Os brasileiros, dizem, inventaram a novela, tal como os americanos, reza a lenda, deram vida aos chamados sitcons.
Difere um do outro quanto ao tamanho e a quantidade de tramas que se desenvolvem no mesmo formato e seus personagens. A brasileira, múltiplos episódios sequenciados, personagens e núcleos; à moda dos norte-americanos, foco em poucos, tramas curtas e de certa maneira dissociadas umas das outras.
Tal como uma grande quantidade de outras coisas, a novela brasileira está se desmilinguindo, e cada vez mais temos séries no formato lá do Norte. O que não conseguimos imitar é a saudável prática de celeridade nos conflitos judiciais. O que temos aqui, na alcunha de novela da mercadoria, é uma novela autenticamente brasileira ao estilo de obra aberta, cujo enredo é alterado ao sabor da audiência.
O enredo aqui começa quando, ainda na vigência do finado ICM, antes da Constituição de 1988, se desenvolveu a tese segundo a qual um bem que fosse transportado entre locais que pertencem a mesma pessoa não tem o intuito de venda.
Logo, não sendo destinado à venda, à prática da mercancia, não é esse bem uma mercadoria.
O antagonismo seria dizer que o transporte só se dá com o intuito de ser, ao final, vendido e, por isso, não perderia, o bem, a característica de mercadoria.
Mas o roteiro da novela prefere entender que não: não é mercadoria e assim se desenrolam os capítulos seguintes.
Como em toda novela que se preze, existem aqueles capítulos meio arrastados, sem muita emoção, apenas para cumprir tabela.
E assim se dá, vai daqui pra lá a discussão, eis que o STJ, em 1996, edita uma súmula dizendo que não incide ICMS no mero deslocamento de bens entre estabelecimentos do mesmo titular.
Agora a novela tomará novos rumos e vamos nos encaminhar para o capítulo derradeiro, onde todos vivem felizes para sempre. Não!
A novela está dando audiência e vamos esticá-la, para gaudio de quase ninguém.
Numa trama paralela, mas de igual importância, é editada, no mesmo ano de 1996, a Lei Complementar 87, que, diz (aqui haveria a interrupção do episódio e apareceriam as irritantes e intrigantes “cenas dos próximos capítulos”) “incide ICMS na transferência entre estabelecimentos do mesmo titular”.
Os espectadores ficam intrigados de como pode o Tribunal Maior em matéria legal dizer uma coisa e a casa legislativa que produz as leis dizer outra, tudo no mesmo ano, praticamente na sequência um do outro, a desafiar a necessária harmonia entre os poderes, um dos pilares da República.
Suspense total! O que vale? Quem tem razão? Uns seguem o tribunal, outros a lei. Há mocinho e bandido nessa história?
Nesse ponto, a novela dá uma esfriada e a audiência se dispersa. Eis que, em 2021, o STF promete apresentar o desfecho e diz que “não incide ICMS nas operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo titular”.
Em êxtase, não propriamente pela atuação, mas por vir o esperado final, a patuleia já começa a fofocar sobre a estreia do novo folhetim.
Mas não. Ainda faltam detalhes a serem especificados. A partir de quando vale isso? Como faz com o crédito que eu tinha por ter comprado? Posso transferir o crédito?
Tivemos que esperar até 2023 para que novo capítulo fosse produzido e o Supremo, a quem sempre é garantida a primazia de errar por último, e disso ele não abre mão. Diz o STF que a decisão só vale a partir do primeiro dia do próximo ano.
Ah, e que os Estados que digam como faz com os créditos, pois se não disserem, os contribuintes podem transferir. Como? Como queiram!
As cortinas não se fecharam ainda. Mais está por vir. E as tramas se entrelaçam e a plateia a esperar quem dará o próximo passo. Os Estados regulamentarão a transferência? Ou será que o Congresso Nacional irá querer os holofotes do protagonismo da cena? E o Supremo, encerrará sua participação?
A novela seria emocionante, se agoniante não fosse. O dia primeiro está chegando. Precisamos parametrizar nossos sistemas. Precisamos planejar. Precisamos saber!
O CONFAZ irá nos salvar. É celebrado o Convênio 174. Mas espera aí! Ele repete a lei Complementar 87, aquela mesma que o Supremo disse que é inconstitucional quando diz que tem ICMS na transferência. Ele torna obrigatória a transferência do crédito! Como assim?
E a trama se torna cada vez mais complexa até para o espectador mais atento.
O nosso querido estado do Rio de Janeiro, que votou a favor do Convênio 174 e tal como aqueles canastrões típicos das novelas “das 8”, dá mais um passo na trama e diz “não, não aceito esse Convênio”. E o convênio é cancelado.
No Supremo, novo recurso é apresentado e o fim só virá em 2024.
O CONFAZ reedita o Convênio, agora sob o número 178.
O Congresso Nacional se apressa e, na urgência, vota um projeto que diz que o crédito pode ser aproveitado onde o contribuinte quiser e, vai além, diz que o contribuinte pode fazer incidir o ICMS na transferência, dando uma banana para o que decidiu o Supremo.
O Chefe Maior da Nação sanciona e temos, às vésperas de um novo ano, a lei Complementar 204, mas, num rasgo de lucidez (será?) veta a possibilidade de fazer incidir.
Os estados prometem brigar. “Vamos para a justiça”. No caso, o Supremo, que ainda não acabou de julgar. E, agora, coloca no meio das festividades carnavalescas o próximo julgamento. Nada mais sintomático para ilustrar a situação. Será o fim?
Nada acabou. A trama continua e a audiência que achava que era uma história de suspense, passa a perceber que está no centro do picadeiro, com um daqueles narizes grandes, arredondados e vermelhos, de plástico!
Os brasileiros são os melhores em fazer novela.