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Jogos Olímpicos – Do olíbano à cannabis sativa

O uso oficial do canabidiol por atletas completa um ano nos Jogos Olímpicos desde a retirada pela WADA em 2020. A decisão, em 2017, de liberar o CBD, sem o efeito "barato", beneficia atletas de alto desempenho lidando com dor, lesões e exaustão física.

15/1/2024

Quando a chama olímpica for acesa, em 16 de abril, seguindo tradição milenar, nos sítios arqueológicos do santuário grego de Olímpia, em Atenas, o uso oficial do canabidiol por atletas irá completar o primeiro aniversário na história dos Jogos da Era Moderna. A estreia foi nos Jogos de Tóquio (2020-21), após a Agência Mundial Antidoping (World Anti-Doping Agency – WADA), retirar apenas o canabidiol (CBD) da lista de substâncias proibidas - o THC – tetrahidrocanabiol, ou seja, a substância geradora do famoso “barato” ou “onda”, segue proibida. A decisão ocorreu em setembro de 2017, passando a vigorar a partir de 1 de janeiro de 2018, três anos antes da maior competição do esporte chegar ao Japão. Considera-se a liberação do canabidiol uma grande vitória, já que a dor é companheira constante dos atletas de alta performance, assim como lesões graves e o esgotamento físico.

Engana-se quem acha que a utilização de plantas e ervas por atletas, com os mais diversos propósitos, seja privilégio da Era Moderna. Relatos do filósofo ateniense Lucius Flavius Philostratus apontam que, por volta do ano 800 a.C. atletas bebiam chás de várias ervas estimulantes e comiam “cogumelos”, a fim de melhorar o desempenho atlético. Conclui-se, portanto, que os antigos gregos não eram estranhos ao uso de canabinóides e embora os escritos de Hipócrates não façam referência aos Jogos Olímpicos, suas obras traduzidas por Claudio Galeno, mencionam o tratamento de lesões sofridas pelos atletas e em sua obra, dá detalhes deste remédio, uma pomada, que recebeu o nome “Fuscum Olympionico inscriptum1– em inglês “Olympic Victor’s Dark Ointment” (Pomada Negra do Vencedor Olímpico)2 prescrita para o alívio de dores e inchaços, que era reservada para uso exclusivo dos vencedores olímpicos que, com finalidades medicinais, usavam a “pomada escura” sempre que se machucavam durante o evento3. A pomada, conforme descrição do famoso filósofo e médico grego Claudio Galeno, continha uma mistura de ervas ricas em canabinóides (substâncias semelhantes ao componente ativo da cannabis) e opiáceos (produtos químicos naturais semelhantes em estrutura e função ao ópio e à morfina). Também era acrescentado ao creme, açafrão, indicado para inchaço e conter inflamação. Os opiáceos, extraídos do sumo da papoula, funcionavam como o analgésico na mistura da pomada. Já os canabinóides da receita não eram da planta cannabis, mas da árvore do olíbano que, segundo tradição bíblica, é a planta que produzia o santo incenso, usado no tabernáculo e no templo de Jerusalém. Inclusive, foi o presente dado pelo Rei Mago Gaspar pelo nascimento de Jesus Cristo. Hoje, a resina é queimada como incenso em cerimônias católicas em todo o mundo4.

Os Jogos da Antiguidade continuariam a acontecer regularmente até 394 d.C., quando os romanos conquistaram a Grécia e o imperador Teodósio I, proibiu o evento. O espírito olímpico renasceria em 1894, quando o Barão Pierre de Coubertin organizou, na França, o primeiro Congresso Olímpico, evento no qual o Comitê Olímpico Internacional - COI foi criado. Dois anos depois, os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna eram realizados em Atenas, Grécia. Fato é que o doping só se tornaria uma preocupação, sessenta e quatro anos após os primeiros Jogos da modernidade, em Roma (1960), quando da morte do ciclista dinamarquês Knud Enemark Jensen, foi o marco inicial da mudança de mentalidade do COI, que, então, passou a combater o doping e proibir o uso de drogas para melhorar desempenho, uma vez que, segundo o Comitê, sua prática, fere um dos principais valores olímpicos, o fair play e macula a imagem e credibilidade do evento. O fair play é, sem dúvida, um dos fortes pilares de sustentação da imagem do Movimento Olímpico, que tem como compromisso promover a prática do esporte em um “espírito de amizade, solidariedade e jogo limpo”. Seu espírito é combater a violência e o comportamento antiesportivo e injusto5. Foi justamente, neste ponto da história que, a cannabis e seus derivados entraram no bolo do roll de sustâncias proibidas, muito embora até hoje, não exista comprovação científica que seu uso agregue fatores à melhora de desempenho, mas sim medicinal. Oito anos depois, nos Jogos Olímpicos do México (1968), teve início a testagem aleatória de atletas.

O primeiro escândalo envolvendo uso de cannabis no mundo dos esportes olímpicos ocorreu em 1998, nos Jogos de Inverno, em Nagano. O canadense Ross Rebagliati ganhou ouro no slalom gigante, mas não levou - três dias após receber a medalha, os exames testaram positivo para cannabis6. A defesa do atleta alegou que ele não consumia cannabis desde abril de 1997 e que o teste positivo se devia ao fumo passivo7. A Associação Olímpica Canadense - COA apelou. Dois dias depois, o Tribunal Arbitral do Desporto - CAS anulou por unanimidade a decisão do COI alegando que, tecnicamente, a cannabis era uma substância de uso restrito e não proibido8.

Rebagliati saiu praticamente ileso da história, já o mesmo não ocorreu anos depois com o nadador norte-americano Michael Phelps. Oito medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Pequim (2008), foi suspenso por três meses, não recebeu as verbas de patrocínio durante o período e ainda se desculpou perante a comunidade esportiva mundial e todo o mundo, pelo que chamou de 'comportamento lamentável', após ser envolvido em um escândalo midiático envolvendo o consumo recreativo de cannabis. Em 6 de novembro de 2008, o tablóide britânico News of the Word publicara uma foto, em que o nadador aparece flagrado, fora de competição, colocando na boca em um 'bong' (espécie de tubo de ensaio utilizado para fumar a erva). Phelps resolveu “sair do armário canábico” e assumir o consumo.

A Federação Norte-americana de Natação suspendeu o multicampeão olímpico. Já o Comitê Olímpico Internacional - COI), o Comitê Olímpico dos Estados Unidos - USOC e a Federação Internacional de Natação - FINA trataram a questão de forma mais leve, progressista, aceitando as desculpas públicas da estrela das Olimpíadas de Pequim (2008), vencedora em todas as provas e que, então, tornou-se o atleta com maior número de medalhas em uma mesma edição dos Jogos. A saída do “armário canábico” também custou àquele que se tornou o melhor nadador do mundo aos 23 anos, a perda do contrato com uma companhia do ramo de cereais que optou por não renovar, sob a alegação que o comportamento de Phelps, cuja imagem estampava embalagens da empresa, não condizia com a marca. A foto do tablóide queimou o filme de Phelps.

Anos depois, a cannabis voltaria às manchetes das editorias de esporte, junto com a desclassificação da velocista americana Sha'Carri Richardson, considerada a sexta mulher mais rápida da história (10,72s/100m rasos), então, esperança de ouro para os Estados Unidos no atletismo. A atleta recebeu diagnóstico positivo para uso de cannabis durante as eliminatórias, não carimbando o passaporte para os Jogos de Tóquio, que aconteceriam em 2021, em virtude da pandemia de Covid-19. No Oregon, onde Richardson testou positivo, o consumo da erva é legal. Em entrevista à emissora NBC News, ela assumiu o consumo da planta. O motivo? Lidar física, emocional e psicologicamente com a morte da mãe, fato que havia ocorrido uma semana antes da prova. Estava oficialmente acesa, novamente, a tocha da discussão sobre a proibição da cannabis nos esportes olímpicos.

No Brasil, o caso mais famoso envolveu o ex-ponteiro da seleção vôlei Giba, também pego no antidoping, o exame de urina constatou a presença do metabólito THC, encontrado na cannabis. Suspenso por nove jogos, Gilberto Amauri Godoi Filho ficou 4 meses afastado das quadras. Dois anos depois ganhou ouro nos Jogos de Atenas (2204), prata em Pequim (2008) e Londres (2012). Durante a carreira, Giba foi eleito o melhor jogador de vôlei do mundo, ganhou oito títulos na Liga Mundial, duas Copas do Mundo, entre outros feitos que o condecoraram como parte da história do esporte mundial.

Eis que o vôlei saiu das quadras e foi bater um bolão no Senado. Em dezembro de 2023, o Plenário aprovou um projeto de lei (PLC 6/17), importante para o mundo do esporte evitar o doping involuntário, também conhecido como doping acidental. A lei obriga laboratórios farmacêuticos a colocarem alertas nos rótulos, bulas e materiais de marketing, sobre a presença de substâncias proibidas no ambiente esportivo que possam caracterizar doping9. A relatora do projeto, foi a ex-atleta olímpica e agora senadora Leila Barros (PDT-DF). Como jogadora de vôlei na Seleção Brasileira de Voleibol Feminino, Leila foi medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e Sidney (2000). O ouro veio nos Jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro (1999). Foi premiada como melhor jogadora do Grand Prix de Voleibol duas vezes. Das quadras Leila foi para as praias e das praias para a telinha como comentarista esportiva, antes de iniciar sua carreira política. Após aprovação no Senado, o texto agora segue para sanção do Poder Executivo e, caso seja aprovado, entrará em vigor seis meses após a publicação no Diário Oficial. A notícia é excelente em vários aspectos e o canabidiol irá pegar carona nessa onda, na medida em que os rótulos dos produtos à base da substância, não tiverem avisos e alertas nas ações de publicidade e marketing – será o início mais um importante estágio da quebra de paradigma e preconceito na história da cannabis e do canabidiol no Brasil.

Em janeiro de 2024, a WADA publicou a lista atualizada de substâncias e métodos proibidos, além do programa de monitoramento, que entrarão em vigor nos Jogos de Paris. A partir de 1º de janeiro atletas, federações internacionais e confederações ligadas à entidade passaram a adotar as novas regras mediante o documento, que contém as diretrizes preventivas a fim de garantir o esporte limpo e justo. Todos os canabinoides (naturais ou sintéticos) seguem como proibidos, por exemplo:

O canabidiol segue como exceção10.

Importante ressaltar que em nível nacional, atletas que possam necessitar do uso de medicamentos ou de procedimentos médicos considerados proibidos no esporte e estes  constarem na lista de substâncias e métodos proibidos da WADA, podem solicitar uma Autorização de Uso Terapêutico - AUT ou Therapeutic Use Exemptions - TUEs, que lhes dará a permissão para a presença dessa substância ou método em sua amostra biológica sem incorrer em uma Violação à Regra Antidopagem - VRAD e/ou receber uma sanção no esporte. As Solicitações para a obtenção de uma AUT são avaliadas por um painel de médicos especialistas da Comissão de AUT - CAUT. Porém, as AUTs emitidas pela Organização Nacional Antidopagem - ONAD são válidas apenas no Brasil para períodos em e/ou fora de competição.

Por outro lado, levando-se em conta que na maioria das vezes, os atletas precisam levar o corpo ao limite, há que se considerar os muitos e significativos indícios dos efeitos benéficos da cannabis – o CDB. Trata-se de uma substância encontrada na cannabis que não produz euforia (barato) nem intoxicação, como parte de protocolos de tratamentos da dor de atletas e redução dos sintomas relacionados com a prática exaustiva de esportes11. Segundo o Dr. Marcos Pereira Dias, a principal característica do canabidiol para qualquer pessoa e para atletas é o controle de ansiedade. “A segunda característica é a melhora da qualidade do sono, pois torna um sono mais restaurador, fisiológico, se comparando com medicamentos tradicionais, e modulado, ou seja, você consegue ter uma qualidade de sono interessante. Terceiro caso importantíssimo, a propriedade anti-inflamatória que o canabidiol possui. Ele recupera melhor a musculatura pós treino, possibilitando uma recuperação entre os treinos, mais significativa. Isso se dá pelo papel vaso dilatador que a medicação cumpre, pois melhora a irrigação da musculatura. O canabidiol melhora ou evita possíveis lesões devido à sua atuação anti-inflamatória. Porém, tanto atletas amadores quanto profissionais, devem estar atentos às competições que tem anti-doping. Pois os produtos mais tradicionais prescritos por médicos e que são ricos em canabidiol são chamados de full spectrum e nele vem também um pouquinho de THC que é entorpecente e outros elementos que no doping não podem ser utilizados. Para estes atletas o médico prescreve produtos com canabidiol isolados que é permitido pela WADA”.

Diretor executivo do Comitê Olímpico do Brasil - COB e ex-jogador da seleção brasileira de vôlei, Marcus Vinícius Freire, medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, vê o uso do canabidiol com bons olhos, desde que seja CDB isolado como foi regulamentado. Porém, não comunga com a utilização do THC. “Entendendo que como o THC é a grande parte dos cigarros sociais dos entorpecentes de maconha, e que a WADA preza pelo exemplo que os atletas dão para a juventude. Minha opinião é que o THC ou qualquer outra mistura que possua THC deva ser considerada doping”.

Que os Jogos Olímpicos de Paris 2024 tragam luz a esse assunto!

A passos largos ou lentos, fato é que no bojo do uso de cannabis medicinal e não medicinal por atletas encontra-se a certeza de que sementes estão brotando e crescendo nos campos das experiências humanas, sociais, culturais, mundiais e das normas dos ordenamentos jurídicos mundiais. Embora o consumo de cannabis (maconha, haxixe) seja normal entre atletas de alto rendimento, ainda seguem estudos se os efeitos da substância podem melhorar ou não o desempenho. Fato é que a literatura ainda é escassa, uma vez que a proibição da cannabis limita os estudos e, consequentemente, a possibilidade de gerar dados de alta qualidade sobre os padrões e a prevalência do consumo de cannabis (THC) entre atletas de elite.

A história da cannabis medicinal no esporte segue sendo escrita.

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1 https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17147600/ - 22,Dez,23.

2 An Ancient Greek Pain Remedy for Athletes Else M. Bartels PhD, DSc, Judith Swaddling PhD, Adrian P. Harrison PhD – 20, Dez,23.

3 https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1440244017303420 - 22.Dez23.

4 https://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2019/12/27/156240-planta-que-produz-incenso-da-tradicao-biblica-esta-sendo-explorada-excessivamente.html 22.Dez23

5 Ribeiro, Deborah – Freire, Marcus Vinícius - O Ouro Olímpico – a história do Marketing dos Aros, editora Casa da Palavra, selo COB Cultural, p.48.

6 The History of the Olympic Games, PARIS2024. https://www.paris2024.org/en/historyof-olympic-games/ - 23,Dez,23.

7 Cody Atkinson, The dark side of the Olympics: How doping has shaped the Games, ABC, https://www.abc.net.au/news/2021-07-14/the-dark-side-of-the-olympics/100291392 - 23,Dez,23.

8 Rachel Alexander, IOC Strips Gold From Canadian After Drug Test, https://www.washingtonpost.com/wpsrv/sports/longterm/olympics1998/sport/snowboard/articles/board11.htm - 23,Dez,23.

9 https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2023/12/proposta-aprovada-pelo-senado-pode-evitar-doping-acidental - 23,Dez,23.

10 https://www.wada-ama.org/en/news/wadas-2024-prohibited-list-now-force - 02,Jan,24.

11 https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30153174/ - 23,Dez,23.

Não existe, qualquer recomendação sobre consumo ou apologia ao uso em situações não prescritas exclusivamente por médicos. Desta forma, os conteúdos vinculados neste material são de caráter exclusivamente informativo para fins medicinais. A Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OABRJ tem como principal objetivo o fomento do direito setorial para toda a advocacia, não só a militante na área, buscando o desenvolvimento do setor econômico relacionado à Cannabis usada com fins medicinais e científicos, por meio de políticas públicas governamentais instituídas.

Deborah Ribeiro de Almeida
Jornalista, advogada OABRJ 241545. Membro da Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OABRJ.

Vladimir Saboia
Advogado especialista na área.

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