A realização de licitações no setor público é um procedimento obrigatório a menos que haja exceções previstas por lei. Essas diretrizes estão estipuladas no artigo 175 da Constituição Federal e nos artigos 1º e 2º da lei 14.133/21 (nova lei de licitações) que ratificam o princípio da obrigatoriedade de licitar. Assim, o principal propósito da licitação é escolher a proposta mais vantajosa para a administração pública, assegurando o princípio constitucional da igualdade entre os concorrentes. Isso desempenha um papel fundamental para que os contratos públicos sejam firmados de forma justa e proporcionem benefícios para a administração pública que disporá do bem ou serviço necessário, mitigando, assim, irregularidades durante a celebração de contratos, aquisição ou alienação de bens e serviços em nome do governo.
Contudo, a contratação pública tem sido reconhecida como uma esfera suscetível ao desperdício de recursos públicos, má administração, falta de eficiência e práticas corruptas, tanto em nações desenvolvidas quanto em países em desenvolvimento.
A lei 14.133/21 tem como objetivo modernizar as normas aplicáveis às licitações e contratos administrativos. Ela busca consolidar normas criadas após a promulgação da lei 8.666/93 (atualmente revogada), além de incorporar práticas consideradas relevantes por acadêmicos e gestores para o aprimoramento da atividade contratual do Estado. Um dos temas destacados pelo legislador é a corrupção nas contratações públicas, que ganhou notoriedade devido aos escândalos revelados por várias investigações em anos recentes. A preocupação com possíveis desvios já existia e motivou a criação da lei 8.666/93, que agora ganha novas regras e perspectivas com a lei 14.133/21 que tem por objetivo superar as limitações e desafios da antiga Lei de Licitações e proporcionar maior eficiência, transparência, agilidade e segurança jurídica nos processos licitatórios.
A pandemia da COVID-19 apresentou uma série de desafios significativos para as entidades públicas. A demanda global por equipamentos de proteção individual - EPIs, respiradores e outros suprimentos médicos essenciais resultou em escassez e competição feroz por esses recursos. Também, a necessidade de contratar serviços médicos, como instalação de hospitais de campanha e laboratórios de testes, rapidamente, somado a abundante distribuição de fundos financeiros, combinada com a necessidade de rápida implementação para lidar com a situação de emergência, resultou na flexibilização das verificações e das ações de responsabilização. Essa conjuntura agravou-se pela carência de informações precisas e pela inadequada transparência na gestão dos recursos públicos. A soma desses fatores, junto aos obstáculos na administração da crise, criou um ambiente propício ao aumento da corrupção.
A palavra "corrupção," originada do termo latino "corruptus," denota a ideia de "quebrar em pedaços" ou, em outras palavras, decompor e deteriorar algo. Quando se trata do âmbito estatal, a corrupção pode ser definida como o uso do poder ou autoridade para obter vantagens indevidas, seja para si próprio ou em benefício de terceiros. Alguns autores acrescentam que o termo corrupção abrange desde pequenas infrações éticas até grandes fraudes contra a Administração Pública em diversas esferas governamentais. Dado que esse fenômeno gera amplas consequências para a sociedade, incluindo aumento de custos, desestabilização das instituições, deterioração dos serviços públicos e agravamento de problemas sociais, entre outros impactos prejudiciais, a corrupção tem sido um tema constante de estudo e uma questão permanente na agenda das principais economias do mundo.
No contexto brasileiro, a corrupção durante a pandemia tornou-se visível por meio das operações especiais conduzidas pela Polícia Federal - PF. Em dados coletados até julho de 2021 e divulgados amplamente nos noticiários e portais de instituições públicas, a Polícia Federal já havia conduzido mais de 100 operações para coibir o desvio e uso inadequado dos recursos federais destinados ao combate à pandemia da COVID-19. O valor total de contratos de produtos e serviços sob investigação alcançou cerca de R$ 3,2 bilhões. Também, entre abril de 2020 a julho de 2021, a Polícia Federal efetuara 158 prisões temporárias, 17 prisões preventivas e realizara 1.536 buscas e apreensões em 205 municípios de 26 estados brasileiros.
Teorias que elucidam o acontecimento da corrupção contribuem para entender sua expansão em circunstâncias típicas e atípicas, como a pandemia de Covid-19. O "Triângulo da Fraude", concebido por Donald R. Cressey em 1953, oferece um modelo para compreender o incentivo à fraude. Ele envolve três elementos que convergem para a prática da corrupção: pressão, racionalização e oportunidade.
Pressão se refere aos estímulos contextuais que levam um indivíduo a cometer fraude, como desejos e ambições que pressionam a alcançar metas. Isso, frequentemente, está relacionado a questões financeiras, sociais ou políticas, abrangendo ganância, alto padrão de vida, dívidas pessoais, problemas financeiros, vícios e jogos de azar.
Racionalização refere-se à justificação e desculpas que levam à conduta desonesta e antiética. Envolve a criação de uma justificativa moralmente aceitável para a falta de integridade pessoal. Isso se relaciona com o dilema ético do indivíduo que precisa justificar, para si mesmo e para outros, que sua ação fraudulenta não está errada.
Por fim, o terceiro fator, a oportunidade percebida, é o que viabiliza a ocorrência de fraudes, já que o autor do ato ilegal identifica uma brecha no ambiente que possibilita a prática da fraude. Essa percepção surge devido à falta de eficácia nos sistemas de controle interno ou à fragilidade do sistema de governança, criando assim um cenário propício para a ocorrência de fraudes nas organizações.
No ano de 2004, surgiu um quarto elemento que se somou aos elementos anteriores, formando o chamado "Diamante da Fraude". Essa quarta variável diz respeito à capacidade do indivíduo de cometer a fraude, abrangendo fatores como sua posição de autoridade, habilidade para compreender e manipular sistemas contábeis, bem como o conhecimento e as habilidades necessárias para contornar os controles internos. Em suma, a capacidade envolve as competências e aptidões requeridas para identificar a oportunidade e concretizar o ato ilícito.
Entre esses componentes, a oportunidade é o fator sobre o qual a instituição ou órgão possui maior margem de controle para diminuir a ocorrência de comportamentos corruptos. Através do aprimoramento, reforço e monitoramento dos controles internos, é viável estabelecer um ambiente desfavorável para que os indivíduos cometam atos de fraude organizacional.
A nova Lei de Licitações, lei 14.133/21, representa um marco na modernização e atualização das práticas de contratação pública no Brasil introduzindo dispositivos importantes em busca de garantir maior transparência, igualdade de oportunidades e aprimoramento dos controles interno. Entre os instrumentos anticorrupção que a lei reforçou, cita-se a concretização da segregação de funções colocada como princípio e, também, como regra para evitar que um mesmo servidor atue simultaneamente em funções suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e fraudes (art. 7 §1º) e a estruturação da gestão de riscos e dos controles organizada em três linhas de defesa, concebida nas controladorias e auditorias internas, com o objetivo de posicionar diferentes agentes estrategicamente para lidar com eventos indesejados nas instituições (art. 169, caput, incisos I a III).
No que diz respeito às empresas contratadas, a nova lei estipula normas para a implementação de programas de integridade, considerados ferramentas cruciais para prevenir casos de corrupção e desvios nas relações entre o setor público e privado.
A obrigatoriedade de adotar um programa de integridade é estabelecida em duas situações: (i) para contratos de obras, serviços ou fornecimento de grande vulto - valores acima de duzentos milhões de reais - com a empresa responsável pela implementação no prazo de seis meses após a assinatura do contrato (art. 25, §4º); e (ii) para a reabilitação de licitante ou contratado penalizado por apresentação de documento ou declaração falsa, ou por ato considerado lesivo à Administração pela Lei Anticorrupção, conforme prevê o art. 163, parágrafo único, da lei 14.133/21.
No Código Penal brasileiro, a reprimenda da corrupção é geralmente classificada em duas categorias principais: corrupção ativa (art. 333), que se refere ao comportamento daqueles que oferecem ou prometem benefícios impróprios a funcionários públicos em troca de determinadas ações, e corrupção passiva (art. 317), que caracteriza a conduta dos funcionários públicos que solicitam ou aceitam benefícios indevidos. Todavia, somado a reprimenda penal, o combate a corrupção deve também ser trabalhado nos fatores que impulsionam a sua prática, havendo, desta forma, a necessidade de ações que reprimam e previnam a concretização dos atos ilegais e imorais.
Apesar dos avanços significativos na legislação, é imperativo que a administração pública pós-covid aprimore ainda mais a transparência, ultrapassando os métodos convencionais, como os portais de transparência, e concentre seus esforços na eficiência do acesso à informação. A transparência "digital e disruptiva", por parte de órgãos de controle como o envio de informações personalizadas sobre temas relevantes e outras práticas é considerada crucial para a melhoria do acesso à informação e o combate aos atos corruptivos.
Em conclusão, as teorias que abordam o fenômeno da corrupção, como o "Triângulo da Fraude" e o "Diamante da Fraude", oferecem uma compreensão aprofundada dos fatores que impulsionam esse comportamento, destacando a pressão, a racionalização, a oportunidade e a capacidade como elementos cruciais. Em particular, a oportunidade surge como o componente mais passível de controle por parte das instituições, proporcionando uma via para mitigar comportamentos corruptos. O aprimoramento, reforço e monitoramento dos controles internos são, assim, ferramentas essenciais para criar um ambiente desfavorável à prática de fraudes organizacionais, especialmente em contextos desafiadores, como o da pandemia de Covid-19.
Assim, conclui-se que a lei está posta. Cabe a nós a implementação e a boa prática com o intuito de assegurar o bem publico e um futuro mais resiliente.
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