências de marketing e inovação estejam atentas ao arcabouço jurídico pertinente para não cometerem equívocos que esbarrem na infração de direitos de terceiros, o que pode gerar danos para a própria empresa e seus clientes.

Diferentemente de outras formas de proteção de propriedade intelectual, o trade dress não decorre de previsão legal expressa, sendo seu reconhecimento e proteção estabelecidos pelo judiciário, com base em casos concretos, por meio do ajuizamento de ações de infração por concorrência desleal. 

Na prática, é realizada uma avaliação minuciosa por meio de perícia técnica, com o propósito de coletar evidências técnicas e objetivas para determinar se o trade dress em questão é suficiente distintivo, se não possui aspectos funcionais e se há risco de confusão com outros “conjunto-imagem”. Quando estes critérios são atendidos, o trade dress pode ser protegido contra imitações, concorrência  e uso não autorizado por terceiros.

Assim sendo, os tribunais brasileiros avaliam a evolução contínua das práticas comerciais e concorrenciais, além das mudanças das tendências de design, tornando esta uma ferramenta eficaz para proteger a integridade e identidade de produtos no mercado brasileiro.

Quanto ao primeiro critério analisado, ou seja, distintividade, para que o trade dress seja passível de proteção, ele não pode ser evocativo/descritivo ou de uso comum no segmento. 

Para ilustrar, cita-se o uso da cor, aroma e sabor de laranja nas embalagens de produtos de vitamina C. Por se tratar de vitamina presente majoritariamente nesta fruta, a cor aroma e sabor de laranja é utilizado neste tipo de produto, de modo que o seu uso jamais poderia ser passível de exclusividade por uma única empresa. 

A descritividade, por sua vez, é literal. Verifica-se quando determinado produto ou serviço é intitulado conforme seu significado dicionarizado, não havendo, portanto, exclusividade. É o caso, por exemplo, do uso do termo restaurante para designar um restaurante. Por óbvio, o proprietário do restaurante não poderá reivindicar direitos de exclusiva sobre este termo. 

Nesse sentido, se uma agência de marketing e inovação cria uma embalagem contendo o termo “desodorante” para o produto desodorante, em uma análise preliminar, sem analisar os outros elementos da embalagem, não há infração evidente. 

No que se referem aos elementos de uso comum, primeiramente, importante ressaltar que a análise deve considerar o segmento a que pertence a embalagem do produto em questão. 

O uso comum pode ocorrer devido à funcionalidade, evocatividade ou descritividade do elemento. No entanto, existem alguns casos que o uso comum no segmento nem sempre decorre de uma dessas características, podendo ser verificado em razão de tendência de mercado.

Dentre as estratégias de marketing, a opção de algumas empresas é por “seguir o líder”, tanto no que se refere à criação do conteúdo do produto ou formato de execução do serviço, como na divulgação, seleção de cores ou de embalagens.

É de suma importância cautela quando do desenvolvimento de embalagens que busquem associar-se a empresas líderes do seguimento, pois, além de poder haver alguma violação de ativos de propriedade intelectual, ainda há o aspecto da concorrência desleal.

Não obstante, muitas vezes a empresa líder de mercado permite que os demais players do seguimento utilizem seus elementos distintivos em produtos ou serviços. Quando isto ocorre, tais elementos, que antes eram distintivos, podem tornar-se comuns no mercado, fazendo com que a empresa líder do seguimento não mais consiga reivindicar direitos de exclusiva. Tecnicamente, é o que juridicamente se chama de diluição.

O exemplo clássico é o caso dos produtos VEJA®, que são azuis e vermelhos. Inicialmente, a utilização dessas cores para produtos alvejantes era altamente distintiva, visto que não exercia qualquer função no produto ou evocava suas características. Contudo, outros players no segmento passaram a usar essas cores, o que ocasionou a perda de exclusividade sobre esse conjunto (vermelho e azul) pela VEJA®. 

Inclusive, esta perda de direito foi confirmada por decisão judicial, em que o tribunal permitiu que outra empresa Ré utilizasse tal cor, sem que fosse considerado violação aos direitos da Autora VEJA®. 

Tomando este caso como exemplo, se uma agência de marketing e inovação fosse contratada para desenvolver a embalagem de um produto alvejante no passado, especialmente antes da referida decisão judicial, e utilizasse as cores azul e vermelho é possível que a VEJA® tomasse medidas em face da empresa por violação de propriedade intelectual. 

No entanto, se atualmente a agência de marketing ou inovação for contratada para a mesma criação, o uso desta combinação de cores certamente não seria considerado uma infração, e a VEJA® não teria argumentos para impedir o uso do esquema de cores por terceiros. 

Portanto, a análise quanto ao elemento do uso comum é complexa e requer cautela pela empresa criadora, pois a verificação de tendência de mercado ou de uso comum no segmento é, por vezes, extremamente subjetiva. 

No que se refere ao segundo critério, ausência de funcionalidade, importante destacar que elementos funcionais são aqueles que exercem uma função utilitária no produto, ou seja, é o contrário de distintivo ou ornamental e, portanto, não pode ser protegido. 

Este seria o caso, por exemplo, de produtos “roll on”, cuja proteção não pode ser reivindicada dada à funcionalidade do mecanismo de esfera para aplicação do produto.

Nesse sentido, a agência de marketing e inovação poderá adotar o mecanismo “roll on” para embalagens em que tal mecanismo exerça a função de aplicação do produto sem que isto constitua infração a direitos de terceiros ou que esta criação seja exclusiva.

Por fim, o critério do risco de confusão é o mais difícil de ser aferido. Sob a perspectiva jurídica, normalmente os tribunais aplicam o Teste 360ª para identificar se há possibilidade de confusão no caso concreto, no bojo de perícias judiciais. 

Para ilustrar, selecionamos alguns casos em que os tribunais brasileiros condenaram as empresas que copiaram o trade dress da embalagem de produtos anteriores e distintivos, por entenderem haver possibilidade associação ou confusão no consumidor. 

No caso RITTER x QUEENSBERRY (Processo 0019026-91.2011.8.26.0068), a Ré 'Ritter' foi condenada a pagar indenização à Autora, 'Queensberry', após a decisão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, que deliberou sobre práticas de concorrência desleal relacionadas ao conjunto-imagem das embalagens de geleias da Ré.

No caso BIOFORZAN X BIOTÔNICO FONTOURA (Processo 1025574-72.2018.8.26.0100), a Autora "Biotônico Fontoura" processou a "Bioforzan" por copiar a embalagem de seu suplemento. A decisão favoreceu a Autora, exigindo que a "Bioforzan" cessasse a produção e venda do produto cópia, além de pagar indenização por danos materiais e morais. O relator do caso destacou que as diferenças na cor da tampa, fonte e adornos não anulavam os elementos distintivos percebidos pelos consumidores, dispensando-se a produção de prova pericial. 

No caso CHINA IN BOX X UAI IN BOX (processo 0038734-97.2012.8.26.0002), a "China In Box" acusou a Ré de copiar sua identidade visual, utilizando embalagens e elementos gráficos semelhantes que poderiam confundir os consumidores quanto à origem dos produtos. A decisão judicial favoreceu a Autora, ordenando que a Ré interrompesse a comercialização de produtos nessas embalagens, considerando que violavam o trade dress da marca original e infringiam os direitos de propriedade intelectual. O caso foi julgado pela 3ª Vara Cível de São Paulo – Capital.

Já no processo entre Vigor e Danone (nº 1114879-72.2015.8.26.0100), onde a Vigor acusou a Danone de copiar o trade dress da embalagem, A 1ª câmara reservada de Direito Empresarial do TJ/SP trouxe uma decisão divergente. O relator afirmou que não existiam provas suficientes de concorrência desleal no conjunto-imagem das embalagens. A decisão ressalta que várias empresas que vendem "iogurte grego" usam recipientes semelhantes, e isso não é mais considerado uma característica distintiva, mas sim, de uso comum entre os concorrentes.

As decisões envolvendo os casos mencionados ressaltam importantes princípios do direito de propriedade industrial e da concorrência no mercado. Alguns pontos relevantes merecem destaque:

  1. Abrangência do Trade Dress: O trade dress, como abordado, refere-se à aparência geral e distintiva de um produto que identifica sua origem comercial. Isso abarca características visuais como embalagens, design de produtos, logotipos, cores, e em alguns casos, até aspectos sensoriais, como o cheiro característico da sandália Melissa.
  2. Uso comum do trade dress: As decisões enfatizaram o conceito de vulgarização do trade dress, que ocorre quando os elementos visuais de um produto perdem sua função distintiva, deixando de ser considerados exclusivos e, consequentemente, não passíveis de litígio.
  3. Importância da Proteção dos Direitos de Propriedade Industrial: Os casos evidenciam a importância da concorrência leal e da proteção dos direitos de propriedade industrial como aspectos fundamentais para manter a integridade do mercado e salvaguardar os interesses dos titulares de marcas e produtos.

Em última análise, a proteção dos direitos de propriedade industrial, ancorada na distintividade e originalidade das expressões das ideias, emerge como um pilar fundamental para o fortalecimento da concorrência leal e a promoção da inovação no mercado. 

É igualmente importante evitar o desenvolvimento de produtos ou de embalagens que possam causar confusão sobre sua origem devido à identidade visual. Essa consideração evidencia a importância da constante inovação e diferenciação por parte das agências de criação, para garantir a identidade visual única e protegível de produtos e serviços.

A compreensão desses princípios orienta não apenas as decisões judiciais, mas também a conduta das empresas e profissionais envolvidos na criação e comercialização de produtos, reforçando a importância da proteção e valorização da propriedade intelectual em um ambiente competitivo.

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CABRAL, Filipe Fonteles; e MAZZOLA, Marcelo. O Teste 360º de Confusão de Marcas. Revista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, nº 132, set/out de 2014, p. 14/22.

CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010, vol. II, tomo II, p. 50/51.

MANZUETO, Cristiane Santos.Requisitos objetivos para apuração da distintividade nos conflitos judiciais envolvendo o trade dress de produto. 104f. Dissertação. (2011). Programa de Mestrado Profissional em Propriedade Intelectual Inovação e Desenvolvimento da Academia do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Rio de Janeiro: INPI, 2011.

Isabella Estabile
Atua nas áreas de Contencioso Judicial e Resolução de Conflitos.

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