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Index argumentorum prohibitorum

O Index Librorum Prohibitorum, lista de livros proibidos pela Igreja Católica, restringia ideias heréticas. Iniciou em 1559 e foi abolida em 1966 por ordem do Papa Paulo VI.

24/1/2024

O Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) foi uma lista notória de livros proibidos pela Igreja Católica. A Cúria Romana empenhava-se em restringir a disseminação de ideias consideradas heréticas, lascivas ou contrárias à moral e às doutrinas da Igreja. A primeira versão deste índice foi publicada em 1559, e a sua abolição ocorreu somente em 1966, por ordem do Papa Paulo VI.

Guardadas as devidas proporções e anacronismos, observamos hoje uma espécie de cruzada moral contra alguns tipos de ideias e argumentos – frequentemente de defesa – que, segundo alguns, deveriam ser proibidos/vedados. É o que se poderia chamar de Index Argumentorum Prohibitorum (Índice de Argumentos Proibidos) no direito brasileiro, afetando diretamente o direito de defesa e com a velha pretensão de se criminalizar a advocacia.

A gênese do nosso Índice de Argumentos Proibidos se deu por unanimidade de votos do Supremo Tribunal Federal. Foi no julgamento da ADPF 779, ainda em agosto do ano passado, quando se declarou a inconstitucionalidade da legítima defesa da honra - por décadas utilizada como tese defensiva em casos de feminicídio. É óbvio que esse tipo de argumento é retrógrado, deplorável e indevido porque marcado pelo machismo estrutural. Infelizmente, porém, esse era um argumento muitas vezes vitorioso porque nossa sociedade, representada pelo Conselho de Sentença no Tribunal do Júri, ainda é patriarcal, machista e retrógrada em sua grande maioria. Quando o STF julgou a ADPF 779, portanto, muitos elogiaram a proatividade da Corte em reconhecer a inconstitucionalidade desse tipo de discurso e impulsionar a roda da história em direção à igualdade de gênero.

Recentemente, a Procuradoria-geral da República (PGR) investiu contra um novo discurso. Por meio da ADPF 1107, proposta no último dia 14 de dezembro, a PGR pede que o STF, em casos de crimes sexuais, “vede expressamente tanto a prática de desqualificação da vítima, em geral promovida pela defesa do acusado do crime, como a consideração ou a ratificação judiciais de alegações nesse sentido, que direcionem o julgamento respectivo para a absolvição do acusado ou, de algum modo, o beneficiem na aplicação da pena.” O pedido da ADPF 1107 vai mais longe e exige que se imponha ao órgão jurisdicional a busca pela punição nas esferas penal e administrativa contra quem lançar mão desse tipo de estratégia defensiva.

Em outras palavras: se a ADPF 1107 for procedente teremos a nossa segunda tese incluída no Index Argumentorum Prohibitorum e o risco de advogados e advogadas responderem a processo-crime porque empregaram a “tese proibida”. E como muito bem sabem os estudiosos da criminologia, “outra coisa não se pretende com a criminalização da advocacia senão a relativização das garantias judiciais dos réus e das prerrogativas de seus patronos, para se chegar, com mais rapidez e com um menor custo, ao único resultado processual que poderá atender aos anseios sociais inflamados pelo discurso de lei e ordem: a condenação e a prisão dos acusados, sejam elas justas ou injustas”1.

De novo: ninguém concorda com estratégias que passam pela humilhação ou revitimização de mulheres (ou de quaisquer vítimas), o que merece reprovação porque reprodutora do patriarcado. Mas os exemplos das ADPFs 779 e 1107 nos permitem propor uma reflexão maior. Hoje aplaudimos a proibição dessa ou daquela tese que detestamos e que realmente queremos ver expurgadas dos foros, dos autos e das mentes. Mas e depois? Quais serão as próximas teses defensivas que serão proibidas? Quais são os critérios para se proibir o exercício do direito de defesa? Como fica a ampla (e algumas vezes plena) defesa de que nos fala a Constituição Federal em suas cláusulas pétreas? E será que existirão teses acusatórias proibidas?

Aliás, se fosse para ser coerente na proteção da dignidade humana – como se argumentou nos dois casos acima mencionados –, a PGR poderia começar olhando para dentro do próprio Ministério Público. Afinal, há inúmeros discursos de acusação que, a bem da verdade, violam a dignidade humana. Basta assistir a qualquer julgamento no Tribunal Júri em que o acusado é policial e a vítima suspeito de algum crime. Os antecedentes criminais da vítima são enxovalhados pelo discurso acusatório. “Morreu porque era bandido; morreu porque era traficante; morreu porque merecia”. O Ministério Público pode achincalhar a memória da vítima assassinada porque era acusada e/ou condenada por esse ou aquele delito? Ora, e nossa Constituição não veda a pena de morte em tempos de paz (art. 5º, XLVII)? Será que esse tipo de prática acusatória também fará parte do nosso Índice de Argumentos Proibidos?

E o que acontece se a “tese proibida” for utilizada em decisão judicial? Haverá responsabilidade criminal do magistrado por isso? O velho Rui Barbosa já nos ensinava desde há muito que inexiste crime de hermenêutica porque “a questão, em última análise, se reduz, pois, a isto: um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas. Alguma das duas pode ser criminosa, quando ambas exprimem o fato mental, involuntário e honesto, de uma convicção?”2

“Deixai, ó vos que entrais, toda a esperança”3 – era o que estava escrito no portal do inferno, segundo Dante Alighieri nos relatou em sua Divina Comédia. O alerta do poeta florentino ainda nos serve hoje: escreveram a primeira página do Index Argumentorum Prohibitorum e abriram o portal para diminuir o espectro do direito de defesa no processo penal. A boa notícia é que Dante, pelo menos, conseguiu sair do inferno.

______________

1 BIDINO, Claudio. A criminalização da advocacia penal e o Projeto de Lei do Senado 500/2015. Boletim do IBCCRIM, n. 282, Maio/2016.

2 BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa: posse de direitos pessoais, o júri e a independência da magistratura. V. XXIII, 1896, t. III, p. 240. Disponível em: https://bibliotecadigital.stf.jus.br/xmlui/handle/123456789/182 Acesso em: 18.2.2022

ALIGHIERI, Dante. Dante Alighieri: A Divina Comédia.  Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb00002a.pdf p. 31

Theuan Carvalho Gomes
É mestre em direito pela UNESP e advogado criminalista no escritório Cláudia Seixas Sociedade de Advogados.

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