Migalhas de Peso

O crime de evasão de divisas e os criptoativos

Nos últimos tempos, o mercado financeiro tem sofrido diversas transformações, em especial a forma de compra e venda de criptoativos. Com isso, a legislação tem se aprimorado a fim de regulamentar essa nova ordem e tipificar como crime algumas condutas.

13/12/2023

O contexto da criação de qualquer infração penal, a rigor, tem por escopo uma análise detida no seio social. Ou seja, os indicadores sociais, na seara na política criminal, são indispensáveis para uma efetiva aplicabilidade da norma incriminadora.

Dito isso, no que toca à tutela dos delitos em face da ordem econômica, especialmente àqueles imanentes às relações dos particulares com Estado, seja na ausência de tributação e/ou a remessa de valores do Brasil para fora do país, não ocupava destaque de importância no cenário legislativo pretérito.

Em que pese haver uma legislação referente ao Sistema Financeiro Nacional (lei 7.492/86), o Estado não despendia esforços para efetivar à reprimenda. No ponto, cabe sublinhar a capacidade do Poder Legislativo em antever o crescimento exponencial das relações negociais dos particulares com o mercado financeiro como um todo.

Em outras palavras, nos últimos anos, a relação das pessoas com o mercado financeiro tem aumentado exponencialmente, desde o aumento da compra de moedas estrangeiras como de investimentos das mais diversas espécies.

Frente a esse cenário, impende anotar a preocupação do Poder Legislativo em tutelar essas relações no âmbito do direito penal. Por conveniente, cita-se os pressupostos axiológicos encartados na lei 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), tidos na exposição de motivos1 da lei, in verbis:

“De longa data vem sendo sentida a necessidade de repressão mais eficaz ao gênero de conduta delituosa conhecida como "crime do colarinho branco". Já no início do meu Governo, preocupado com a necessidade de determinar a responsabilidade dos agentes dos mercados monetários e de capitais, instituí, por meio do decreto nº 91.159, de 18 de março de 1985, Comissão encarregada de elaborar anteprojeto de lei que não apenas contivesse a descrição dos crimes e respectivas penas, mas também normas relativas aos procedimentos para apurar infrações à legislação desses mercados, à promoção da responsabilidade dos infratores, às atribuições e instrumentos das autoridades administrativas para prevenir e solucionar situações de iliquidez e insolvência de instituições financeiras, e a procedimentos administrativos e judiciais de saneamento financeiro, reorganização e liquidação de instituições que explorem a intermediação dos mercados financeiros.

O Congresso Nacional, demonstrando compartilhar da mesma preocupação, aprovou o PL 273/83, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional e dá outras providências. Iniciativa das mais relevantes tem como escopo a provisão de norma geral capaz de coibir a prática, hoje cada vez mais frequente, de formas delituosas hodiernas, emergentes da atividade das instituições financeiras. Representa importante passo no sentido de aperfeiçoar a legislação geral em vigor e, por isso, merece prosperar."

Nesse sentido, destaca-se alguns tipos penais preconizados na lei 7.492/86 (Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), notadamente aos crimes mais comezinhos, quais sejam: informação falsa (art. 3º); gestão fraudulenta (art. 4º); sigilo da operação (art. 18º); evasão de divisas (art. 22º), respectivamente, cita-se: 

Art. 3º Divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira: Pena - Reclusão, de 2 a 6 anos, e multa. 

Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena - Reclusão, de 3 a 12 anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena - Reclusão, de 2 a 8 anos, e multa.

Art. 18. Violar sigilo de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários de que tenha conhecimento, em razão de ofício: Pena - Reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 a 6 anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Diante das novas tecnologias, e, consequentemente, das novas formas de entabular transações, sobremodo no âmbito virtual, inarredável definir o conceito, assim como, o modus operandi de algumas operações financeiras. Nesse espectro, o crime tipificado no artigo 22 da lei 7.492/86, denominado evasão de divisas, por vezes, materializa-se na modalidade dólar-cabo (remessa de valores, ao exterior, por meio de compensação ilegal).

Dito de outro modo, trata-se de infração penal que não exige muita sofisticação para a sua consumação, na medida em que pode ser praticada por qualquer meio de remessa, ao exterior, de valores não declarados à repartição federal competente2.  

Nas palavras da 2ª Turma do STF3, tem-se que: “O dólar-cabo se caracteriza por uma operação de câmbio informal, na qual a parte entrega valores ao ‘doleiro’ no Brasil e recebe o correspondente em outro país. No dólar-cabo invertido, a parte entrega valores ao doleiro no exterior e recebe reais no Brasil.”

Na ótica do STJ4, no âmago do crime de evasão de divisas, entende-se: "O delito de evasão de divisas, previsto no art. 22, parágrafo único, da lei 7.492/86, pode ser praticado não só mediante a efetiva saída do território nacional de pessoa que deixe de declarar às autoridades moeda ou divisa como também mediante técnicas mais elaboradas e complexas como o sistema de remessas de valores por meio de compensações, o que é conhecido como operação dólar-cabo ou euro-cabo”.

Ainda, o STJ sedimenta entendimento no sentido de que mesmo que o envio de valor se dê de forma fictícia, há a configuração do crime e evasão de divisas, in verbis: "No que tange à alegação de que o art. 22, parágrafo único (primeira configuração), da lei 7.492/86, constitui norma penal em branco, também não assiste razão ao agravante. Com efeito, essa Corte Superior de Justiça já decidiu que "para a caracterização do tipo penal em questão, não se exige complementação por meio de regulamentação do órgão federal competente, mas, sim, a transferência, transporte ou remessa física de moeda ou recursos para o exterior por meio de transações financeiras realizadas sem autorização legal, independentemente do valor, visando, com isso, à proteção da política cambial brasileira5" .

Noutro viés, na seara da reprimenda penal contra os delitos virtuais – não olvidando da complexidade da matéria -­ o professor Renato de Mello Jorge Silveira pertinentemente alerta para a "ilusão penal" que permeia a política criminal diante de novas e complexas situações vividas em sociedade6. Por sua vez, Roberta Simões Nascimento traz relevantes reflexões sobre a importância do "contexto que originou a lei" e do suporte empírico e argumentativo dado à norma no processo de sua elaboração7.

Nessa tessitura, vale lembrar que o parecer aprovado pelo colegiado da Comissão de Valores Imobiliários - CVM – O Parecer de Orientação 408, refere-se acerca das normas aplicáveis ao criptoativos. Isto é, nem todo criptoativo será considerado um valor mobiliário, consoante prevê a lei 6.385/76.

Sabe-se, contudo, que no mercado existem diversas moedas virtuais. O bitcoin, inegavelmente, tem angariado, nos últimos tempos, a maior atenção dos investidores em relação a este ativo. Em síntese, define-se bitcoin como: “Trata-se de uma moeda virtual e uma espécie de meio de pagamento, que pode ser empregado para diversos tipos de transações comerciais, observa-se que já vem sendo utilizado nas transações (compra e venda) de moeda estrangeira em algumas casas de câmbio do Brasil9”.

Urge, ante o panorama legislativo citado, pontuar a existência do bitcoin-cabo. Com efeito, “cumpre aqui observar que o bitcoin-cabo seria configurado como meio para transformação do seu valor em moeda estrangeira à margem do controle oficial do Estado e em desconformidade com as regulamentações do Bacen10”.

Vale pontuar, que embora ainda não regulamentada pelo Bacen e/ou CVM, a utilização não autorizada do bitcoin como meio para realização de operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira) — com o fim de promover a evasão de divisas do país — poderá configurar, em tese, os delitos de evasão de divisas previsto no caput do artigo 22 da lei 7.492/86 ou as modalidades de evasão-envio (intermédio da utilização da técnica do bitcoin-cabo) e evasão-depósito (manutenção de divisas em contas no exterior não declaradas ao Bacen, quando oriundas da utilização da negociação de bitcoin como meio para aquisição de moeda estrangeira)11.

Por fim, o cerne da questão é a possível reversão em lucro que o particular poderá se beneficiar, fora do país, reverberando, outrossim, em uma pretensa evasão de divisas por meio do bitcoin ou qualquer outro criptoativo que venha a ser utilizado na operação. Por essa razão, a declaração junto ao Bacen é fundamental para dar lisura à operação, e afastar qualquer ilação de ilegalidade.

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1 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7492-16-junho-1986-367988-veto-28247-pl.html

2 PINHEIRO. Ricardo Henrique Araújo Pinheiro. O Sistema de Compensação Ilegal via Dólar-cabo. In Migalhas, 27 fev. 2023. Disponível: https://www.migalhas.com.br/depeso/382046/o-sistema-de-compensacao-ilegal-via-dolar-cabo. Acesso em: 12 nov. 2023.

3 STF. 2ª Turma. HC 157.604/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4/9/2018.

4 AgRg no REsp 1.463.883/PR, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 17/8/21, DJe de 20/8/21.

5 AgRg no REsp 1.849.140/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 1º/9/20, DJe 9/9/2020). AgRg no AREsp 1.683.234/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 23/3/21, DJe de 29/3/21.

6 SILVEIRA. Renato de Mello Jorge. Política criminal aplicada ao cenário das criptomoedas: avanços e retrocessos. In revista Consultor Jurídico, 16 mai. 2022. Disponível: https://www.conjur.com.br/2022-mai-16/renato-silveira-politica-criminal-aplicada-criptomoedas. Acesso em: 23 jun. 2023.

7 NASCIMENTO, Roberta Simões. O argumento da intenção do legislador: anotações teóricas sobre uso e significado. In Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 58, n. 232, out./dez. 2021, p. 167-193.Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/58/232/ril_v58_n232_p167. Acesso em: 23 jun. 2023.

8 BRASIL. Parecer de Orientação CVM n. 40, de 11 de outubro de 2022, da Comissão de Valores Mobiliários: Os criptoativos e o mercado de valores mobiliários Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. Acesso em: 12 nov. 2023.

9 JAKITAS, Renato. Casa de câmbio passa a aceitar bitcoin para compra de dólar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 6 de maio de 2019. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passa-a-aceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208 Acesso em: 16 de agosto de 2021.

10 NUNES. Leonardo Bastos Nunes. O Bitcoin na Condição de Meio para a Consumação de Crimes Econômicos. In revista Consultor Jurídico, 30 set. 2021. Disponível: https://www.conjur.com.br/2021-set-30/nunes-bitcoin-consumacao-crimes-economicos/Acesso em: 12 nov. 2023.

11 NUNES. Leonardo Bastos Nunes. O Bitcoin na Condição de Meio para a Consumação de Crimes Econômicos. In revista Consultor Jurídico, 30 set. 2021. Disponível: https://www.conjur.com.br/2021-set-30/nunes-bitcoin-consumacao-crimes-economicos/Acesso em: 12 nov. 2023.

Luís Octávio Outeiral Velho
Formado pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), advogado inscrito na OAB/SC n. 53.254-B e coordenador do núcleo criminal do escritório Silva e Silva Advogados Associados.

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