A violência urbana espalhada por todos os Estados brasileiros não pode subverter as competências estabelecidas nas leis, principalmente a Constituição Federal, muito menos chancelar a provável ineficiência no controle de uma atividade tão cara a qualquer sociedade civilizada, como o é a segurança pública, sobretudo em um país marcadamente autoritário e abusivo com uma parcela da população – a mais pobre.
O Estatuto Geral das Guardas Municipais (lei 13.022/14) define tais instituições como de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, cuja função é de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 2º). Essa definição vem em consonância com a Constituição da República, para quem os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações (art. 144, § 8º).
O Estatuto acima complementa ao dispor que é da competência das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município (art. 4º). Também assenta que elas estão subordinadas ao chefe do Poder Executivo municipal (parágrafo único, art. 6º), assim como cria mecanismos de controle interno e externo. No interno, que é exercido por corregedoria, naquelas com efetivo superior a 50 servidores da guarda e em todas as que utilizam arma de fogo, para apurar as infrações disciplinares atribuídas aos integrantes de seu quadro. No externo, exercido por ouvidoria, independente em relação à direção da respectiva guarda, qualquer que seja o número de servidores da guarda municipal, para receber, examinar e encaminhar reclamações, sugestões, elogios e denúncias acerca da conduta de seus dirigentes e integrantes e das atividades do órgão, propor soluções, oferecer recomendações e informar os resultados aos interessados, garantindo-lhes orientação, informação e resposta (art. 13).
A lei 13.675/18 instituiu o Sistema Único de Segurança Pública, onde constou como um dos órgãos integrantes as guardas municipais, mas asseverou expressamente que cada qual atuaria nos limites de sua competência (arts. 9º, caput e §2º, VII; 10, caput).
Alguns municípios querem empregar as guardas municipais as mesmas atividades das polícias, mormente a da polícia militar, cuja função é de policiamento ostensivo. A própria Constituição da República expressa os órgãos de segurança pública, quais sejam: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; e polícias penais federal, estaduais e distrital. Ainda prescreve que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144, caput e incisos).
Ocorre que cada órgão que compõe o quadro de segurança pública desempenha um papel específico, nos termos da lei. Temos, por exemplo, polícias ostensivas (militares), polícias investigativas (federal e civis). E para além disso, esses órgãos estão passiveis de controle externo, o qual é exercido pelo Ministério Público, como função institucional (CR/art. 129, VII), bem como pelo Poder Judiciário. Já as guardas municipais não estão passíveis de tal controle externo, não servindo para tanto apenas uma ouvidoria. Entretanto, mesmo que houvesse este tipo de controle, na prática, seria inviável, quando consideramos o tamanho geográfico brasileiro, contando com 5.570 municípios. Se para fiscalizar 26 Estados e o Distrito Federal há dificuldades, ficando vulneráveis as apurações de eventuais abusos e responsabilidades dos policiais, com a quantidade de municípios haverá um sobressalto em termos de dificuldades para tais fins.
Nos termos do que dito, a 6ª Turma do STJ, por unanimidade, no Resp. 1.977.119/SP, com relatoria do Ministro Rogério Schietti, assim destacou:
Tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil – em contrapartida à possibilidade de exercerem a força pública e o monopólio estatal da violência – estão sujeitas a rígido controle correcional externo do Ministério Público (art. 129, VII, CF) e do Poder Judiciário (respectivamente da Justiça Militar e da Justiça Estadual). Já as guardas municipais ? apesar da sua relevância ? não estão sujeitas a nenhum controle correcional externo do Ministério Público nem do Poder Judiciário. É de ser ver com espanto, em um Estado Democrático de Direito, uma força pública imune a tais formas de fiscalização, a corroborar, mais uma vez, a decisão conscientemente tomada pelo Poder Constituinte originário quando restringiu as balizas de atuação das guardas municipais à vigilância do patrimônio municipal. Não é preciso ser dotado de grande criatividade para imaginar – em um país com suas conhecidas mazelas estruturais e culturais – o potencial caótico de se autorizar que cada um dos 5.570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao comando do prefeito local e insubmissa a qualquer controle externo. Ora, se mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros.
O STF, ao julgar a ADPF 995, entendeu ser inconstitucional interpretação que põe as guardas municipais como órgão não integrante do Sistema de Segurança Pública. A decisão tem a relatoria do Min. Alexandre de Moraes, que dissertou sobre a necessária eficiência da prestação do serviço público, neste caso, a segurança pública. E para alcançar esta finalidade, expressou-se da seguinte forma:
É evidente a necessidade de união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais; bem como seu total distanciamento em relação ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.
Cabe lembrar que a Suprema Corte, por meio do RE 846.854, já havia dito que as guardas municipais executam atividade de segurança pública, essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade.
Não obstante as decisões da Corte Suprema brasileira, ela jamais expressou que as guardas municipais exercem atividade típica das polícias, seja ostensiva, seja investigativa. Destarte, a decisão do STJ sobre o tema (Resp. 1.977.119- analisado acima) continua em pleno vigor. Tanto é que a Corte Superior, pela 3ª Seção, no HC 830.530, reafirmou seu entendimento, por unanimidade. Na fundamentação deste julgado, o Min. relator Schietti Cruz citou uma decisão do próprio Supremo, in verbis:
O julgamento do AgR no MI n. 6.515/DF (Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Rel. p/ o acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 6/12/18), apreciado em conjunto com os AgR nos MI n. 6.770/DF, 6.773/DF, 6.780/DF e 6.874/DF, de mesmo objeto, é exemplo claro disso. Para negar o pedido de concessão de aposentadoria especial aos integrantes das guardas municipais por equiparação às atividades de risco das polícias, afirmou-se que "a maior proximidade da atividade das guardas municipais com a área de segurança pública é inegável. No entanto, trata-se de uma atuação limitada, voltada à preservação do patrimônio municipal, e de caráter mais preventivo que repressivo", compreensão reiterada pelo Plenário da Corte no ARE n. 1.215.727/SP (Tema de Repercussão Geral n. 1.057, DJe 29/8/19).
Atualmente está trâmite na Câmara Legislativa Federal um projeto de lei (PL 1.316/21) para alterar o Estatuto Geral das Guardas Municipais, com a finalidade de serem denominadas de polícias municipais e seus agentes de policiais municipais. A mudança de nomenclatura nada altera a competência delineada pela Constituição Federal para o órgão sob análise.
Como se não bastasse querer dar competência a órgão que não a possui, sob a justificativa de que a violência urbana brasileira deve ser combatida a qualquer preço, um deputado estadual do Rio de Janeiro- Anderson Moraes/ PL- teve a “brilhante” ideia de legalizar a atividade de justiceiro, agora com a rubrica de guardião da segurança pública, e propôs um projeto de lei neste sentido. Absurdo total. Não desconhecemos a violência experimentada pelo Estado do Rio de Janeiro, mas uma proposta oportunista e descabida dessa não irá resolver o problema. Ao que tudo indica, mais parece “jogada” eleitoral, o famoso jogar pra galera.1
No que toca efetuar prisão em flagrante delito, o agente integrante das guardas municipais pode realizar normalmente e dentro dos limites da lei, isto é, o delito deve ser claro e concomitante ao agir do guarda municipal. Não cabe a ele, porém, efetuar, por exemplo, a busca pessoal pelo simples fato de “achar” que um indivíduo porta algum objeto ilícito. Se até mesmo o policial militar, que detém competência para a atividade de busca pessoal, não pode exercê-la com base em tirocínio policial, ou algo do gênero, muito menos a terá um agente da guarda municipal. Não olvidando que qualquer do povo pode efetuar prisão em flagrante delito (CPP, art. 301).
Diante de todas as observações feitas, fica evidente que a lei maior – Constituição da República-, acompanhada pelas demais leis ordinárias (como deve ser), não constituiu as guardas municipais com competências próprias das polícias, tanto ostensiva quanto investigativa. Esta afirmação não pode ser subvertida, ainda que pelo STF, para dizer o contrário, o que não é dado a esta Corte. Interpretar a lei Maior não significa reescrevê-la.
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1 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/deputado-bolsonarista-apresenta-projeto-para-legalizar-milicias-de-justiceiros-no-rio/