A EC 105/19 alterou a Constituição Federal de 1988 ao incluir o Art. 166-A na seção que trata dos orçamentos, institucionalizando as emendas individuais impositivas. Essa emenda possibilita a alocação e repasse direto de recursos aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, independente de convênios ou instrumentos congêneres. Os valores passam a pertencer aos entes federativos desde a transferência financeira. Em 2024, a lei Orçamentária projetou a transferência de 8 bilhões de reais nessa modalidade.
A rapidez com que esse mecanismo de transferência de recursos públicos pode ser operacionalizado, aliada aos riscos de falta de controle, levou à denominação de "emendas PIX," em referência ao sistema de pagamentos instantâneos que efetua transferências em tempo real.
O anseio dos parlamentares de ver suas emendas à Lei Orçamentária Anual - LOA realizadas não é novo. A primeira tentativa de obrigar a execução de programação orçamentária via Proposta de Emenda à Constituição - PEC ocorreu em 2000, consolidando-se constitucionalmente apenas em 2016 com a EC 8616, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional 126/22. A justificativa recorrente é garantir maior efetividade à atividade parlamentar, reduzindo a concentração de competências e recursos no Poder Executivo.
O mecanismo proposto encontrou obstáculos em sua execução, principalmente devido à interveniência de órgãos e entidades do Governo Federal, como a Caixa Econômica Federal, considerada burocrática e desvirtuadora da mensagem constitucional. A EC 105/19 visa garantir que os bens e serviços destinados pelas emendas parlamentares individuais alcancem seus destinatários.
No entanto, uma preocupação surgiu devido à última versão da PEC aprovada, que retirou as referências expressas aos órgãos responsáveis pela fiscalização da aplicação dos recursos, deixando um vácuo normativo. O dilema foi estabelecido.
Normalmente, a natureza do recurso determina o responsável por sua fiscalização. Recursos federais são fiscalizados pelo TCU e pelos respectivos órgãos de controle interno federais, enquanto recursos de outros entes federativos ficam sob responsabilidade dos Tribunais de Contas e órgãos de controle locais. No entanto, os recursos do Art. 166-A não se assemelham às outras espécies de repasses federais, sendo uma verdadeira inovação.
Por isso, as regras gerais que direcionavam a atuação de órgãos de controle, interno e externo, conhecidas e reconhecidas, não pareciam se ajustar satisfatoriamente à sistemática introduzida. Gerou o temor de que, não havendo certeza e segurança jurídica quanto a quem é responsável pela fiscalização, fosse ela ineficaz ou mesmo inexistente.
O TCU vinha enfrentando a questão, especialmente pela via colateral, podendo ser citados os julgados: Acórdão 2098/20-TCU-Plenário, Acórdão 439/21-TCU-Plenário, Acórdão 1219/21-TCU-Plenário, Acórdão de Relação 2.756/21 - TCU- Plenário, Acórdão 130/22-TCU-Plenário. Diretamente, destacam-se os Processos 032.080/21-2 e 045.470/21-9. Este último originou-se de provocação do Congresso Nacional, mais especificamente da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, que solicitou à Corte informações "acerca de auditorias voltadas para a modalidade de transferência especial de emendas parlamentares”.
Foram encaminhados questionamentos quanto à existência de processos e auditorias que tivessem como objeto as “emendas pix”, e se o TCU considerava ter competência para fiscalizar este tipo de transferência ou se esta pertencia a outros órgãos. Também foi questionado das dificuldades de fiscalizar os recursos enviados por esta modalidade e se o Legislativo poderia tomar medidas a fim de aprimorar a modalidade e facilitar sua fiscalização.
As indagações contidas no Processo 045.470/21-9 foram enfrentados no Acórdão 517/23 - Plenário, sob a relatoria do Ministro Vital do Rêgo, que, mesmo prestando informações pontuais e preliminares, remeteu a responsabilidade de maior aprofundamento à outra consulta, tratada no âmbito do Processo 032.080/21-2, também de sua relatoria. Antecipou que haveria manifestação a respeito da natureza jurídica dos recursos de que trata o art. 166-A, inciso I, da CF e que “a resposta em decisão que vier a ser proferida na Consulta terá caráter normativo e constituirá prejulgamento da tese, configurando precedente com entendimento a ser, inexoravelmente, aplicado em todos os demais casos submetidos à Corte de Contas”.
Portanto, uma grande expectativa foi criada para manifestação do TCU, o que se materializou no Acórdão 518/23 – Plenário. Definiu-se que a transferência especial é do tipo voluntária, ainda que distinto e peculiar em relação às tradicionais modalidades de transferências, mas que não haveria embaraço legal para se proceder a transmissão da propriedade dos recursos da União aos entes subnacionais.
Também ficou decidido que a partir da liberação da ordem bancária os recursos passariam a pertencer ao ente beneficiário (ocorrendo, portanto, a transferência de propriedade), não havendo mais participação ativa fiscalizatória dos órgãos de controle federais quanto à sua aplicação, migrando-se tal incumbência para seus congêneres estaduais (e do DF). Entretanto, uma peculiar tarefa de exame e controle se manteve vinculada ao TCU.
No texto do Art. 166-A, introduzido pela EC 105/18, foram estabelecidos quatro condicionantes aos entes subnacionais destinatários e beneficiados pelas transferências especiais, cujo descumprimento, infringência ou inobservância pode/deve ensejar a invalidade mesma da transferência, a revogação da “doação” e a consequente restituição dos recursos à União. Esse recorte de controle se manteve com a Corte de Contas da União.
Além disso, acertadamente, o TCU entendeu que, para tornar possível a averiguação quanto às condicionantes seria fundamental que os entes que receberem recursos, via transferência especial, registrem todas as informações no Transferegov.br, plataforma que disponibiliza dados abertos a respeito da informatização e operacionalização das transferências de recursos União destinados a órgãos e entidades dos entes subnacionais. Configurou-se assim, mais um encargo a ser averiguado, cuja omissão poderia gerar a instauração de tomada de contas especial
A complexidade dos temas tratados, provocou a necessidade da elaboração de uma instrução normativa, que regulamentasse a atuação do TCU quanto à fiscalização dos condicionantes constitucionais e da necessária disponibilidade de dados no Transferegov.br, inclusive com a definição de prazos e as tarefas que devem ser desempenhadas pelos órgãos de controle e Cortes de contas regionais, o que foi suprido pela Instrução Normativa - TCU 93, de 17 de janeiro de 2024, que será objeto de outro artigo.
As transferências especiais, ou "emendas pix", podem realmente ser um instrumento legítimo de conferir efetividade à tarefa parlamentar, simplificando a alocação de recursos federais aos entes subnacionais, mas há riscos que não podem ser negados e brechas normativas que poderiam mesmo comprometer princípios constitucionais inegociáveis que se impõem à toda a Administração Pública.
O TCU, como vigilante e proativo órgão responsável pela promoção de uma Administração Pública efetiva, ética, ágil e responsável, assumiu seu papel constitucional, enfrentou e propôs regulamentação à questão, oferecendo diretrizes para todo o Sistema de Controle brasileiro. Definitivamente, as “emendas pix” não se constituirão em um “cheque em branco”! A I.N. - TCU 93/24 deixa isso claro.