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Qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica como pena antitruste não pecuniária

Artigo aborda penas não pecuniárias na Lei de Defesa da Concorrência, focando no artigo 38, inciso VII (lei 12.529/11), destacando medidas para eliminar efeitos nocivos à ordem econômica. Análise baseada em doutrina, legislação comparada e jurisprudência do Cade de 2012 a 2020.

25/1/2024

O presente artigo faz parte de uma série tratando das penas não pecuniárias aplicadas a pessoas físicas e jurídicas com base na Lei de Defesa da Concorrência – LDC (lei 12.529/11), especificamente no artigo 38 e seus incisos, e que estão explicitados mais detalhadamente na obra coletiva “Sanções não pecuniárias no antitruste”, organizada pela Profa. Amanda Athayde e publicada pela Editora Singular1.

Neste artigo, trataremos da pena de “qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica”, constante do artigo 38, inciso VII da lei 12.529/11, objeto de análise aprofundada na referida obra pelas mesmas autoras desse artigo. O estudo levou em consideração a doutrina existente sobre o assunto, legislação comparada e a análise da jurisprudência do Cade nos casos em que essa pena foi aplicada entre 2012 e 2020.

Mas que pena antitruste não pecuniária é essa?

No Brasil, o tema é ainda pouco explorado. De um lado, fortalece a capacidade interventiva das autoridades antitruste para suspensão e/ou reversão de efeitos anticompetitivos criados no mercado por infrações à ordem econômica, além de ampliar o efeito dissuasório da, somando-se à aplicação de multas.2 De outro, a aparente liberdade concedida pelo inciso VII não dá à autoridade poderes irrestritos para extra legem prever novas sanções de forma discricionária e ad hoc.3 Para a modulação da sanção impõe-se então, o desafio de se identificar que os atos sancionados são suficientemente graves ou que a pena não pecuniária atende ao interesse público geral, o que só seria aplicável caso nenhuma outra penalidade prevista em lei fosse capaz de cessar a infração ou gerar punição adequada.4 Assim, a amplitude do texto legal impõe à autoridade um ônus qualificado na demonstração da adequação, razoabilidade e proporcionalidade das medidas impostas, como manda a lei 9.784/99, que regula o processo administrativo a nível federal.5

Feitas essas breves considerações iniciais, resta perguntar: esse tipo de pena é uma peculiaridade do antitruste brasileiro ou existem experiências semelhantes em outras jurisdições?

A existência de um dispositivo com redação ampla atribuindo à autoridade concorrencial margem para a modulação de sanções não pecuniárias não destoa da experiência internacional. É o caso de EUA, Japão, Austrália, Canadá e União Europeia6; mas, uma análise sobre a jurisprudência desses países indica, como regra, uma baixa recorrência da aplicação desse tipo de sanção. Exemplos excepcionais encontrados são (i) a sanção japonesa de revisão do regulamento interno da empresa para incluir medidas de responsabilização dos funcionários envolvidos na prática; e, no âmbito da União Europeia, as obrigações de (ii) divulgação de informações, (iii) revisão de contratos, (iv) desvinculação de produtos vendidos, (v) e garantia de interoperabilidade.

A exceção notável é a Comissão Europeia. Para além Apesar de haver uma adesão maior ao mecanismo adoção de commitments, regulado pelo Article 9 do EC 1/03, em que os agentes envolvidos propõem soluções negociadas para enfrentar os efeitos de uma prática anticompetitiva;7 ainda há vasta jurisprudência de aplicação do Article 7, que regula a imposição (i.e., sanções) de medidas comportamentais e estruturais em reação a condutas anticompetitivas, com destaque para as famosas decisões nos casos Caso Microsoft,8 Mastercard9, CISAC10, Motorola11 e, mais recentemente, o caso Google Shopping12. Nesses e outros casos, para além de sanções de desinvestimento, a autoridade europeia já impôs obrigações de contratar, obrigação de não discriminar, obrigação de informar clientes, obrigações de adotar programas de compliance, licenciamento de propriedade intelectual e obrigações de “desempacotamento” (unbundling) de produtos. Com exceção da obrigação de licenciamento de direitos de propriedade intelectual, que está prevista na lei 12.529/11 explicitamente, as demais poderiam ser enquadradas na hipótese objeto deste artigo.

E como o Cade tem aplicado esse tipo de pena ao longo dos anos?

À primeira vista, este inciso VII parece munir a autoridade antitruste brasileira de amplo poder sancionatório. Na prática, contudo, o que se vê é que esta previsão não tem resultado em uma atuação “criativa” das autoridades de defesa da concorrência, no sentido da adoção de sanções “inusitadas”. Refletindo a experiência estrangeira, o Cade tem se utilizado da previsão do art. 38, VII da lei 12.529/11, essencialmente para aplicar sanções de natureza comportamental (i.e., obrigações de fazer ou não fazer) voltadas a garantir a cessação da conduta ilícita sancionada pela autoridade, e não para uma atuação “criativa”. A etapa empírica da pesquisa considerou os casos julgados pelo Cade no período de 2012 a 2020, com base nos dados fornecidos pelo Serviço de Informação ao Cidadão do CADE - SIC/CADE. Dos 274 casos de condutas anticompetitivas julgados no período, em 99 deles houve a aplicação de penas não pecuniárias do artigo 38 da lei 12.529/11 e, em 59 desses, houve a aplicação da pena do inciso VII que tratamos aqui.

O que se percebe na prática do Cade é que as decisões que, concretamente, impõem penas não pecuniárias nos termos do inciso VII do art. 38 da lei 12.529/11 raramente são acompanhadas de motivação específica indicando a necessidade de aplicação de sanção não monetária ou sua adequação ao interesse público geral, à específica conduta sancionada ou sua gravidade. De outro lado, diferentemente do que sugerem os autores acima mencionados, a experiência brasileira não permite indicar que as penas cominadas nos termos do art. 38, VII da lei 12.529/11 são efetivamente aplicáveis a casos “mais graves” ou excepcionais. Conforme se detalhará adiante, são poucos os casos de condenação por cartel - sabidamente a mais grave infração à ordem econômica - que preveem a pena do inciso VII. Além disso, o que se percebe da experiência brasileira é que o Cade não se utilizou do dispositivo para inovar - seja para criar sanções ad hoc, seja para demandar atos ou providências diversos entre si.

A maioria dos casos (65%) está relacionado a condenações por influência a adoção de conduta comercial uniforme, de imposição de tabelas de preço por sindicatos, associações e outras entidades, bem como condutas unilaterais praticadas por esses mesmos agentes, limitando a autonomia comercial e competitiva de agentes de mercado, sobretudo no contexto dos inúmeros julgamentos de casos envolvendo tabelas médicas entre 2014 e 2015. Destacam-se, na amostra, dois tipos de sanções “alternativas” impostas: a imposição da obrigação de divulgação da decisão aos associados ou filiados o teor da decisão do Cade, de forma eficaz e por qualquer meio, e a obrigação de se abster de promover práticas que resultassem na uniformização ou coordenação de condições comerciais ou competitivas entre seus associados ou filiados, incluindo, por exemplo, a elaboração, negociação ou divulgação de tabelas de preços ou valores dos serviços prestados, a promoção de negociações coletivas visando à uniformização de preços, honorários ou condições de prestação de serviços, a promoção de boicotes, coações retaliações ou paralisações coletivas, e outras práticas de maneira geral relacionadas às restrições à rivalidade e concorrência impostas por entidades setoriais. Por fim, destaca-se a determinação de cessação da prática ilícita. Essas sanções parecem estar relacionadas à garantia de adesão à decisão do Cade de considerar ilícitas práticas que eram muito comuns em determinados setores da economia.

Em casos pontuais, entretanto, é possível identificar a aplicação de obrigações comportamentais que ultrapassam a mera cessação da prática considerada ilícita, impondo medidas mais interventivas nas atividades econômicas envolvidas. Mas mesmo nestes casos, percebe-se que as obrigações constituíam passo essencial para garantir a cessação dos efeitos anticompetitivos identificados nos mercados.13 Assim, por mais que a obrigação tenha, em teoria, excedido a mera exigência de compromisso de cessação da conduta, na prática, a autoridade não exigiu obrigações heterodoxas em relação à sua prática corrente. A única condenação que parece ter se desviado da tendência geral de imposição de obrigação de cessação da conduta praticada é aquele envolvendo o cartel nos mercados de cimento e concreto, em que, além de outras sanções não pecuniárias, aplicou-se uma sanção consistente em obrigações de “não concentração” do mercado.14

Vê-se, portanto, que salvo casos pontuais, a jurisprudência do Cade em relação às penas não pecuniárias previstas no art. 38, inciso VII da lei 12.529/11 está essencialmente restrita a obrigações gerais de cessação da prática e ampla divulgação das condenações e especialmente concentrada em casos de julgamentos de condutas uniformes e tabelas de preço. Não por outra razão, a maior parte das decisões que aplicaram sanções nos termos do art. 38, VII está concentrada entre os anos de 2014 e 2015, justamente quando se concluíram diversos processos administrativos relacionados a essas condutas15. Em apenas um caso pode-se perceber que o Cade foi “criativo” na imposição de outros atos ou providências. O gráfico abaixo ilustra esse cenário:

Imagem 1 – Das grandes categorias de sanções de “qualquer outro ato ou providência necessários” aplicadas pelo Cade nos termos do art. 38, VII da lei 12.529/11

Fonte: elaboração das autoras.

De fato, conforme explorado acima, há indicações na doutrina nacional que questionam a possibilidade de aplicação de sanções verdadeiramente inovadoras, ou seja, não previstas expressamente nos demais incisos do art. 38, sobretudo pelo potencial violação ao princípio da legalidade que deve orientar os atos da administração pública. Poder-se-ia, então, cogitar de uma limitação inerente ao texto legal, impossibilitando a imposição de “qualquer outro ato ou providência”. Apesar disso, há que se mencionar que a legislação também prevê outros instrumentos que, se combinados e interpretados de forma sistemática com o texto do art. 38, VII permitiriam maior espaço de inovação para autoridade, sem incorrer em potencial ilegalidade. Veja-se que a possibilidade legal, por exemplo, conferida pelo art. 34 da própria lei 12.529/11 de se aplicar o instrumento da desconsideração da personalidade jurídica em determinadas hipóteses, somada à sanção prevista no Art. 38, V, que permite a transferência do controle societário.

Resta à autoridade antitruste brasileira, portanto, alcançar a sanção ótima mediante uma adequada fundamentação e motivação do ato administrativa, combinando, se necessário, sanções pecuniárias e não pecuniárias que sejam adequadas ao caso concreto.

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1 ATHAYDE, Amanda. (Org.) Sanções não pecuniárias no antitruste. 1ª Ed. São Paulo: Editora Singular, 2022.

2 OLIVEIRA, Gesner; RODAS, João Grandino. Direito e Economia da Concorrência. Renovar, 2004.

3 CHIQUITO DOS SANTOS, Flávia. Aplicação das Penas na Repressão a Carteis. Lumen Juris, 2016, p. 150. MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a Carteis. São Paulo: Singular, 2013, p. 122.

4 GILBERTO, Andre Marques. O Processo Antitruste Sancionador. São Paulo: Singular, 2016.

5 Vide art. 2°, parágrafo único, incisos VI, VIII e IX.

6 Regulamento n° 1/2003, art. 7. O regulamento não detalha as medidas comportamentais ou estruturais que podem ser determinadas pela Comissão Europeia, prevendo, apenas disposições sobre multas (art. 23) e multas diárias aplicáveis em caso de descumprimento das medidas aplicadas nos termos do art. 7 (art. 24).

7 Alexiadis e Spenda (2013).

8 Caso COMP/C-3/37.792

9 Caso T-111/08

10 Caso T-442/08.

11 Caso 39985.

12 Caso AT.39740.

13 É o caso (i) da condenação da empresa PST Eletrônica S.A. por abuso de posição dominante no mercado de alarmes automotivos, em que o Cade impôs a obrigação de aditamento dos contratos que a empresa celebrava com todos seus distribuidores, de forma a excluir qualquer obrigação de exclusividade ou outras cláusulas restritivas. (Processo Administrativo n° 08012.005009/2010-60); (ii) da condenação da Unimed do Vale do Taquari, o Cade impôs a obrigação de aditar seu Estatuto Social para retirar cláusulas que, segundo a autoridade, viabilizaram a conduta anticompetitiva (Processo Administrativo n° 08012.005524/2010-40); e (iii) da condenação do Sindicato das Academias do Rio de Janeiro, em que a autoridade impôs a obrigação de aditamento da Convenção Coletiva de Trabalho, para retirar qualquer menção à exigência de número mínimo de monitores nas academias (Processo Administrativo n° 08012.011142/2006-79).

14 O termo é empregado em OLIVERIA, Paulo Eduardo Silva. O que cabe em qualquer outro ato ou providência? Critérios de proporcionalidade na aplicação do inciso VII do artigo 38 da Lei nº 12.529/2011. In: Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Coletânea de Artigos em Defesa da Concorrência e Direito Econômico: Estudos de Caso, v.2– Brasília: CADE, 2021, pp. 61-82, p. 75.

15 Sobre o tema, veja-se, por exemplo, que o próprio CADE reconhece que houve “série de processos administrativos, realizados no segundo semestre de 2014 e início do ano de 2015, cujos objetos foram a adoção da CBHPM (Classificação Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos) pelas entidades médicas”, conforme CADE, DEE, “Cadernos do Cade – Mercado de Saúde Suplementar: condutas”, Edição revista e atualizada, dezembro/2021, p. 39.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2024. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

Anna Binotto
Doutoranda em Direito Comercial e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisadora visitante na LMU em Munique e no Instituto Max Planck em Hamburgo. Advogada no VMCA em São Paulo. Membra da CECORE-OAB/SP, do Comitê de Concorrência do Ibrac e da Rede WIA.

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