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União estável e separação de fato: no STJ há normas constitucionais que “não pegam”

Embora a Constituição Federal irradie todos os seus efeitos nas demais legislações e o Tribunal competente a interprete para que a nação à respeite, ainda há apego às teorias ultrapassadas que negam o fenômeno constitucional. O direito brasileiro mudou e têm hierarquia, mas ainda há tribunais que preferem ver as leis mais fortes que a Constituição.

11/1/2024

O STJ parece imune ao fenômeno septuagenário iniciado na Alemanha e Itália, que influenciaram a “recente” constituição brasileira, em especial ao fenômeno Neoconstitucionalista1, visão jurídica do Direito Civil que parte da Teoria Neoconstitucionalista. Isso significa, em resumo, que o estado brasileiro elabora e aplica a lei a partir de premissas constitucionais.

No Brasil o Direito Civil, até então centro do Direito, cedeu o campo para o Direito Constitucional. Esse movimento também ocorreu no Direito alemão e italiano, ou seja, o ponto de partida central é deslocado, sai do Direito Civil e agora começa na Constituição.

Significa dizer que todos os ramos do Direito passam a ser visto à luz da Constituição, ou seja, são influenciados pelas normas existentes na Constituição Federal.

A influência se dá: 1) Diretamente: quando a pretensão se funda no próprio texto constitucional; 2) Indiretamente: quando a pretensão se funda em texto infraconstitucional, considerando: a) se a norma é compatível com a Constituição; b) a interpretação que a norma deve receber, haja vista aos comandos constitucionais.

A efetivação da supremacia da Constituição permite técnicas e possibilidades interpretativas, como: 1) poder revogador de normas infraconstitucionais anteriores; 2) inaplicabilidade de normas infraconstitucionais posteriores; 3) convocação de atuação do legislador; 4) caráter interpretativo.

Partindo dessas premissas é que o art. 1830 do Código Civil deveria ser analisado pelo STJ, mas, por enquanto, a Constituição Federal não “pegou2, pois lá ainda se considera o Código Civil como o centro do Direito.

Referida corte ainda considera válido o prazo de dois anos contido na redação eliminada pela Emenda Constitucional 66, de 2010, que alterou o parágrafo sexto do art. 226. Não há uma afirmação com essas palavras, mas na prática é esse o resultado.

Além de aplicar o prazo de 2 anos para considerar rompido o matrimônio por uma separação de fato, também caem em contradição quando o caso envolve uma nova relação, uma união estável.

Explica-se.

O art. 226 da Constituição Federal prevê em sua redação o seguinte:

Art. 226 A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

É inegável e já conhecida a equivalência/equiparação da união estável com o casamento (ADI 4227 e ADPF 132). Mas, a união estável não ocorre em concomitância com o casamento ou com outra união estável paralela. Pois, fixada em repercussão geral, “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, parágrafo 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro” (RE 1045273).

Logo, devem estar separados de fato para que haja o reconhecimento de uma nova união estável daqueles que já possuam uma união estável ou que sejam casados.

A separação de fato é aquela que permite o divórcio. Bem, isso é o que se extrai da redação constitucional.

Antes da Emenda Constitucional 66, essa era a redação do § 6º do Art. 226:

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.

Havia previsão expressa do Sistema Bifásico. A EC 66/10, além de eliminar uma fase também eliminou a necessidade de se esperar dois anos para concluir o divórcio. A nova redação diz:

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

Logo, após esta redação a separação de fato que possibilita o divórcio é aquela separação na qual não há dúvidas de que o desejo de se manter casado não existe mais. E, a partir dela já se estaria apto para a configuração de uma união estável.

Parece evidente que “[...] não vige mais o sistema bifásico, de extinção da sociedade conjugal e do casamento.3. Embora haja fortes argumentos para se afirmar ser inconstitucional a “represtinação” da separação pelo CPC, é sem sombra de dúvidas a inexistência de lei que tenha convalescido o prazo de dois anos para que se possa operar a dissolução do casamento e, se for caso, configurar uma união estável. Em outras palavras, não existe mais a necessidade de fazer o casamento durar “virtualmente” mais dois anos para que se ultime.

Está latente o entendimento de que se tornam inconstitucionais, supervenientemente, todas as previsões infraconstitucionais que fixam prazos obrigatórios para que os casados mantenham-se vinculados antes de fazer cessar os efeitos do casamento.

São exemplos de prazos que foram extirpados do ordenamento jurídicos: artigos 25 e 40 da lei 6.515; e, § 2°, do art. 1.580, do CC/02.

Assim como não há qualquer discussão sobre a desnecessidade de se observar qualquer prazo para que se possa divorciar. Também é correto afirmar, categoricamente, que não é necessário aguardar nenhum dia após a separação de fato para se iniciar uma união estável, pois estando separado de fato já é possível constituir uma nova relação afetiva.

Bem, não é outro o motivo pelo qual a separação de fato leva por consequência ao fim do regime de bens. Pois, por consequência óbvia, estando alguém separado de fato, e, ao constituir uma união estável, tem agora início um regime de bens com outra pessoa.

Contudo, não é necessário constituir uma nova relação afetiva para que haja a desvinculação patrimonial anterior, basta a separação de fato.

Pois, ora, o patrimônio que for constituído após a separação de fato está tão disponível para seu proprietário que pode, inclusive, integrar meação em um novo relacionamento. Significa dizer que a separação de fato permite gerar efeitos afetivos e patrimoniais desde logo.

Vigora, mais do que nunca, agora, o princípio da ruptura do afeto – o qual busca inspiração no Zerrüttungsprinzip do Direito alemão – como simples fundamento para o divórcio.4

E o prazo do art. 1.830 do CC/02?

Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.

Esse prazo que prorroga “artificialmente” o casamento deve ter o mesmo tratamento das demais disposições análogas: é inconstitucional!

Entendimento contrário deve passar pelo seguinte teste: qual a sua distinção dos demais prazos que faziam o casamento se prorrogar “sinteticamente” até atingir a antiga previsão constitucional de dois anos, de modo a possibilitar o divórcio?

Não há nenhuma distinção.

Mas, se até aqui não houver motivos suficientes para sustentar esta resposta, ainda há mais uma consideração jurídica: a igualdade sucessória entre cônjuges e companheiros.

Como resultado do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família, de 2003, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, apresentou à Câmara de Deputados proposta legislativa que visava, dentre outros objetivos, igualar o direito sucessório entre cônjuges e companheiros de união estável.5 Bem, o STF, em repercussão geral, conclui pela inconstitucionalidade da distinção de regra sucessória, que vigorava no art. 1.790 do CC/02. (RE 646.721). O STF reforçou a necessidade de se aplicar as mesmas regras sucessórias para casados e companheiros de união estável (repercussão geral no RE 878.694).

Diante disso, supõe-se o seguinte exemplo: os cônjuges “A” e “B”, casados, sem filhos, que não possuíam qualquer patrimônio, separam-se de fato. Mas, ao contrair nova relação afetiva “B” construiu vasto patrimônio em 23 meses, vindo a falecer. Esse patrimônio não pode ser objeto de sucessão pelo ex-cônjuge “A”.

Explica-se.

Se há igualdade de direito sucessória entre cônjuges e companheiros, é o novo companheiro de “B” que irá ser herdeiro (inc. IV, do art. 1.790 c/c inc. III, do art. 1829, ambos do CC/02).

E, não há como se afirmar que o patrimônio do falecido estava disponível para comunicar-se e fazer parte de sucessão com o novo relacionamento, mas que se não houvesse esse novo relacionamento o patrimônio do falecido estaria “preso” pelo prazo de dois anos para “garantir” herança ao cônjuge do qual se separa de fato a 23 meses antes.

Há uma enorme contradição na afirmação de que o patrimônio do falecido só é disponível se houver novo relacionamento. Seria o mesmo que proibir “B” de doar (art. 549, do CC/02) ou proibi-lo até mesmo de testar (§ 1°, do art. 1.857, do CC/02) a totalidade dos bens adquiridos após a separação de fato, mas que essa proibição não se aplicaria em relação a um novo companheiro.

Ora, ou a pessoa tem bens livres ou não tem.

Se a pessoa não tem bens livres, para garantir a aplicação do art. 1.830, não pode doá-los ou dispor por testamento em sua totalidade e nem permitir que sejam partilhados em sucessão com o novo companheiro. Afinal de contas, o herdeiro é o cônjuge separado de fato até dois anos.

Por outro lado, se a pessoas tem bens livres eles podem ser doados ou testados em sua totalidade e podem, também, ser parte de partilha em dissolução de união estável ou de sucessão.

É obvio que a segunda hipótese é a única que se adequa a visão constitucional inaugurada pelo EC 66 e moldada pela jurisprudência do STF, que gera os frutos da influência, técnicas e das possibilidades interpretativas.

Esta é a visão Neoconstitucional, ou seja, do Direito Civil Constitucional, e não a que ainda considera o Código Civil como o centro do ordenamento jurídico imune à Constituição e às interpretações que o STF promover.

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1 Ver mais sobre o tema em BARROSO, L. R. (2005). Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista De Direito Administrativo, 240, 1–42. Disponível em https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/43618/44695. Acesso em 16 de nov. 2023, passim.

2 Nas academias jurídicas é comum a expressão jocosa de que no Brasil tem leis que “não pegam” para se referir que algumas leis não são cumpridas.

3 Flávio Tartuce. Direito civil, v. 5, Direito de família. 16. Rio de Janeiro Forense 2021. Outros doutrinadores também seguem nessa linha como, por exemplo, Paulo Lobo e Lenio Streck.

4 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v. 7: direito das sucessões. 9 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2022. p. 52 e GAGLIANO, Pablo Stolze. O divórcio na atualidade. 4. ed. São Paulo Saraiva 2018. p. 73. No mesmo sentido SIMÃO, José Fernando. Código Civil Comentado, doutrina e jurisprudência, obra coletiva, GEN/Editora Forense, 2020, p. 1.517.

5 https://ibdfam.org.br/noticias/na-midia/184/IBDFAM+apresenta+PLs

Marcos Rafael Martin
Mestrando em Dimensões Jurídico - Políticos da Tecnologia e da Inovação pela Atitus. Registrador imobiliário no Estado do Paraná. Mestre em Direito da Empresa e dos Negócios. Foi advogado, professor universitário, tabelião e oficial de registros públicos no Estado de Santa Catarina. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral, Direito Imobiliário e Registral Imobiliário, Direito Administrativo com ênfase em Direito Constitucional.

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