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Apontamentos sobre a emendatio libelli no ato de recebimento da denúncia diante do overcharging, para fins de oferecimento do ANPP

Em um Estado Democrático de Direito, a função do processo penal não se resume mais na aplicação inexorável e mecânica do direito penal material, com a imposição de pena.

8/12/2023

Não há consenso na doutrina e na jurisprudência quanto a possibilidade de o juiz, no ato de recebimento da denúncia, ajustar o tipo penal para possibilitar o oferecimento de acordo de não persecução penal ao imputado.

Antes de tudo, é preciso lembrar que diante do alargamento da chamada Justiça Negocial, o princípio da obrigatoriedade da ação penal cede, cada vez mais – por questões de política criminal – espaços ao princípio da oportunidade, em prol da eficiência da Justiça, que deve se preocupar com a macrocriminalidade e não com delitos menores, cuja solução pode ser realizada por consenso entre o Estado, o imputado e a vítima, que deixa de ser personagem neutra no conflito1.

Com a abertura de espaços de consensos no processo penal se busca evitar a realização do processo e promover a efetividade da Justiça mediante acordo que imponha obrigações, com características de penas, ao imputado, com a contrapartida de se livrar dos incômodos do processo e das consequências que uma condenação poderia lhe acarretar.

Afogada em processos, que vincam a sua lentidão e ineficiência, a Justiça brasileira vem aderindo gradativamente às Regras de Tóquio na criação de instrumentos que simplificam os procedimentos na repressão dos crimes de pequeno e médio potencial ofensivo.

Sob essa ideologia, nasceram os institutos da transação penal, da suspensão condicional do processo, da colaboração premiada, dos acordos de leniência e agora o acordo de não persecução penal e cível, introduzido pela Lei n. 13.964/2019.

Com a implantação desses mecanismos, se arrefeceu a necessidade de a punição dos crimes ser perseguida por meio do exercício da ação penal, que a Justiça Negocial busca evitar a todo custo.

Desse modo, não está mais na discricionariedade do Ministério Público fazer sentar no banco dos réus os infratores da lei quando esta permite a composição do conflito por meio de qualquer das formas inovadoras de persecução penal.

Ninguém pode ser submetido a um processo que não se mostre útil e necessário.

Em um Estado Democrático de Direito, a função do processo penal não se resume mais na aplicação inexorável e mecânica do direito penal material, com a imposição de pena.

Isso não significa, entretanto, que o Estado renuncia nessas situações o direito de punir; simplesmente, usa novos modelos de repressão, que considera necessários e suficientes à reprovação do ato ilegal quando diante de crimes que ofendam bens jurídicos de baixa ou média densidade.

Sabemos que o princípio da legalidade obriga o Ministério Público a promover a ação penal quando se tem a materialidade de um fato penal punível e indícios de quem o praticou. Entrementes, a obrigatoriedade, hodiernamente, é temperada pelo princípio da oportunidade, quando o interesse na persecução penal puder ser satisfeito de outro modo2.

É preciso desmistificar a ideia de que o papel do Ministério Público é o de perseguir a condenação de culpados. É seu dever, como fiscal da lei, como partícipe do sistema de Justiça, proteger também inocentes e até garantir a preservação dos direitos fundamentais daqueles a quem acusa, tanto que a lei lhe permite impetrar habeas corpus e até interpor recursos em benefícios deles.

Aí está a nobreza do Ministério Público.

Pimenta Bueno, no seu tempo já lembrava que “o Ministério Público não deve incomodar levianamente e menos oprimir injustamente a um só cidadão; seria isso um grave crime; e por outro, deve ser um guarda vigilante e enérgico da ordem pública e repressão dos delitos, por mais importantes que sejam os delinquentes. As leis penais não tem vida senão pela ação dele3.

A denúncia não é algo inconsequente ou trivial; antes, ao contrário, pode ser um acontecimento que marque de maneira negativa e irreversível a vida de uma pessoa4.

Diante das consequências que traz a ação penal, não pode o Promotor de Justiça tergiversar quando ao caso couber institutos de despenalização, como o acordo de não persecução penal.

Daí a necessidade de se exercer um controle cada vez maior para fortalecimento desta etapa do processo, como alerta Alberto Binder. O objetivo, segundo o emérito jurista argentino, é evitar acusações infundadas. Seria catastrófico, diz ele, um sistema no qual as pessoas sejam submetidas a um julgamento oral e público sem fundamento. Mesmo no caso de uma absolvição posterior, haveria uma certa deterioração do crédito social do acusado. Assim, o fortalecimento intermediário é uma consequência própria do sistema acusatório5.

De fato, nem a absolvição, ao fim do processo, equivale à certeza da inocência, especialmente quando assentada na dúvida sobre a autoria ou culpabilidade do autor do fato criminoso imputado.

Avançando desde logo sobre a questão, já antecipo em dizer que, em situações excepcionais, pode o juiz realizar a emendatio libelli para desclassificar o crime a fim de que a resolução do conflito seja analisada sob a ótica da Justiça Negocial.

A circunstância de a emendatio libelli estar prevista no Título XII do Livro I (Da Sentença) do CPP, não significa, como muitos pensam, que seja proibido ao juiz utilizá-la já no início do processo, quando do recebimento da denúncia, especialmente diante de situações de overcharging que restrinjam ou comprometam direitos fundamentais ou obtenção de favores legais pelo imputado6.

Como garantidor dos direitos fundamentais na persecutio criminis, se lhe permite atuar positivamente, colmatando lacunas que impeçam ou dificultem a realização do devido processo legal, onde o princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem o seu habitat natural, tanto na sua vertente de proibição do excesso como na proibição da insuficiência.

Ora, constitui ofensa transatlântica à dignidade humana submeter alguém, desnecessariamente, às agruras do processo penal.

Não sem razão que se repete a frase, já empoeirada pelo tempo, que o processo em si e por si já é uma pena. Em assim sendo, sempre que o processo representar uma injustiça, é dever do juiz abroquelar o ser humano desse opróbio.

A dimensão positiva dos direitos fundamentais licencia o juiz a suprir falhas normativas que coloquem em risco valores afetos à dignidade do ser humano, por meio do princípio da proporcionalidade, na sua faceta negativa de proteção deficiente.

É o que ocorre quando, por falta de uma autorização legal expressa, se vê impedido de modificar a imputação realizada na denúncia, com notórios e irreversíveis prejuízos ao acusado, quer pela possibilidade de a ação penal ter um procedimento mais simplificado (perante o Juizado Especial, por exemplo); de ver, pela gravidade da pena e até hediondez do crime, decretada sua prisão preventiva, ou tolhido das benesses permitidas pela Justiça Penal Negocial, entre elas o ANPP.

Nessa linha de ideias, para preservação do estado de inocência – valor afeto à dignidade do ser humano – o juiz está autorizado a atuar como legislador positivo para suprir lacunas normativas, por meio da analogia in bonam partem.

Isso porque, não é razoável que, podendo o juiz, no momento culminante do processo, modificar a tipificação dada na denúncia, não possa fazê-lo no seu início com o propósito de evitá-lo.

Ah!, dirão alguns que a clareza dos fatos somente se dá com a produção de provas na instrução criminal, quando, então, se reserva ao juiz a possibilidade de alterar a qualificação jurídica deles.

Contudo, em se tratando de processo penal, a imputação se faz à vista das informações do inquérito policial, e não in status assertionis, considerando apenas as afirmações do órgão acusador, sem tomar em conta o substrato das evidências nele recolhidas.

Diferentemente do processo civil, onde se alega para se provar, no processo penal nenhuma ação pode se iniciar sem que haja prova da materialidade do crime e indícios da sua autoria, sob pena de faltar-lhe justa causa.

A materialidade e a ação que a produz é que dá contornos e define a tipicidade penal, dela não podendo a acusação desbordar.

O fato descrito deve se subsumir a um determinado tipo penal.

Se há manifesto equívoco na tipificação do fato criminoso, não há sentido que a correção se faça apenas no final do procedimento, com dispêndio de tempo, recursos e energia, na contramão do princípio da duração razoável do processo, notadamente quando ele puder ser evitado pelos institutos da transação, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal7.

Não arranha o princípio da legalidade o juiz tomar por empréstimo a regra do artigo 383 do CPP, utilizando-se da analogia como modo de integração para colmatar a omissão legislativa.

Se o próprio sistema já dá a solução para um determinado problema jurídico, o favor rei permite a integração dela para resolver situações semelhantes.

É equivocado pensar que a emendatio libelli incide apenas sobre o fato provado, e não sobre a hipótese acusatória. O saneamento da persecutio criminis pode ser feito em qualquer etapa do procedimento, quando voltado a garantir direitos fundamentais do(s) imputado(s).

Bem verdade que, em regra, a emendatio libelli deve ser realizada por ocasião da sentença, quando os fatos já estão assentados em provas produzidas na instrução criminal.

Todavia, se a errônea tipificação puder alterar o procedimento ou a competência, impedir a extinção da punibilidade pela prescrição ou a concessão de fiança, colocar em risco a liberdade do imputado pela possibilidade de o crime (erroneamente) imputado dar ensanchas à prisão (v.g., previsão de pena de reclusão ao invés de detenção), ou tolher a concessão de benefícios da Justiça Negocial (transação, suspensão condicional do processo e acordo de não persecução penal), é dever do juiz proceder a correção do tipo penal a bem do processo e da própria Justiça.

Imagine-se as situações em que o Ministério Público oferece denúncia por roubo ao invés de receptação simples, onde seria cabível a suspensão condicional do processo, ou quando o querelante, ofendido por calúnias, na queixa-crime qualifique o fato como injúria para subtrair do querelado a exceptio veritatis.

Em casos tais, permitir que a emendatio libelli se faça somente no fim da instrução implicaria em danos ao processo, com inevitável anulação de atos praticados, inclusive da audiência de instrução e julgamento, que as circunstâncias mostrarem imprescindível se renovar8, sem falar nos prejuízos ao réu, que seria processado desnecessariamente.

Convém lembrar que há uma forte tendência em se considerar que o réu não se defende apenas dos fatos, mas do fato juridicamente qualificado, tanto que é requisito da denúncia a classificação do crime. Consequência disso é a posição cada vez maior da mitigação do princípio iura novit cúria para se ter, como indeclinável, a manifestação do réu nos casos de emendatio libelli.

Na senda dessa corrente, se exsurge a necessidade de se ouvir o réu sempre que o juiz, sem alterar os fatos, modificar o tipo penal, tenho ser pertinente que a emendatio libelli também se faça, excepcionalmente, no ato do recebimento da denúncia, quando saltar aos olhos o erro na qualificação jurídica dos fatos nela realizada.

Se o erro na capitulação é evidente e não deixa nenhuma dúvida quanto ao defeituoso enquadramento penal, ofende a lógica e a razoabilidade postergar a correção para o fim do procedimento, com desperdício de tempo e de etapas do processo, máxime quando puder acarretar a nulidade de atos ou privar o imputado de benefícios legais.

Embora com certa timidez, nossos Tribunais Superiores começam a entender que, em situações de overcharging, prejudicial ao devido processo legal, pode o juiz proceder ajustes na tipificação dada na denúncia por ocasião do seu recebimento ou após a resposta do réu, pois como bem enfatizou o Ministro Nefi Cordeiro, “impedir o exame judicial em qualquer fase do processo como meio de aplicar direitos materiais e processuais urgentes, de conhecimento obrigatório do juiz, faz com que se tenha não somente a mora no reconhecimento desses direitos, como até torná-los prejudicados”9.

Constituindo a classificação do crime requisito da denúncia (CPP, art. 41), tem ela transcendental importância, pois é a estrela guia do processo, do procedimento, da competência e, por conseguinte, da validade dos atos processuais que se venha a realizar, como também da própria utilidade da ação penal, dispensável ante situações que autorizam a Justiça Negocial.

Em assim sendo, se a errônea qualificação jurídica do fato histórico repercute na definição da competência ou na obtenção de benefícios, o juiz, como tutor do due process of laws, deve proceder o(s) ajuste(s) necessário(s), para salvaguardar a ordem dele e os direitos do imputado10.

Se, desde logo, se apercebe da denúncia que a tipificação dada aos fatos se afasta, em substância, do bem jurídico tutelado, de forma a comprometer a própria regularidade do processo e a concessão de favores legais, é sua obrigação, até por razões de economicidade, acertá-la desde logo.

Devemos ter presente que o excesso de acusação não pode prejudicar o réu, e que ela não é infensa ao controle judicial no início do processo.

Na verdade, a atividade punitiva do Estado carece de controle desde as investigações preliminares, para que ela própria seja conduzida nos carris da legalidade e sempre com observância aos direitos fundamentais do imputado, como expressão da dignidade do ser humano, que não pode ser molestado por qualquer tipo de persecução se não houver razões ou necessidade dela.

Com raízes no direito norte-americano, quando floresceu na década de 1960, o overcharging é prática corriqueira no sistema adversial, no qual o Promotor Público goza de ampla discricionariedade na definição dos crimes e das penas a serem aplicadas.

Sendo o sistema propulsado pela Justiça Negocial, onde mais de 90% dos casos são resolvidos pelo plea bargaining, o overcharging, tanto horizontal (caracterizado pela multiplicação de crimes imputados) como vertical [pela imputação de crime(s) mais grave(s)] constitui poderoso instrumento em mãos da acusação nas negociações que faz com o imputado, com vistas a forçá-lo a um acordo em troca de um guilty plea ou no contendere, com aceitação de crimes menos grave e/ou com penas menores.

Enquanto nas terras norte-americanas o overcharging é utilizado para forçar um acordo sobre a aceitação da culpabilidade em troca de benefícios no cumprimento da pena, paradoxalmente, em nosso país, ele tem servido como obstáculo à Justiça Negocial, frustrando sua finalidade de resolução dos conflitos penais com celeridade e simplificação, com reflexos na reparação dos danos à vítima, personagem não esquecida nos espaços de consenso.

Mas diferentemente do sistema common law, o brasileiro, na linha do europeu, o juiz não é convidado de pedra, onde a tudo assiste sem nada opor.

No sistema acusatório, o juiz tem autoridade para controlar toda a persecução penal, desde a prisão em flagrante (art. 3º-B, do CPP), passando pelo recebimento da denúncia ou queixa, que pode rejeitar (art. 395, do CPP), pela suspensão do processo (art. 92, do CPP), declaração da incompetência absoluta, extinção do processo por litispendência e outras matérias de ordem pública, e até proferir sentença condenatória mesmo tendo o Ministério Público manifestado pela absolvição (art. 385 do CPP).

Em um Estado Democrático de Direito, não há poder absoluto, sem controles nem limites.

Como ato do Poder Público, a denúncia se submete ao controle formal e material do juiz, pois do poder de acusar pode dele se abusar.

O controle judicial é a pedra de toque do devido processo legal.

Em razão dos altos custos políticos e jurídicos implícitos ao ato de acusar e por sua ingerência nos direitos da pessoa, este poder está submetido a limites. Mas como ocorre com todos os atos de Estado, de nada valeria a existência de limites para o exercício desse poder se não houvesse uma instância responsável por verificar o cumprimento desses limites11.

O ato de recebimento da denúncia constitui filtro que o juiz realiza no exercício do controle da legalidade da ação penal, sendo tarefa dele barrar acusações infundadas, abusivas ou desnecessárias.

A denúncia é um ato de responsabilidade, que deve ser exercido com probidade e lealdade processual, por conta dos nefastos efeitos que a abertura do processo penal provoca na vida do imputado.

Não basta que se permita ao réu o amplo exercício da defesa. Antes disso, é preciso evitar, a todo custo, os processos desnecessários, a abertura de julgamentos contra a pessoa quando falta base probatória suficiente para instauração da ação penal, ou quando a Justiça possa ser realizada por outra forma menos tormentosa e infamante ao imputado.

No recebimento da denúncia, o juiz não verifica apenas se há justa causa para se promovê-la, entendida como a existência de suporte probatório mínimo quanto a autoria e materialidade.

É preciso que vá além e sonde se há fundamento para se exercitar a ação penal, se há utilidade e necessidade dela diante das alternativas consensuais que o sistema oferece para desafogo e eficiência dele próprio.

O juiz deve mesmo debruçar toda atenção quanto à necessidade da instauração da ação penal, que, não canso repetir, constitui sempre um atentado à reputação do acusado, à sua honorabilidade social. É preciso escrutar se esta interferência está ou é justificada, seja pela existência de base probatória mínima quanto à autoria e materialidade, seja pela utilidade dela, quando o conflito puder ser resolvido por meio consensual.

Embora nenhuma pena possa ser aplicada sem o devido processo legal, a Justiça Consensual permite a imposição de obrigações que, uma vez satisfeitas, extingue a punibilidade, como no acordo de não persecução penal (CPP, art. 28-A, §13).

A pena reclamada na denúncia deve constituir o meio idôneo para tutelar o bem jurídico ofendido pelo crime. Em assim sendo, se a própria lei abdica da pena, contentando-se com a imposição de obrigações capazes de, pelo cumprimento delas, extinguir a punibilidade, não há, nessas situações legais, interesse de agir na promoção da ação penal, sendo de todo admissível o entendimento de que o juiz pode rejeitar a denúncia por ausência de uma das condições da ação penal.

Assim, se o fato delituoso, as condições do seu autor, somados aos demais pressupostos de cabimento do ANPP permitirem a solução do conflito por esse instrumento, por certo que faltará interesse de agir na promoção da ação penal12.

Aliás, se bem observado, desde que preenchidos os requisitos prescritos para o acordo de não persecução penal, obrigatoriamente a justiça negocial deve ser instaurada, se apresentando mesmo como etapa antecedente da ação penal13.

Se é verdade que o imputado não tem direito subjetivo ao acordo, de outro tem quanto ao conhecimento das razões que o nega. Daí a necessidade de o Ministério Público explicitar, fundamentadamente, o porquê de não propô-lo.

Nessa linha de ideias, a denúncia somente tem lugar quando impossibilitada ou frustrada a justiça negocial. Enquanto não superado o processo negocial, faltará interesse de agir na promoção da ação penal.

Desnecessário dizer que os motivos e fundamentos da recusa estão sujeitos ao controle judicial14, exceto quanto ao juízo de necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime (CPP, art. 28-A, caput), que somente o imputado pode contestar por meio de pedido de revisão à instância superior do Ministério Público (CPP, art. 28, §14).

Se a recusa deitar suas razões no overcharging, o juiz, ex officio ou mediante provocação do imputado pode valer-se da emendatio libelli e proceder a correta tipificação do crime na denúncia, para assegurar a este o direito de questionar o seu não oferecimento ou enjeitamento.

Evidentemente que se trata, como dito acima, de uma situação excepcionalíssima, haja vista que, em razão do sistema acusatório – onde as funções de acusar e julgar são bem definidas no processo – o juiz não pode interferir na atividade regrada do Ministério Público de dar a qualificação jurídica ao fato criminoso segundo o seu entendimento, que, vale lembrar, é sempre provisório diante da possibilidade de se vir alterá-lo por ocasião da sentença.

Claro que, operando a desclassificação no ato de recebimento da denúncia, essa decisão é igualmente provisória, nada obstando que o juiz, ao fim da instrução criminal, proceda novamente a emendatio libelli, ou mesmo a mutatio libelli, se fatos novos assim autorizarem.

Convém anotar que a emendatio libelli, realizada para oportunizar ao imputado o questionamento da recusa ao acordo de não persecução penal, se faz com base nas informações e provas recolhidas no inquérito policial, as mesmas que animaram o Ministério Público a propor a ação penal. Se estas apontarem, em grau de verossimilhança, a possibilidade de o autor dela vir a provar a tipificação dada na denúncia, defeso se torna ao juiz coarctar esse direito por meio de emendatio libelli, no ato do seu recebimento.

O ANPP, como instrumento da justiça negocial e medida despenalizadora, tem como finalidade principal evitar a persecução penal via processo, ao mesmo tempo em que garante a eficiência da justiça e a reparação dos danos à vítima, se existentes.

Esse objetivo é reconhecido pelos Tribunais Superiores quando rechaçam a possibilidade do ANPP depois de oferecida a denúncia15, salvo em relação aos processos em curso no momento da entrada em vigor da Lei Anticrime, posição que o Supremo Tribunal Federal tende a consolidar no julgamento do HC n. 185.193/DF, afetado ao Plenário com o signo de repercussão geral.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o tema [1098] encontra-se sob a sistemática de recursos repetitivos, podendo-se dizer que há unanimidade quanto a impossibilidade do ANPP se a denúncia já tiver sido recebida16.

Restará saber se quando a desclassificação ocorrer na etapa da sentença e ela permitir, somada a outras condições, o acordo de não persecução penal, se se dará a este o mesmo tratamento que a Súmula 337 do STJ dá à suspensão condicional do processo.

A desclassificação importa no reconhecimento de que houve excesso de acusação, que pode ter sido a causa que inviabilizou o acordo de não persecução penal. Por isso, não há razoabilidade em impedir o mesmo favor reconhecido na referida Súmula.

Ora, a desclassificação que faz o juiz (na sentença) ou Tribunal (no recurso) importa no reconhecimento que houve excesso na acusação, prejudicial ao réu porque poderia ter evitado o processo com aceitação da proposta do acordo se tivesse o Ministério Público enquadrado corretamente o fato criminoso17.

A desclassificação – que deixa ver que o acordo poderia ter sido oferecido não fosse o erro na tipificação do fato –, põe à mostra também que o processo foi inútil e contraproducente, além de manifestamente prejudicial ao acusado, que viu-se processado, apenado e a sua primariedade comprometida.

Por essas razões, é preciso que os Tribunais Superiores firmem posição no sentido de que o juiz, diante de situações de overcharging, pode e deve, no ato de recebimento da denúncia, ajustar a tipificação do crime imputado ex officio ou mediante provocação da defesa, para possibilitar o oferecimento do acordo de não persecução penal.

__________

1 O ANPP permite a pronta reparação da vítima e a reinserção social do imputado, sob condições e por razões de oportunidade.

2 Cf. Claus Roxin, in Derecho procesal penal. Ed. Del Puerto, 2006, p. 90, negritos nossos.

3 Frederico Marques e Pimenta Bueno. Apontamentos sobre o processo penal brasileiro. 1959, Ed. Revista dos Tribunais, p. 127.

4 Enrique Ruiz Vadillo. El derecho penal substantivo y el proceso penal, 1997, Ed. Codex, p. 75.

5 Ideas y materiales para la reforma de la justicia penal. Ed. Ad-Hoc, 1ª Ed., p. 104.

6 Sérgio Rebouças é da opinião que “a emenda judicial à classificação jurídica apresentada na denúncia pode ocorrer a qualquer momento, revelando-se ultrapassada a orientação tradicional no sentido de que a providência só caberia no momento da sentença, com base no artigo 383, do CPP” (Curso de Direito Processual Penal, Vol. 1, Ed. D’Plácido, 2º Ed., 2022, p. 372. A mesma posição é externada no Vol.. II, p. 316/317)

7 “Impõe a emendatio imediata se a classificação correta acarretar a aplicação de benefícios que assistam imediatamente ao indivíduo, como transação penal e a suspensão condicional do processo” (Sérgio Rebouças, ob. cit., vol 2, p. 318.

8 O STJ já entendeu que ‘quando o magistrado verificar, de plano, que a conduta narrada na inicial não se amolda ao tipo penal capitulado, por questão de economia processual e para evitar nulidades de atos processuais, poderá corrigir, desde logo, a definição jurídica aos fatos ali narrados” (REsp n. 1.060.151/RJ, Rel. Min. OJ Fernandes).

9 STJ, HC n. 241.206/SP, Rel. Min Néfi Cordeiro.

10 Nesse sentido, confira-se AP n. 290/PR (Rel. Min. Félix Fischer); AgRg no REsp 1.201.963-SP (Rel. designado Min. Rogério Schietti Cruz); AgRg no RHC n. 146.541/SP (Rel. Min. Laurita Vaz); AgRg no RHC n. 154.287/GO (Rel. Min. Reynaldo Soarez da Fonseca); e HC n. 541.994/RN (Rel. Min. Antônio Saldanha Palheiros). No STF confira-se: HC n. 115.831/MA (Rel. Min, Rosa Weber); HC 89.686 (Rel. Min. Sepúlveda Pertence); HC 94.226 (Rel. Min Ayres Britto); HC 113.598/PE (Rel. Min Gilmar Mendes), dentre outros.

11 José Joaquín Urbano Martínez. El control de la acusación. Bogotá, Ed. Universidad Externado de Colombia, p. 52.

12 Este é o entendimento de Gustavo Badaró (O processo penal, Ed. Revista Dos Tribunais, 10ª Ed., p. 208/209); e Sérgio Rebouças (ob. cit., p. 332/33).

13 Assim entendeu o Min. Gilmar Mendes no voto proferido no HC 185.913/DF

14 STF, AgReg no ARE 141.2424 e HC n. 185.913/DF, ambos da Relatoria do Min. Gilmar Mendes.

15 Confira-se: HC 19.464, 1ª Turma (Rel. Min. Gilmar Mendes); Ag.Reg. no HC 215.999/PR (Min. Dias Toffoli); Ag.Reg. no HC 191.464/SC (Rel. Min. Roberto Barroso); Ag.Rg. no HC 212.284 (Rel. Min. Rosa Weber).

16 AgRg no AREsp n. 2.158.847/SC; AgRg no REsp n. 1.983.532/MS; AgRg no REsp 2.002.965/MS.

17 Essa a posição de Vinícius Gomes de Vasconcellos, Acordo de não persecução penal, Ed. RT, 2022, p. 64/65.

Orlando de Almeida Perri
Desembargador do TJ/MT.

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