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Inscrição no cadastro nacional de defesa do consumidor como pena antitruste não pecuniária

Este artigo aborda a pena de 'inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor', conforme descrito na Lei de Defesa da Concorrência, detalhado na obra 'Sanções não pecuniárias no antitruste'. Examina-se sua aplicação, jurisprudência do Cade e similaridades com outras legislações de 2012 a 2022.

21/12/2023

O presente artigo faz parte de uma série de artigos que tratam das penas não pecuniárias aplicadas a pessoas físicas e jurídicas com base na Lei de Defesa da Concorrência - LDC (lei 12.529/11), especificamente no artigo 38 e seus incisos, e que estão explicitados mais detalhadamente na obra coletiva “Sanções não pecuniárias no antitruste”, organizada pela Profa. Amanda Athayde e publicada pela Editora Singular1.

Neste artigo, trataremos da pena de “inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor”, constante do artigo 38, inciso III, da LDC, objeto de análise aprofundada na referida obra pelas mesmas autoras deste artigo. . O estudo levou em consideração semelhanças desse tipo de penalidade na legislação brasileira, a legislação comparada e a análise da jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, nos casos em que essa pena foi aplicada entre 2012 e 2022.

Mas que pena antitruste não pecuniária é essa? Explicamos.

Conforme já mencionado, o Capítulo III, do Título V, da lei 12.529/11 cuida da fundamentação legal das penas fixadas pelo Tribunal do Cade no âmbito de processos administrativos sancionadores. Em seu artigo 37, a lei prevê as formas de aplicação de multa – a penalidade majoritariamente aplicada nesses casos – e no artigo 38 outras hipóteses de penas não pecuniárias, que sempre devem levar em consideração dois aspectos: a gravidade dos fatos e o interesse público geral, para quando apenas a aplicação de multas não seja suficiente para coibir práticas contrárias à livre concorrência.

O inciso III do artigo 38 da lei 12.529/11 fixa a “a inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor”. A referida penalidade foi incluída no arcabouço legal brasileiro de repressão ao abuso de poder econômico e defesa da concorrência por meio da MP 204, de 02 de agosto de 1990, reeditada com alterações por 3 vezes2, até que foi efetivamente convertida na lei Ordinária 8.158 de 8 de janeiro de 1991. Entretanto, nunca foi instrumentalizada ou regulada.

Dito isso, verifica-se que a sanção não pecuniária do inciso III trata-se de uma jaboticaba no contexto internacional. Isso porque, apesar de a preocupação com o consumidor tradicionalmente aparecer atrelada à defesa da concorrência, em maior ou menor grau, no campo das sanções antitruste por ilícitos anticoncorrenciais, não se identifica legislação antitruste que contenha previsões tais quais a do art. 38, III da lei antitruste brasileira.

Uma vez que entendemos a experiência internacional com essa sanção, como o Cade tem aplicado esse tipo de pena ao longo dos anos?

Esta etapa empírica da pesquisa considerou os casos julgados pelo Cade no período de 2012 a 2020, com base nos dados fornecidos pelo Serviço de Informação ao Cidadão do Cade - SIC/CADE. Dos 274 casos de condutas anticompetitivas julgados no período, em 99 deles houve a aplicação de penas não pecuniárias do artigo 38 da lei 12.529/11  e, em 15 destes, houve a aplicação da pena do inciso II que tratamos aqui, o que corresponde a somente 5% do total de casos julgados pela autarquia no período analisado.

Nestes 15 casos, foram aplicadas tais penas em face de 122 representados ao total. Destes, 66% (81 casos) eram empresas, 31% (38 casos) eram indivíduos e 2% (3 casos) eram associações.

Quanto à sua aplicação ao longo do tempo, tem-se a maior concentração da aplicação da pena do inciso III entre os anos 2015 e 2016. Neste período, foram julgados 09 processos administrativos em que o Tribunal determinou a inscrição dos representados no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor (cerca de 60% dos 15 casos). Após 2016, não houve episódios em que essa pena foi aplicada, o que evidencia alguns possíveis diagnósticos: i) ausência de compreensão do potencial do instrumental; ii) ausência de regulamentação de referido cadastro, iii) desconhecimento da política pública institucionalizada de correlação entre defesa da concorrência e defesa do consumidor.

Além disso, vale a pena destacar a duração dos processos em que se aplicou a pena do inciso III. Em média, passaram-se 05 anos entre a data de instauração dos PA’s e a data do julgamento, com um caso chegando a mais de 10 anos de análise por parte da autoridade.

Já com relação ao tipo de conduta, observa-se a prevalência do cartel como a tipificação em que mais foram encontradas aplicações da sanção do inciso III do artigo 38 da lei 12.529/11, considerando suas variantes. Em seguida estão as práticas de conduta unilateral, conduta comercial uniforme e cartel combinado com tabelamento de preços, todas com o mesmo número de aplicações.

Passando à análise dos elementos que fundamentaram essa aplicação, bem como demais apontamentos relevantes realizados pelo Tribunal no Cade quando do julgamento do caso, verificou-se que de todos os 15 casos em que houve a aplicação da pena não pecuniária do inciso III, nenhum deles continha, no bojo de seus votos, fundamentação quanto (i) à motivação de aplicação das penas previstas no art. 38, no que se refere aos critérios de gravidade dos fatos e interesse público geral; e (ii) à justificativa específica para se adotar a norma do inciso III. Como argumento adotado, durante os votos, apenas há referência quanto à possibilidade, ou seja, não há determinação motivada para a inclusão da aplicação da penalidade, inexistindo fundamentos objetivos e/ou factuais, limitando-se à mera menção de sua aplicação. Tal resultado é convergente com o alerta de CAUHY3, no sentido de que, historicamente, o CADE tem fundamentação incipiente no que se refere às penas não pecuniárias, tanto na aplicação dos critérios dispostos no caput do art. 38, quanto na justificativa específica para aplicação da pena.

Analisados esses elementos, houve um último achado de suma importância para a análise qualitativa da aplicação do inciso III. A fim de dirimir dúvidas a respeito do acesso ao Cadastro e de sua manutenção pelo órgão, realizou-se uma segunda solicitação junto ao SIC/CADE, por meio da plataforma Fala.BR4. Assim, oficialmente, obteve-se a informação de que o referido Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor ainda não está em funcionamento. Segundo informado oficialmente, embora o dispositivo esteja arrolado entre as punições constantes do art. 38 da lei 12.529/11, ele não foi regulamentado, o que impede o Cade de realizar a inscrição de infratores em cadastro.

Não foi identificado, pelo levantamento realizado, o motivo do tema não ter sido tratado até a publicação da Portaria Cade 397, de 26 de agosto de 2021, publicada no Diário Oficial da União em 12 de abril de 2022, que revogou a Portaria Conjunta SDE/SEAE/CADE 58, de 02 de dezembro de 2009, que, precisamente, estabelecia mecanismos de atuação integrada entre a antiga Secretaria de Direito Econômico - SDE, por meio do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, e o Cade, para a criação do Cadastro Nacional de Infrações à Ordem Econômica. Ou seja, apesar da resposta oficial obtida do SIC/CADE apontar para a ausência de regulamentação do Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, observa-se que o tema poderia ter sido tratado com a regulamentação da matéria pelo instrumento normativo que estava em vigor (Portaria Conjunta SDE/SEAE/CADE nº 58, de 02 de dezembro de 2009). Esse fato reforça a ausência de priorização do Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor e uma possível incompreensão sobre o seu potencial, já que uma vez regulamentado/implementado pode ser instrumento adicional para reforçar o enforcement do Cade.

Dessa forma, em que pese os mais de 10 anos de entrada em vigor da lei 12.529/11, o cadastro decorrente de aplicação de sanção do inciso III do art. 38 da lei 12.529/11 resta inoperante e sem qualquer regulamentação. É, portanto, relevante se questionar se não é o momento, com base nos instrumentos de governança corporativa, compliance e ESG, que por motivo de interesse público a sanção do art. 38, inciso III venha a ser finalmente operacionalizada. Isto pode se dar por meio de um novo Acordo de Cooperação Técnica firmado entre as autoridades interessadas (que permita diálogo, instrumentalização e regulamentação específica) ou diretamente pelo Cade pela competência própria dada pela lei 12.529/11. Por sua maturidade institucional o Cade poderá utilizar o Cadastro como um instrumento pioneiro (do ponto de vista internacional) e inovador voltado a reforçar o combate às infrações à ordem econômica.

Não por outro motivo, em março deste ano, a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (PFE-Cade) elaborou Termo de Referência para a contratação de consultoria técnica para elaboração de estudos sobre possível implantação do Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, de que trata o art. 38, inc. III, da lei 12.529/11. O referido Termo de Referência cita a análise aprofundada das autoras deste artigo na já citada obra coletiva “Sanções não pecuniárias no antitruste” e, de fato, já deu origem a contrato do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, para operacionalização da sanção, com vigência até 08.01.20245.

Diante do exposto, nota-se que, enquanto a regulação da concorrência nos mercados (regulados setorialmente ou não regulados) pelo Direito da Concorrência traz nítidos benefícios aos consumidores ao pavimentar espaços para mais competição e melhores ofertas de produtos e serviços, a recíproca também é verdadeira, pois a busca pela conformidade e o processo competitivo se fortalece na medida em que a defesa do consumidor “garante o acesso às informações adequadas, veda a publicidade enganosa e assegura a liberdade de contratação, estabelecendo um padrão de competição baseado na boa-fé e transparência”.6

É importante ressaltar que a proteção ao consumidor, atualmente, se evidencia como preocupação adicional para empresas vinculadas às boas práticas de governança corporativa. O tema trouxe mais atenção às boas práticas corporativas quanto à implementação de iniciativas e projetos que promovam medidas institucionais com Environmental, Social and Governance - ESG7. A partir do crescimento das plataformas digitais, maximizado pelo período pandêmico (com maior uso do e-commerce e dos serviços digitais), as estruturas de armazenamento de dados, fomentaram medidas que salvaguardem os direitos dos consumidores. Assim, a conformidade e a atenção à boas-práticas corporativas assumem papel de protagonismo e diferenciais competitivos para as empresas. Por todos esses motivos, evidente que a proximidade entre a proteção do consumidor e a defesa da concorrência, além de histórica, permanece atual e relevante, seja para o desenvolvimento da teoria do antitruste, seja para a atuação das autoridades, que no caso do cadastro (i.e., CNDC) envolverá não apenas a autoridade concorrencial como também atrairá o interesse das autoridades de proteção e defesa do consumidor e de proteção de dados.

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1 ATHAYDE, Amanda. (Org.) Sanções não pecuniárias no antitruste. 1ª Ed. São Paulo: Editora Singular, 2022.

2 As reedições com alterações que sucederam a Medida Provisória nº 204 foram, sucessivamente, a Medida Provisória nº 218, de 3 de setembro de 1990; a Medida Provisória nº 246, de 13 de outubro de 1990 e, finalmente, a Medida Provisória nº 276 de 5 de dezembro de 1990, sendo essa a versão que foi convertida na Lei nº 8.158 de 8 de janeiro de 1991.

3 CAUHY, Bárbara De’Carli. Sanções não pecuniárias em infrações contra a ordem econômica: uma análise da jurisprudência do CADE na vigência da Lei 12.529/11. Revista do IBRAC – Número 1 - 2021, p. 16.

4 Disponível em: https://falabr.cgu.gov.br/publico/Manifestacao/SelecionarTipoManifestacao.aspx?ReturnUrl=%2f. Acesso em 10 jan. 2022.

5 Contrato Nº 2023/000047 - Processo nº 08700.007747/2022-27.

6 PFEIFFER, Roberto A. C. Defesa da Concorrência e bem-estar do consumidor. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 10. 2010. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2133/tde-26092011-104134/publico/versao_completa_Roberto_Pfeiffer.pdf. Acesso em 24 jan. 2022.

7 Veja-se: NASCIMENTO, Juliana Oliveira. ESG: Capitalismo de Stakeholder e Cisne Verde – A Tríade Regenerativa do Futuro Global publicado pela Editora Revista dos Tribunais/ Thomson Reuters: 2022.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2023. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

Jéssica Coelho Costa
Advogada associada a VMCA Advogados (VMCA) desde 2019, tendo atuado como Assistente Técnica da Coordenação-Geral de Análise Antitruste 8 (CGAA8) do CADE entre 2018 e 2019. Pós-Graduada em Direito Econômico e Direito da Concorrência pela FGV Direito São Paulo; Bacharel em Direito pela UnB.

Juliana Oliveira Domingues
Professora Doutora do curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito da USP. Foi Visiting Scholar na Georgetown University Law School (2018). É atualmente Procuradora-Chefe no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Foi Secretária Nacional do Consumidor (Senacon) entre 2020/2022, presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor no mesmo período. Foi presidente do conselho nacional de combate à pirataria. É Diretora regional da Academic Society for Competition Law (ASCOLA).

Patrícia Arantes de Paiva Medeiros
Advogada. LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduada em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra, em parceria com o IBCCRIM. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

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