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O preconceito etarista no mundo do trabalho e as visões negativas da idade segundo Becca Levy

A autora problematiza a experiência de envelhecimento no mundo do trabalho a partir das visões negativas elaboradas e constituídas pelo sujeito (estereótipos). O artigo comporta dois recortes: a ênfase nas práticas etaristas e as contribuições de Becca Levy.

6/2/2024

O preconceito se constitui a partir de generalizações não respaldadas, erigidas sob uma perspectiva ultrareduzida. A simplicidade de seu teor as tornam atraentes e facilmente dissemináveis, característica que encaminha a enquadramentos sociais inadequados e indiferentes à realidade. Nesse contexto, os fatos e a lógica subjacente perdem centralidade e importância. 

Apesar de, em si, contrariar o método científico, generalizar facilita as coisas para cabeças lineares, que gostam muito de regras universais, sempre aplicáveis. As exceções, os matizes e o aleatório (hoje se fala randômico ou até quântico) atrapalham o pensamento plano. A generalização seduz quem se sente pouco à vontade com o real e busca um nicho onde descansar sua angústia. (KARNAL e FERNANDES, 2023, p.10)

É como se essas afirmações dispensassem qualquer validação. O preconceito desprestigia o senso crítico e a capacidade pensante do sujeito, a sua leitura e interpretação autônoma do mundo. As razões que animam a atitude e o comportamento etarista são tão infundadas como invasivas. Não é sem razão que, 

O preconceito é formado antes de uma experiência real, a partir de uma generalização. Como a base de quase todo pensamento racional é a experiência real e concreta das evidências, aqui esbarramos, de saída, no caráter não científico do preconceito. O preconceito é algo que contraria a lógica elementar de toda ciência. O preconceito nasce sem que necessite de dados objetivos. O preconceito, antes de tudo, vem de alguém com uma limitação intelectual conjectural — porque não conhece —, e que deduz sobre o vazio. (KARNAL e FERNANDES, 2023, p. 9-10)

Em complementação, pertine reforçar que o preconceito também se nutre da invisibilidade social. É certo que a invisibilidade é uma das causas, todavia, apresenta-se, igualmente, como uma das consequências (ao lado de tantas outras).

A experiência de exclusão é muitas vezes aplainada por justificações retorcidas e estapafúrdias (sem qualquer sentido), seguida de pedidos de perdão tão forçados como amedrontados, em razão da repercussão midiática negativa.  A recusa genuína em reconhecer e desconstruir o preconceito tornam essas iniciativas infrutíferas sob o ponto de vista da substancialidade (conscientização efetiva) porque não enfraquecem ou eliminam as visões negativas elaboradas sobre o sujeito discriminado (estereótipos). 

A expressão 'etarismo' foi cunhada pelo psiquiatra Robert Butler, iniciativa que posicionou o fenômeno ao lado do racismo, do sexismo, do antissemitismo e outros "ismos" que atravessam gerações e marcam as sociedades. Nomear um fenômeno nos obriga a defini-lo, quiçá problematizá-lo. No caso em tela, remete a uma reflexão focada acerca do impacto, cada vez mais significativo e sensível, das visões negativas da idade sobre a saúde mental e a vida social da pessoa idosa ou considerada "idosa". 

Ocorre que, a idade que classifica socialmente a pessoa como idosa tem escapado aos limites estabelecidos pelo estatuto legal, alcançando pessoas com idade inferior a 60 anos. A incidência dessas visões é silenciosa, embora percebida e sentida pelas pessoas discriminadas (as quais denomino de pessoas-alvo).

O preconceito, independentemente se percebido ou não pela pessoa destinatária, deixa marcas, posicionamentos e interdições socialmente admitidas. De fato, o etarismo cria para os trabalhadores um ciclo de trajetória profissional com previsão de decadência cada vez mais curto, antecipando "aposentadorias". O problema é que essa aposentadoria não coincide com aquela que culmina no direito ao benefício previdenciário (de caráter pecuniário). Trata-se, quase sempre, de uma aposentadoria forçada, uma espécie de "desova". Usei esse termo porque entendo que ele traduz com precisão a morte profissional. Nesta nova condição, o(a) trabalhador(a) tem dificuldades para se recolocar no mundo do trabalho porque são considerados “velhos/velhas”. 

O envelhecimento da população é uma realidade em quase todo mundo. Mas a velhice está em perigo, ameaçada pelo fato de viver mais.(Haddad,2 2017, p.10)

As associações a velhice são predominantemente depreciativas: lentidão; absenteísmo; desatualização; impontualidade; exaustão (fadiga, cansaço); improdutividade; descompromisso; resistência à mudança; preguiça; incapacidade; dependência; acidente de trabalho (risco); retrocesso; deterioração gradual; decrepitude; declínio; decaimento; tristeza; desânimo (apatia); adoecimento; desvalorização; cuidado (obrigação, necessidade); assistência; senescência etc. O processo de envelhecimento também é associado à perda de memória. O lexo corporativo etarista comporta um repertório vasto, que alimenta falas capacitistas. (HADDAD, 2017; LOTH, 2004; SOARES, 2020; WINANDY, 2021)

“Há uma tendência cultural atual de se pensar que as psicopatologias são inerentes ao processo de envelhecimento que caracterizam a velhice.” (SOARES, 2021, p.12)

As visões negativas do envelhecimento desnaturaliza socialmente um fenômeno que é natural, uma experiência singular, característica que justifica a necessidade de se contemplar a diversidade presente nesse processo. Significa dizer que a homogeneização é excludente. O corpo envelhecido é um corpo assujeitado aos significados culturais que animam as condutas etaristas.

"O envelhecimento é um processo particularmente heterogêneo: na verdade, nos tornamos cada vez mais diferentes uns dos outros à medida que envelhecemos. Isso se deve a fatores sociais e individuais." (LEVY, 2022, p.181)

Reduzir o que é naturalmente heterogêneo em homogêneo (visão universalizada da velhice) também invisibiliza em razão das interseccionalidades que entrecruzam a condição da pessoa idosa. Compartimentar esta análise é negar a existência do conteúdo ideológico e o substrato moral presente nas representações, discursos e práticas. 

A ausência de oportunidades e envolvimento intergeracional no mundo trabalho demanda políticas antietaristas intergeracionais. Requer, especialmente, ações afirmativas prioritárias voltadas para a admissão e permanência de pessoas idosas nos postos formais de trabalho. O engajamento da iniciativa privada é fundamental.

Para além das razões de humanidade, é fato que a sociedade brasileira envelhece a passos largos. Um desafio importante à efetiva transformação no nível organizacional (corporativo) é a cristalização de práticas de gestão ritualizadas que não contemplam a diversidade, o que normaliza comportamentos excludentes e narrativas depreciativas.

Uma das formas mais insidiosas do etarismo é ignorar as pessoas mais velhas. Basta olhar a quase ausência de idosos nos filmes, nas propagandas e nos programas de tv, nos debates nacionais sobre questões urgentes de políticas públicas, nas pesquisas científicas e em tantos outros domínios da vida contemporânea. (LEVY, 2022, p.151)

Somos cotidianamente turbinados por estímulos a essas visões negativas, reforçadas por pessoas de autoridade desde a infância, o que acaba por constituir um senso que já é predominante nas diferentes instâncias sociais. Até porque o etarismo é lucrativo para a indústria antienvelhecimento, que manipula a concepção de beleza, alçando determinados padrões de corpos ao nível do imaginário coletivo, produzindo necessidades a partir dessas visões negativas.  O etarismo transforma a relação do sujeito com o próprio corpo. Levy (2022) ressalta que

Inúmeros empreendimentos comerciais obtêm um lucro impressionante com a promoção de visões negativas de idade. Estes incluem a indústria antienvelhecimento, as redes sociais, as agências de publicidade e as empresas que trabalham para criar medo do envelhecimento e uma imagem decadente dos idosos. (LEVY, 2022, p.156)

Também é preciso reconhecer a existência do discurso de ódio etarista.

O etarismo pode ser identificado em diferentes níveis e espaços sociais (inclusive, ou especialmente, aquele virtual) de modo que, não é incomum observamos o “efeito Baader-Meinhof”. 

Os casos de violação de direitos dos grupos minorizados nos espaços sociais operam como clickbait, produzindo notas de informação e de repúdio, reels e postagens de posicionamento a respeito da matéria, além do clamor momentâneo, entretanto, com pouca efetividade de resposta (mudança real). Essas questões possuem uma complexidade estrutural e ideológica marcante. Vivemos a era da “economia da atenção”. (LEVY, 2022)

Condutas etaristas no ambiente de trabalho são recorrentemente associadas ao assédio moral, o que acaba afastando o foco de atenção e centralidade nos debates, dado que o assédio moral oferece moldura para diferentes formas de violência. Nesse sentido, o etarismo é, muitas vezes, considerado "menor", relativamente a outras espécies de preconceito (régua de tolerância). 

Finalizando o texto, gostaria de reforçar que o etarismo é produto das visões negativas acerca do envelhecimento, embora também opere como gatilho e sentença de ‘morte profissional’. As pessoas temem envelhecer para não experienciar o preconceito e a derradeira exclusão social.  

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. 

______. Estatuto do idoso: lei federal nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Disponível em: L10741 (planalto.gov.br).

HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. A ideologia da velhice. São Paulo: Cortez, 2017

LEVY, Becca. A coragem de envelhecer: ciência de viver mais e melhor. Teutônia, RS: Principium, 2022.

LOTH, Guilherme Blauth; SILVEIRA, Nereida. Etarismo nas organizações: um estudo dos estereótipos em trabalhadores envelhecentes. Revista de Ciências da Administração, [S. l.], p. 65–82, 2014. DOI: 10.5007/2175-8077.2014v16n39p65. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/adm/article/view/2175-8077.2014v16n39p65. Acesso em: 24 jan. 2024.

KARNAL, Leandro e FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Preconceito: uma história (Portuguese Edition). São Paulo: Companhia das Letras, 2023. 

NASCIMENTO, Juliana. 17. Esg – Combatendo a Discriminação na Velhice: Etarismo em Ambientes Corporativos (Onu, Agenda 2030) In: NASCIMENTO, Juliana. Esg: O Cisne Verde e o Capitalismo de Stakeholder - Ed. 2023. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/esg-o-cisne-verde-e-o-capitalismo-de-stakeholder-ed-2023/2030258609. Acesso em: 26 de Janeiro de 2024.

SILVA, Letícia Alcântara da; SANTOS, Ester Lima dos; SOUZA, Helena Kellen Barbosa de; PODEMELLE, Rubenyta Martins; SOARES, Renê Ribeiro; MENDONÇA, Sarah de Souza. envelhecimento e velhice LGBTQIA+: repercussões sobre a saúde física e mental de pessoas de meia-idade e idosas. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, [S. l.], v. 33, p. 1013, 2022. DOI: 10.35919/rbsh.v33.1013. Disponível em: https://www.rbsh.org.br/revista_sbrash/article/view/1013. Acesso em: 24 jan. 2024.

SOARES, Flávia Maria de Paula.  Envelhescência:  o trabalho psíquico na velhice. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.

WINANDY, Fran. Etarismo: um novo nome para um velho preconceito. 1.ed.  Divinópolis, MG: Adelante, 2021.

Yumara Lúcia Vasconcelos
Professora associada do curso de Administração da UFRPE e docente permanente do PPGDH/UFPE - Programa de pós graduação em Direitos Humanos.

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