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Extensão analógica da proteção de não incidência de multa no caso de mudança de posto de trabalho do pejotizado

O artigo 4º da lei 8.245/91 prevê não incidência de multa em caso de resilição unilateral de contrato de locação por mudança de posto de trabalho, mas grande número de pessoas pejotizadas passa pela mesma situação de modo análogo nos termos do próprio artigo 4º LINDB.

26/1/2024

A questão da locação imobiliária por vezes é um ponto muito sensível eis que lida com valores sociais sensíveis eis que de um lado se tem aqueles – normalmente minus habendi – que não tem imóveis próprios para o exercício de um direito social elementar (moradia – artigo 6º CF) e de outro se tem a questão da garantia do lídimo direito de exploração legal e regular da propriedade amparada por prelados também constitucionais de livre iniciativa (artigos 5º caput e 170, IV ambos CF).

A ideia da legislação sempre foi buscar tratar esse tipo de relação cum granu sallis – de modo a conciliar essas duas variáveis (valores sociais e propriedade) havendo dispositivos como o do artigo 4º, parágrafo único da Lei de Locações (8.245/91) que estabelece:

Art. 4o  Durante o prazo estipulado para a duração do contrato, não poderá o locador reaver o imóvel alugado. Com exceção ao que estipula o § 2o do art. 54-A, o locatário, todavia, poderá devolvê-lo, pagando a multa pactuada, proporcional ao período de cumprimento do contrato, ou, na sua falta, a que for judicialmente estipulada. (Redação dada pela lei 12.744/12)

Parágrafo único. O locatário ficará dispensado da multa se a devolução do imóvel decorrer de transferência, pelo seu empregador, privado ou público, para prestar serviços em localidades diversas daquela do início do contrato, e se notificar, por escrito, o locador com prazo de, no mínimo, trinta dias de antecedência.

A discussão aqui se dá, obviamente, em relação à multas compensatórias (não moratórias) – ou seja, essa exclusão de multa não se aplica à mora (atraso do pagamento dos alugueis) mas vale para as multas por encerramento prévio do contrato (multa compensatória – a ideia é autoexplicativa – visa compensar o locador pela desocupação antes da hora, servindo como desestímulo à desistência indevida e como fator para evitar surpresas para aquele que precisa receber o aluguel convencionado para pagar suas contas).

A regra é muito salutar pois visa alcançar um meio termo ético nesse tipo de contrato. Ora, sabido que pessoas que trabalham como empregados não tem plena disponibilidade para decidir sobre o local em que prestarão serviços – há funcionários públicos que mudam de posto – enfim – pessoas não podem ficar alijadas de seu meio de sustento – e seria pouco ético lançar a escolha de Sofia entre ficar sem emprego ou pagar multa (quem mora de aluguel geralmente equilibra seu orçamento e o pagamento de multas de dois três aluguéis de uma só vez, por vezes é por demais draconiana).

Obviamente que a ideia é conter abusos de locatários que simplesmente se arrependem de haver alugado o bem e queiram mudar – o que gera a cobrança da multa de forma legal e adequada – sempre foi possível fixar multas moratórias e compensatórias neste tipo de situação (sempre sob o viés da possibilidade das reduções por equidade e não proporcionais do ponto de vista matemático – já que a norma é expressa – artigo 413 CC – sendo úteis aqui também os Enunciados 355 a 359 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal).

De acordo com o Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo - Ibedec, a multa deve ser calculada proporcionalmente, baseando-se pelos meses restantes para o encerramento do contrato.

A ideia, no entanto, está diretamente relacionada ao fator subordinação de uma relação de emprego -o locatário que se submete a um contrato para o seu sustento não está em situação de arrependimento da locação (presume-se pela normalidade das situações – as presunções juris hominis como fatos normais da vida – artigo 375 CPC).

Tanto assim que, quando um sócio da empresa diz que irá se mudar – não tem sido observada a exclusão da multa – já que o sócio, em verdade não está subordinado à empresa – tem voz como empregador, não como empregado. A jurisprudência é pródiga em relação a tanto, observe-se:

Embargos à execução. Execução de título extrajudicial. Sentença de parcial procedência. Exclusão da condenação da multa rescisória fundada na transferência do local de trabalho do locatário. Insurgência recursal. Locatário que é sócio da empresa e não empregado, estando ausente vínculo de subordinação. Inaplicabilidade do parágrafo único do artigo 4º, da lei 8.245/91. Inadmissibilidade de interpretação analógica. Recurso provido. Tendo em vista a demonstração de que Rafael Malagoli Rocha também figura como sócio de empresa cuja transferência se impôs e, portanto, participa das deliberações relativas à administração direta, não se cogita do vínculo de subordinação, pressuposto para aplicação do artigo 4º, parágrafo único, da lei 8.245/91. Bem por isso, é descabida a exclusão da multa rescisória determinada na r. sentença. (TJ/SP; Apelação Cível 1086284-58.2018.8.26.0100; Relator (a): Kioitsi Chicuta; Órgão Julgador: 32a Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 32a Vara Cível; Data do Julgamento: 30/1/20; Data de Registro: 30/1/20)

"Locação residencial. Ação de cobrança da multa por rescisão antecipada. Locatário que alega ter sido transferido de posto de trabalho. Impossibilidade de, sendo sócio da empresa, invocar o art. 4º, parágrafo único da Lei nº 8.245/91, que pressupõe vínculo de subordinação. Reparos no piso da varanda que não tornavam o imóvel inabitável, e só não foram realizados com presteza em razão dos óbices impostos pelo próprio locatário. Ação procedente. Recurso desprovido." (Apelação Cível 1002509- 58.2017.8.26.0011 - 36a Câmara de Direito Privado rel. Des. Pedro Baccarat J. 27/3/18)

"Locação. Bem imóvel. Multa por resilição antecipada do contrato de locação. Inaplicabilidade do parágrafo único do art. 4º da lei 8.245/91. Transferência que ocorreu por iniciativa do próprio locatário, que é empresário. Impossibilidade de interpretação analógica. Transferência que deve ocorrer por determinação do empregador. Incidência de juros de mora regular. Certeza e exigibilidade da obrigação. Presunção juris tantum de que o título executivo extrajudicial preenche esses atributos. Sucumbência mantida. Recurso improvido" ( Apelação 0014572-89.2009.8.26.0019 29a Câm. de Direito Privado rel. Des. Hamid Bdine j. 11/6/14).

Neste último caso, inclusive, se tem colocado que os empresários não poderiam ser liberados do pagamento desta multa – mas, aqui está a razão para overruling (superação), essa jurisprudência de década atrás, não levou em conta a questão da reforma trabalhista que adveio em momento posterior e criou o fenômeno da pejotização (além do overruling – aqui existe espaço para questão diferencial - distinguishing).

Obviamente que não se tem que o sócio de grande empresa deva ser tratado do mesmo modo daquele que abre uma empresa para se prestar a ser um pejotizado – aqui a ausência de subordinação seria meramente aparente – o que se tem é que, para uma redução de encargos trabalhistas e tributários – uma pessoa que depende de trabalho para viver ficando à mercê e subordinação efetivas de uma corporação maior – como se empregado fosse passando a não ter disponibilidade para decidir em que lugar morará.

O ramo da engenharia é destacado como exemplo disso diante do grande número de demandas em que se reconhece a fraude pela pejotização indevida – muitas vezes engenheiros recém-formados ficam à mercê desse tipo de situação1 (além de outros em situação análoga – havendo evidente similitude de situações seria de se aplicar neste particular, enquanto não se estende a proteção legal – a norma prevista no artigo 4º LINDB para empregar a analogia em favor do minus habendi para redução de antinomia neste caso e verdadeira lacuna em situação nova que autoriza a mudança de postura da jurisprudência ante tudo que se expôs).

Tem-se que aferir em verdade, se o deslocado do local da prestação de serviços está se mudando porque sua vontade é residir em outro local ou se isso está sendo imposto por razões de necessidade de manter o emprego – eis que essa é a mens legis que anima a disposição do artigo 4º, par. único da Lei de Locações (sócios administradores, diretores etc não estariam aí albergados mas pequenos prestadores pejotizados estão em situação análoga à de empregados para a incidência da cláusula de exclusão de multa).

Pense-se no caso, muito comum, de engenheiros, mestres de obra (etc) que ficam em cidades acompanhando obras, e ao final dessas ou quando se faz necessário deslocamento para outra do mesmo grupo, tem-se que mudar – isso não se faz como uma escolha planejada ou porque se arrepende de morar na casa locada.

Essa situação é diferencial e, no sentir deste articulista, autorizaria uma mudança no entendimento de que o parágrafo único do artigo 4º Lei de Locações, teria interpretação restrita (numerus clausus) – ao menos no que tange aos pejotizados – a interpretação, por estarem presentes razões de operabilidade (operatividade) – deveria receber interpretação ampliativa (in numerus apertus).

Outro dado deve ser levado em conta, ainda em sede de operatividade (tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade como assevera o ideal platônico eternizado por Rui Barbosa) é o de que, por vezes (quem atua na área trabalhista bem o sabe – é que algumas dessas mudanças se fazem em casos dramáticos como situações de mobbing – assédio moral etc).

Tudo isso sem contar que a ideia seria a de fazer preservar ideais e prelados de boa-fé objetiva (artigo 422 CC) – imobiliárias por vezes tem empatia zero com situações como esta. Sem contar os deveres laterais – anexos ou satelitários de colaboração.

Assim, sabido que, ao receberem a notificação, os proprietários têm que analisá-la, para aferirem a veracidade da declaração do empregador e se a transferência de local de trabalho importa, efetivamente, na necessidade de mudança de residência e, em geral, se o locatário apresenta um documento – mesmo que unilateral – há que se conferir sua veracidade.

Imobiliárias e locadores hão de ter grande cuidado neste tipo de situação, doravante eis que, como sabido, a situação de demandar para haver valores acima dos devidos (se isso for feito de modo intencional – súmula 159 STF – e quando há orientação por advogado este, como conhecedor da lei – ignorantia legis nemo excusat – artigo 3º LINDB – deve conversar com seu cliente para expor o risco) gera o dever de pagar a multa legal pela cobrança em excesso (artigo 940 CC) o que pode ser apontado, sem reconvenção ou pedido contraposto – em qualquer fase de um processo (Tema Repetitivo STJ 622).

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1 TST - : Ag 104163420145030032  Acórdão • Data de publicação: 01/04/2022 AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015 /2014 E ANTERIOR À LEI 13.467 /2017 . TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA. FRAUDE NA CONTRATAÇÃO. SUBORDINAÇÃO DIRETA. VÍNCULO DE EMPREGO DIRETAMENTE FORMADO COM A EMPRESA TOMADORA DE SERVIÇOS. No tocante aos contratos de terceirização, é certo que o STF, por maioria, no julgamento do ARE 791.932/DF , ocorrido em 11/10/2018 e publicado no DJe de 6/3/2019, representativo da controvérsia e com repercussão geral reconhecida (Tema nº 739), relatado pelo Min. Alexandre de Moraes, entendeu pela inconstitucionalidade parcial da Súmula 331 /TST, a fim de ser reconhecida a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim , reiterando o entendimento exarado pelo Plenário do STF em 30.08.2018, no julgamento da ADPF-324 e do RE-958252 , com repercussão geral (mas de cujos efeitos esta Turma ainda aguarda modulação). Todavia, o caso concreto não se amolda à tese estabelecida pelo Excelso Pretório, tampouco com ela se incompatibiliza, porquanto demonstrado no acórdão regional que o tomador se valeu de artifício fraudulento para mascarar a relação jurídica entre as empresas, haja vista a interferência direta da empresa contratante. Em hipóteses como tais, esta Corte Superior entende ser cabível o reconhecimento do vínculo de emprego. Julgados. Agravo desprovido.

TRT-2 - 10014435720165020056 SP Acórdão • Data de publicação: 08/07/2021 VÍNCULO DE EMPREGO. PEJOTIZAÇÃO. ENGENHEIRO EM TRABALHO DE MINAS. APROXIMAÇÃO POR ALTERIDADE. SUBORDINAÇÃO NECESSÁRIA. ESTRATÉGIA EMPRESARIAL. CONTRATAÇÃO SEMPRE POR MEIO DE PESSOA JURÍDICA. FRAUDE. A terceirização, segundo o STF, é possível amplamente, inclusive das atividades-fim do tomador de serviços, o que não significa que qualquer posição na empresa pode ser ocupada por pessoas jurídicas. As tarefas que demandam inserção do prestador de serviços no ciclo produtivo de outrem, mediante alteridade, devem ocorrer por subordinação, o que revela a existência de vínculo de emprego. O engenheiro nos campos de obras da empresa que explora mineração não detém autonomia de natureza distinta à técnica, para justificar a terceirização. Demais disso, a prova apontou para a necessidade do cumprimento de jornada, por meio de controle dos dias trabalhados, e atenção aos parâmetros já estabelecidos de cronograma e métodos. Se para se inserir no ciclo produtivo de outrem, o prestador ocupa lugar por alteridade, não há como rejeitar a existência do vínculo de emprego. Recurso provido.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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