Como primeiro ato relevante de sua administração, o novo presidente argentino Javier Milei aprovou Decreto de Necessidade e Urgência - DNU, abrangendo reformas econômicas profundas. O DNU 70/23 redefine o direito econômico argentino, alterando a orientação intervencionista das últimas décadas. O DNU 70 traz uma liberalização radical das atividades econômicas, levantando questionamentos sobre seus limites legais e sua constitucionalidade. O Decreto, neste sentido, declara emergência pública em matéria econômica, financeira, fiscal, administrativa, previdenciária, sanitária e social até 31 de dezembro de 2025.
Inicialmente, deve-se compreender a natureza dos DNU. Segundo a Constituição da Nação Argentina, o Presidente "não poderá, em hipótese de qualquer hipótese, sob pena de nulidade absoluta, expedir disposições de natureza legislativa". Isso para respeitar o sistema republicano, estabelecido no artigo 1º daquela Constituição.
Entretanto, o Artigo 99.º, n.º 3, da Constituição estabelece que "quando as circunstâncias forem excecionais, intransitáveis ou decorrentes de dois procedimentos ordinários previstos nesta Constituição para a edição de leis, e não se tratar de normas que regulem o regime penal, fiscal, eleitoral ou partidário, [o Presidente da Nação] pode expedir decretos por razões de necessidade e urgência, que será decidido em acordo geral dos Ministros que os aprovarem, juntamente com o Chefe do Gabinete de Ministros".
Para justificar a existência dessas circunstâncias excepcionais, o DNU 70/23 afirma, entre outras considerações, "[que] a REPÚBLICA ARGENTINA está passando por uma situação de gravidade das anteriores, gerando profundos desequilíbrios que impactam negativamente toda a população, especialmente social e economicamente".
Inferior à Constituição argentina, a lei 26.122/06 regulamenta o procedimento e o âmbito de intervenção do Congresso Nacional em relação aos decretos de necessidade e urgência editados pelo Executivo. Esta lei determina que a Comissão Bicameral Permanente do Congresso Nacional deverá se pronunciar sobre a validade ou invalidade dos decretos de necessidade e urgência, e submeter seu parecer ao plenário de cada Casa (Câmara e Senado), no prazo de dez dias úteis. Posteriormente, as Casas devem pronunciar-se por meio de resoluções e a rejeição ou aprovação integral dos decretos deve ser expressa.
Enquanto a DNU 70/23 não for rejeitada pelas duas Casas do Congresso, seu texto terá vigência após sua publicação, a partir do dia em que elas próprias determinarem, ou em oito dias após sua publicação. No caso da DNU 70/23, por não prever uma data específica de entrada em vigor, sua vigência se iniciará em 29 de dezembro de 2023.
Como se afirmou, o DNU 70/23 materializa liberalização em várias atividades da economia argentina, de forma alinhada com o discurso libertário do candidato vitorioso nas últimas eleições argentinas.
Um dos capítulos da DNU se dedica, por exemplo, à desregulamentação dos direitos trabalhistas. Assim, revoga quase todo o capítulo sobre o emprego não registrado, que previa as multas ao empregador pelo não-registro correto da relação de emprego. E revoga o artigo que previa o pagamento de juros pelo empregador em caso de falta de pagamento pontual de verbas rescisórias1. Revoga também os artigos que previam multa ao empregador por retenção indevida de contribuições previdenciárias2; a notificação à autoridade fiscal nos casos trabalho não registado ou omissão das obrigações de segurança; revoga a multa pela não-entrega de certidões trabalhistas.
No que se refere à intervenção do Estado no domínio econômico, a DNU 70/23 revoga várias leis, muitas delas oriundas da Ditadura Onganía (1966-1970), que previam controles de preços e limitações às atividades econômicas. Assim, ficam revogadas as leis sobre Promoção Comercial3, Observatório de Preços e Disponibilidade de Insumos, Bens e Serviços4, Locação de Imóveis para Fins Turísticos5, Lei da Gôndola (sobre exposição de produtos)6, Mercados de Interesse Nacional (sobre rede de mercados atacadistas)7, lei de Abastecimento8 e da Lei sobre Celulose e Papel de Jornal9, além da revogação parcial da lei de Desenvolvimento de Fornecedores e Compra de Fornecedores10.
Na regulamentação financeira, o DNU 70/23 flexibiliza a obrigação de realizar depósitos judiciais ou recursos oficiais, em moeda estrangeira, no Banco de la Nación Argentina11. Também revoga parcialmente a lei do Cartão de Crédito12, alterando a definição de cartão de crédito, reduzindo obrigações quanto às taxas de juros. Revoga ainda parcialmente a lei dos Certificados de Depósito Bancário, na parte relativa a produtos agropecuários13.
O DNU 70/23 também traz inovações em vários setores econômicos: no transporte aéreo, busca implementar política de céus abertos, com ampla concorrência. Na área de saúde, altera o marco regulatório dos medicamentos e dos planos de saúde e estabelece prescrições eletrônicas para agilizar o atendimento e minimizar custos, promovendo também concorrência entre empresas farmacêuticas. Também desregulamenta os serviços de internet via satélite e o setor de turismo (eliminando o monopólio das agências de turismo), sob o argumento de incentivar a concorrência.
No Direito Civil, a DNU revoga integralmente a lei de Aluguéis, muito protetiva ao locatário, reforçando o princípio da liberdade contratual. Também altera o Código Civil e Comercial para dar primazia ao princípio da autonomia da vontade e garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira sejam pagas conforme pactuado. Ainda, modifica a lei Geral das Sociedades Anônimas para que os clubes de futebol possam se tornar sociedades anônimas, se assim desejarem.
- Confira aqui a íntegra do artigo.
1 Lei nº 25.013, Art. 9º.
2 Lei 25.345, Arts. 43 a 48.
3 Lei nº 18.425.
4 Lei nº 26.992.
5 Lei nº 27.221.
6 Lei nº 27.545.
7 Lei nº 19.227.
8 Lei nº 20.680.
9 Lei nº 26.736.
10 Lei nº 27.437.
11 Artigo 2º da Lei nº 21.799.
12 Lei nº 25.065.
13 Lei nº 9643.