No Brasil, as compras realizadas por cartão de crédito representam o segundo meio de pagamento mais utilizado. Consoante pesquisa realizada pelo Serasa eCred, metade dos consumidores, inclusive, tem quatro ou mais cartões.1
Em suma, mesmo com os vários sistemas de segurança para identificar e bloquear fraudes, os possuidores de cartão de crédito ainda são vítimas de vários golpes.
Outrossim, a empresa de cibersegurança Kaspersky, identificou que dois em cada dez usuários de cartão de crédito já foram vítimas de golpes. Embora as instituições financeiras invistam em tecnologias para prevenir que crimes aconteçam, fraudadores agem de diversos meios e formas para enganar vítimas e conseguir proveito econômico.2
Nesse contexto, analisamos a responsabilidade civil proprietário de estabelecimento comercial por conduta praticada pelo funcionário que se apropria do cartão de crédito de cliente esquecido no estabelecimento. Situação hipotética é a seguinte:
João, cliente assíduo de determinado estabelecimento comercial, adentra ao mesmo com objetivo de adquirir água mineral. João pretende realizar o pagamento de sua compra utilizando cartão de crédito. Após realizar o pagamento João esquece o seu cartão de crédito na loja. Pedro, atendente do referido estabelecimento comercial [caixa], encontra o cartão de crédito de João e faz a aquisição de bens se utilizando do cartão de crédito do cliente [João].
Em primeiro plano cumpre explicitar que o dono do estabelecimento comercial é responsável civilmente pela conduta do funcionário [João] que venha a utilizar cartão de crédito de cliente sem autorização. A responsabilidade civil do proprietário poderá ser alegada pelo cliente, na busca de reparação pelos danos materiais e morais causados.
Nesses termos, argumenta Nelson Rosenvald:3
A responsabilidade civil está fundada no princípio do neminem laedere, ou seja, a fórmula, de elaboração romana, que nos recomenda agir de forma a não lesar os direitos de outrem. Quando o dano ocorre seja moral, material ou estético busca-se compensar, ainda que parcialmente, o equilíbrio perdido. A responsabilidade civil centra-se, portanto, na obrigação de indenizar um dano injustamente causado.
Assim, o mecanismo da responsabilidade civil visa, essencialmente, à recomposição do equilíbrio econômico desfeito ou alterado pelo dano.4
Ademais, o advogado especialista em fraudes bancárias David Vinícius do Nascimento Maranhão Peixoto, informa que a responsabilidade civil se divide em objetiva e subjetiva. A responsabilidade civil aplicada aos donos de estabelecimento comercial deve ser analisada conforme explicitada no Código de Defesa do Consumidor – CDC:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
- o modo de seu fornecimento;
- o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
- a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
- que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
- a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Segundo assente na jurisprudência majoritária a responsabilidade dos fornecedores, segundo o CDC [art. 14], é objetiva.5 Portanto, os proprietários de estabelecimento comercial respondem pelos danos causados aos consumidores em razão de defeitos nos serviços que prestam.
Adverte o advogado Douglas Romero Souza de Oliveira, que o serviço será considerado defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, dentre as quais o modo de seu fornecimento, o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperava a época em que foi fornecido [CDC, art. 14, § 1º].
Os especialistas informam, ainda, que aquele que, por ato ilícito [CC, arts. 186 e 187], causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo [CC, art. 927]. O direito indenizatório exige, entretanto, que se comprove o dano, a culpa lato sensu [dolo ou culpa stricto sensu] do agente causador, e o nexo de causalidade entre a culpa e o evento danoso.
Dito isso, faz-se necessário analisar a conduta daquele utiliza cartão de crédito esquecido no estabelecimento comercial como se proprietário fosse.
Na ocasião, é imperioso especificar a conduta praticada e diferenciar os tipos penais de Apropriação Indébita [art. 168, CP], Apropriação de Coisa Havida Por Erro, Caso Fortuito ou Força da Natureza [art. 169, CP], e Estelionato [art. 171, CP].
Segundo melhor doutrina, na apropriação indébita o bem jurídico tutelado é a propriedade. O agente, abusando da condição de possuidor ou detentor, passa a ter o bem móvel como seu, dele arbitrariamente se apropriando.6
O comportamento nuclear do tipo se consubstancia no verbo apropriar-se [assenhorar-se, tomar para si] de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou detenção,7 passando a agir como se dono fosse. Logo, a vítima deve entregar voluntariamente o bem. A posse ou a detenção deve ter a concordância expressa, ou tácita do proprietário.
Na apropriação de coisa havida por erro, não existe violação ou abuso da confiança por parte do agente, visto que a coisa não passa para esfera de domínio do réu por livre deliberação da vítima. O bem chega em suas mãos por de erro, caso fortuito ou força da natureza.
Semelhante ao art. 168 [apropriação indébita], somente um verbo constitui o núcleo do tipo: apropriar-se. A diferença entre os dois tipos penais é a forma como a coisa chega às mãos do agente. Na apropriação indébita, o proprietário, por confiança, entrega a coisa ao autor. Na apropriação de coisa havida por erro [art. 169], o agente adquire a posse ou detenção por erro, caso fortuito ou força da natureza [não há deliberação do dominus]. Segundo Rogério Greco:8
“O núcleo apropriar é utilizado no sentido de tomar como propriedade, tomar para si, apoderar-se de uma coisa alheia móvel. No entanto, ao contrário do que ocorre com a apropriação indébita, o agente não tinha, licitamente, a posse ou a detenção da coisa. Aqui, ela vem ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza”.
Por fim, o estelionato é caracterizado pelo uso de artifícios para induzir alguém a erro e, assim, obter vantagem ilícita para si ou para outrem. No caso em questão, João tem consciência que o bem móvel esquecido no estabelecimento comercial não lhe pertence. Sabe quem é o real proprietário e resolve não o devolver. E vai além, assume a identidade do proprietário do cartão de crédito e faz compras em seu nome utilizando o cartão de crédito.
Decerto, o objetivo do tipo penal de [estelionato] é tutelar a inviolabilidade patrimonial, aviltada pela prática de atos enganosos pelo agente.
O delito consiste no fato de o sujeito ativo obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
Cleber Masson faz interessante análise:9
“O estelionato é crime patrimonial praticado mediante fraude: no lugar da clandestinidade, da violência física ou da ameaça intimidatória, o agente utiliza o engano ou se serve deste para que a vítima, inadvertidamente, se deixe espoliar na esfera do seu patrimônio. A fraude consiste, portanto, na lesão patrimonial por meio de engano”.
Segundo firme jurisprudência, o crime de estelionato exige quatro requisitos obrigatórios para sua caracterização:10
- obtenção de vantagem ilícita;
- causar prejuízo a outra pessoa;
- uso de meio de ardil, ou artimanha,
- enganar alguém ou a leva-lo a erro.
A ausência de um dos quatro elementos, seja qual for, impede a caracterização do estelionato.
Em síntese, é inegável que a conduta praticada por João se configura como estelionato. O estelionato, conforme definido, caracteriza-se pelo uso de artifícios para induzir alguém a erro, visando a obtenção de vantagem ilícita para si ou para outrem. João, ao tomar conhecimento de que o bem móvel esquecido no estabelecimento comercial não lhe pertencia e conscientemente decidir não devolvê-lo, demonstra a intenção [vontade livre e consciente] de obter uma vantagem ilícita em detrimento do verdadeiro proprietário.
A análise de Cleber Masson reforça a natureza do estelionato como um crime patrimonial perpetrado por meio da fraude, destacando que a fraude consiste na lesão patrimonial por meio do engano. Portanto, a conduta de João, ao lesar o patrimônio alheio através de artifícios fraudulentos, se alinha perfeitamente ao conceito e aos elementos caracterizadores do estelionato.
Conclusão:
Diante do cenário desafiador em que nos encontramos, é imperativo reconhecer a relevância da responsabilidade civil do proprietário do estabelecimento comercial nos casos de estelionato perpetrado por seus funcionários. A dinâmica complexa do uso não autorizado de cartões de crédito evidencia a necessidade de um entendimento claro das implicações legais envolvidas.
À luz do princípio do neminem laedere e das disposições do Código de Defesa do Consumidor, reforça-se a responsabilidade objetiva dos proprietários em reparar danos materiais e morais causados aos clientes, independentemente da existência de culpa. Esse enfoque ressalta a importância de medidas preventivas e de vigilância no ambiente comercial, a fim de mitigar riscos e proteger os consumidores.
Portanto, a abordagem integrada entre a responsabilidade civil e a aplicação das normas penais incriminadoras é crucial para enfrentar os desafios relacionados à segurança nas transações comerciais. A conscientização, aliada a práticas éticas e legais, emerge como um guia essencial para proprietários de estabelecimentos comerciais, visando garantir a integridade dos clientes e a preservação da confiança no ambiente de negócios.
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1 G1. Quase metade dos consumidores brasileiros tem quatro ou mais cartões de crédito, diz pesquisa. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/05/12/quase-metade-dos-consumidores-brasileiros-tem-quatro-ou-mais-cartoes-de-credito-diz-pesquisa.ghtml. Acesso em: [10.01.2024].
2 INVESTNEWS. 2 em cada 10 brasileiros já tiveram cartão de crédito usado sem autorização. Disponível em: https://investnews.com.br/financas/2-em-cada-10-brasileiros-ja-tiveram-cartao-de-credito-usado-sem-autorizacao/. Acesso em: [10.01.2024].
3 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil - Volume Único. 5ª. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2020. 1.520 p. (Coleção Manuais - Volume Único).
4 AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1954, p. 557.
5 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS (TJMG). [Responsabilidade dos Fornecedores - CDC (art. 14), é objetiva]. Disponível em:
https://www8.tjmg.jus.br/themis/baixaDocumento.do?tipo=1&numeroVerificador=1000019040471500320201281364. Acesso em: [10.01.2024].
6 Cunha, Rogério Sanches, Manual de Direito Penal: Parte Especial - Volume Único / Rogério Sanches Cunha 16. ed., rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora JusPodivm, 2019.
7 Os conceitos de posse e de detenção são extraídos dos artigos 1.196 e 1.198 do Código Civil.
8 Greco, Rogério. Curso de Direito Penal: 10 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
9 MASSON, Cleber. Direito Penal - Parte Especial (arts. 121 a 212) - Vol. 2. São Paulo, SP: Método, 2019.
10 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Estelionato. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/estelionato. Acesso em: [09.01.2024].