Migalhas de Peso

Os direitos humanos e a enigmática teoria jusnaturalista de Finnis

Descortinando duas teorias que, a princípio, parecem anacrônicas, todavia devem se complementar para trazer benefícios axiológicos erga omnes.

5/2/2024

Desde os primórdios do período greco-romano, era notório o embate entre o jusnaturalismo, baseado em conceitos metafísicos e divinos e o juspositivismo, pautado na busca objetiva de geração de uma lei concreta. Nessa perspectiva, pode-se citar a tragédia grega que descrevia a colisão ideológica entre Sófocles e Antígona, cuja tratativa colocava em xeque o direito moral de enterrar os falecidos e promover o ritual religioso, inerente a cultura daquela época. Ou seja, já existiam leis positivadas condizentes com os valores das autoridades, todavia, também se preconizavam os valores morais em relação aos direitos básicos, que não poderiam ser refutados. Destarte, segundo o doutrinador Souza Pinheiro, “Até o início da Idade Moderna é difícil identificar uma oposição mutuamente excludente entre o Direito Positivo e o Direito Natural – isso, para não afirmar inexistente essa contradição. A Antígona de Sófocles nos mostra que, já na Antiguidade, era possível identificar o conflito entre a lei positiva e a lei natural. Isso, no entanto, não significava que a existência do Positivo, por si, afastava a existência do Direito Natural”.

Nessa linha de discussão, faz-se necessário descrever as prerrogativas e as sujeições das teorias jusnaturalista e positivista, com intuito de dialogar com ideais complementares de filósofos como São Tomaz de Aquino, Emanuel Kant, Hans Kelsen, Herbert Hart, Ronald Dworkin e John Finnis, dentre outros. A priori, o jusnaturalismo estabelecia que o direito deveria ser concretizado além da lei posta, orientado por valores e relações intersubjetivas. Entretanto, muitos juristas acreditavam que o alto grau de abstração desses ideais acarretaria muitos conflitos e incertezas jurídicas - fato que trouxe como decorrência pontual a criação do juspositivismo extremo. Nessa toada, destaca-se o jurista Hans Kelsen e sua obra descrita como a “Teoria Pura do Direito”, que buscava o monismo jurídico estatal e a estabilidade das relações interpessoais. No prefácio de sua obra, Kelsen (2009) escreve:

“Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda ideologia política e de todos os elementos de ciência natural. Foi o meu intento elevar a jurisprudência à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do direito, e aproximar seus resultados do ideal de toda ciência: objetividade e exatidão. A usual afirmação de que existe realmente uma ordem natural absolutamente boa, porém transcende e, por isso, não inteligível, ou a de que há um objeto chamado justiça, mas que não pode ser claramente definido, implica uma contradição flagrante. Na verdade, é apenas uma frase eufemística para expressar a circunstância lamentável de que a justiça é um ideal inacessível ao conhecimento humano”.

Nessa linha de discussão, o positivismo excluía o juízo de valor, a justiça moral e outras matérias de cunho sociológico, tentando se justificar no obscurantismo religioso e na superstição do jusnaturalismo. Ademais, priorizava a hierarquização de normas e a neutralidade, com primazia na incongruência aos direitos humanos, sendo taxado por muitos de ser injusto e extremista. Um exemplo disso ocorreu com o período do Holocausto na Alemanha Nazista no qual ocorreram atrocidades em relação aos direitos humanos que, inacreditavelmente, estavam positivados constitucionalmente. Assim, Kelsen acreditava que, para se garantir o Estado de direito, algumas leis consideradas injustas e imperfeitas serviriam para o controle da segurança jurídica. Atualmente, existem doutrinadores que têm afinidade com o juspositivismo atual, como o doutrinador Norberto Bobbio, que preconiza a necessidade de seguir os atos normativos preestabelecidos pelo poder legislativo em voga. Segundo Bobbio,

“A definição do Direito, que aqui adotamos, não coincide com a de justiça. A norma fundamental está na base do Direito como ele é (o Direito positivo), não do Direito como deveria ser (o Direito justo). Ela autoriza aqueles que detêm o poder a exercer a força, mas não diz que o uso da força seja justo só pelo fato de ser vontade do poder originário. Ela dá uma legitimação jurídica, não moral, do poder. O Direito, como ele é, é expressão dos mais fortes, não dos mais justos”.

Nesse contexto de análise valorativa, observa-se que há uma amplitude de ideologias a serem contextualizadas e a notória abstratividade do tema gera, ainda mais, falta de consenso entre os juristas. Por conseguinte, deve-se dissertar sobre o jusnaturalismo moderno apresentado pelo filósofo australiano John Finnis que se utilizou da releitura dos pensamentos de Tomaz de Aquino e de Kant para emoldurar a razão prática positiva, com prioridade aos bens humanos declarados por ele de verdadeiros. Ou seja, para Finnis, os bens humanos básicos geravam uma espécie de florescimento humano sem se tornar incompatível com o juspositivismo. Destarte, em sua obra intitulada “Natural Law and Natural Rights (1980)” cita primados da dignidade da pessoa humana: vida, conhecimento, jogo, experiência estética, amizade, sociabilidade, razoabilidade prática e religião.

Nessa análise jusnaturalista, a vida pode ser determinada pelo impulso de autopreservação que é nato do ser humano, o conhecimento demonstra-se imprescindível para assegurar os ideais de coletividade e bem-estar e o jogo faz parte do ser humano, desenvolvendo um ambiente de conquistas e incertezas saudáveis. Outrossim, a religião, mesmo na idade greco-romana supracitada, resguarda ao ser um equilíbrio moral do que se deve fazer ou não. Finalmente, a racionalidade prática determina que as normas implícitas não devem se subordinar a imposição de leis pelo Estado, uma vez que a real fonte de direito é a razão humana.

Outrossim, para exemplificar a questão em xeque, pode-se citar a discussão sobre o “homeschooling” no Brasil, trazendo em contestação o direito à educação e a abrangência do Estado para promovê-la. Isto posto, utilizando do jusnaturalismo, observa-se que é direito dos pais de dar educação de boa qualidade dentro de sua própria casa, contudo, não existem leis federais aprovadas para concretizar tal tratativa. Ou seja, o juspositivismo não pode considerar que há um direito posto para realmente aplicar a toda a população do Brasil o ensino estrito em casa. Consequentemente, com o embate entre o jusnaturalismo e o juspositivismo brasileiro vanguardista, observa-se que o civil law ainda domina a processualística jurídica. Nesse caso específico, chega-se a conclusão de que não há complementariedade de institutos, mas sim especificidade em relação ao direito fundamental à educação, pois o Estado alega não ter reserva do possível orçamentaria.

Diante do exposto, quando se compara o jusnaturalismo e o juspositivismo, infere-se que deveriam ser complementares e não excludentes, pois ambos demonstram lacunas hermenêuticas de cunho social, cultural e histórico. No Brasil, há uma tendencia de se priorizar o juspositivismo, já que se utiliza processualmente do civil law em detrimento do common law. Conquanto, desde a aprovação do Novo Código de Processo Civil em 2015 - NCPC, há uma tendencia de valorização de precedentes, jurisprudências e súmulas, indo na contramão do positivismo extremo. Nessa seara, pode-se constatar que Finnis trouxe à tona ideais preconizados há mais de mil anos pelo filósofo Platão, que não isolavam o Direito da moral, focando na sociabilidade. Para finalizar, é suma importância a percepção de que os valores humanos básicos, descritos neste texto, não devem ser hierarquizados como o fez Kelsen, mas sim adequados a cada demanda específica de uma determinada sociedade.

-------------------------

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução Carlos Josaphat Pinto de Oliveira et al. v. 105 4; 6. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995a. ______. Teoria do ordenamento jurídico. 6.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995b.

 FINNIS, John. Natural Law and legal reasoning.38 Clev. St L. Ver. 1 (1990).

GONÇALVES, C. F. O.; PRAXEDES, A. T. As insuficiências do positivismo jurídico para o conhecimento da ciência do direito: uma análise crítica do purismo kelseniano. In: ROCHA, L. S.; LOIS, C. C.; MELEU, M. (Coord.). Cátedra Luis Alberto Warat. Florianópolis: CONPEDI, 2015.

GREEN, Leslie. Positivism and the inseparability of law and morals. New York University Law Review, New York, v. 83, p. 1035-1058, . HART, H. L. A. O conceito de direito. 5ª ed. Trad. A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

KELSEN, Hans. A justiça e o direito natural – apêndice à segunda edição alemã da Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979ª. ______. Teoría general del derecho y del estado. Tradução Eduardo García Máynez. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1979b.

KLOSTER, M. V. A superação do juspositivismo por uma compreensão ampliada do direito: enfoque laboral. 2012. 137 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. KUHN, Thomas S. The structure of scientific revolutions. 2nd ed. Chicago: University of Chicago Press, 1980. 106

OLIVEIRA, E. S. Bem comum, razoabilidade prática e direito: A fundamentação do conceito de bem comum na obra de John M. Finnis. 2002. 144 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.

 PINHEIRO, V. S.; SOUZA, E. B. A fundamentação ética dos direitos humanos em John Finnis. (1990).

Joseane de Menezes Condé
Pós Graduação em Direito Constitucional Damásio ,Discente de Direito Anhanguera, estagiária do TRT 15, coautora do Livro Direito do Trabalho- Impactos da pandemia e das Revistas Judiciais TRT

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024