Migalhas de Peso

O veto à ‘desoneração da folha de pagamentos’

O Brasil não foge à regra; desde então, tem havido medidas para alavancar a economia nacional, em busca de soluções que possam beneficiar a sociedade.

30/11/2023

Após a pandemia, um dos maiores problemas enfrentado pelas diversas nações tem sido o controle da inflação, dos juros e do desemprego.  Trata-se de situações imbricadas e de enorme relevância social, pois afetam todos os grupos sociais. Aqui e acolá, veem-se medidas paliativas, às vezes estruturais, visando à proteção da economia nacional e dos cidadãos, numa simbiose de necessidades públicas e privadas, legitimamente aferidas.

O Brasil não foge à regra; desde então, tem havido medidas para alavancar a economia nacional, em busca de soluções que possam beneficiar a sociedade.

No entanto, dada decisão, tomada às pressas, dependendo do seu alcance, poderá levar ao incremento do desemprego, da inflação e dos juros, justamente os pontos nevrálgicos que deveriam ser combatidos, evitados, pelos governantes. Mais desemprego significa menos dinheiro na economia, atingindo toda a cadeia produtiva.

Nesse sentido, o veto [discordância] da Presidência da República ao PL 334/23, aprovado, com ampla maioria, pelo Congresso Nacional, tem trazido, com razões fortes, comoções das entidades representativas de empresários e de trabalhadores, unindo-os, numa finalidade comum - a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e Força Sindical, manifestaram-se a favor da ‘derrubada do veto’.

O projeto de lei -  que contou com grande parte dos integrantes das duas Casas Legislativas, mas fora vetado pelo Chefe do Executivo Federal – trata da famigerada ‘desoneração da folha de pagamentos’ dos seguintes setores: call center, comunicação, confecção/vestuário, construção civil, empresas de construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carroçarias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação (TI), tecnologia de comunicação (TIC), projeto de circuitos integrados, transporte metroferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.

Essas atividades privadas, essenciais ao desenvolvimento nacional e à geração de empregos, passaram a recolher, em virtude das legislações, cujas vigências foram estabelecidas para determinados períodos (leis temporárias), contribuição previdenciária patronal sobre a receita bruta, à alíquota de 2% a 4,5%, dependendo da hipótese, e não sobre a folha de salários, cuja alíquota, normalmente, é 20%.

Sobreditas legislações, que desoneraram, em parte, o empresário, sempre tiveram prazo determinado de vigência (leis temporárias). Apesar disso, houve várias prorrogações dessas diretivas, proporcionando expectativas sérias de que o regime jurídico que passou a ser adotado (contribuição previdenciária incidente sobre a receita bruta, com alíquotas reduzidas, e não sobre a folha de salários) seria mantido, sobretudo no quadro atual de juros elevados e desemprego acentuado.

Conforme informações do Senado Federal, a desoneração da folha de pagamentos foi implantada como medida temporária em 2012, tendo sido prorrogada desde então. A desoneração atual tem validade até 31 de dezembro de 2023, ou seja, o projeto aprovado determina a prorrogação de 1º de janeiro de 2024 até 31 de dezembro de 2027.

Nessas condições, o veto ao projeto de lei atinge a segurança jurídica das entidades privadas, cujos direitos estão assegurados por sucessivas leis; empresários fincaram suas expectativas, seus anseios, em planos determinados, projetando-os, mediante verificação de custos, lucros, dividendos e demais elementos econômicos, tributários e contábeis.

Ceifar essa perspectiva impede, ou dificulta deveras, o empreendedorismo, além de não atender aos ditames estabelecidos na Constituição Federal.

O Professor argentino José Vilanova caracteriza norma jurídica como projeto-programação da conduta comum, com as características de bilateralidade e coercibilidade (Elementos de Filosofia del Derecho, pp.180 e ss; Apêndice III, p.397, 2ªed., Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1984).

Explica o autor:

“La forma en que el individuo queda así como órgano facultado a prolongar la proyecto-programación de la conducta común puede revestir dos formas: según el individuo quede autorizado a prolongar el sistema normativo proyectando - es decid, haciendo certa conducta – o programando, o sea a través de expresiones orales o escritas, las que se refieren a certa conducta.” (ob.cit., p.190. Grifos nossos).

A fundamentação contida no veto – o projeto de lei não previu compensação financeira, ante a perda da arrecadação tributária -, não pode prosperar, porquanto o projeto previu apenas prorrogação de situação jurídica (prevista em legislações sucessivas): não instituiu [ex novo] desoneração tributária, que pudesse macular contas públicas.

Logo, a aprovação do projeto pelo Parlamento não surpreendeu o erário; de outro lado, com o veto, houve ruptura de perspectivas sérias da atividade empresarial, especificamente os destinatários da norma jurídica.

Valter Shuenquener de Araújo, Magistrado Federal e Professor de Direito expõe:

“Segundo BEATRICE WEBER-DÜRLER [Vertrauensschutz im öffentlichen Recht. Basael und Frankfurt am Main: Helbing und Lichtenhahn, 1983m p.163], não se deve obstar a proteção de uma expectativa nos casos de mudança legislativa sob o argumento de que eu particular sempre deverá contar com essas alterações. A supressão da tutela de expectativas com base nesse pensamento esvaziaria, por completo, o objetivo do princípio da proteção da confiança. Embora as leis não sejam perpétuas, especialmente nos dias de hoje, as alterações que elas sofrem devem levar em consideração a confiança que nelas foi depositada pelos seus destinatários.”(O Princípio da Proteção da Confiança, p.172, Impetus, 2009, Niterói, RJ. Prefácio de Luís Roberto Barroso. Grifos não-originais).

O princípio da proteção da confiança decorre da segurança jurídica e da boa-fé nas relações jurídicas; assim, é princípio geral de Direito, ligado, propriamente, à estrutura normativa, ao arcabouço jurídico-constitucional.

Com efeito, basta perpassar por alguns artigos da Constituição da República, para perceber o quanto o Constituinte originário ‘prestigiou a proteção ao emprego’:

‘Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 6º, “caput”: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.             (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ;

VIII - busca do pleno emprego.’

Embora a rejeição ao veto exija maioria absoluta dos Deputados Federais e Senadores, cuja deliberação deve ser tomada em sessão conjunta (art.66, §4º, CF, redação da EC 76,2013), parece haver condições políticas para que venha a ocorrer, em virtude das manifestações das entidades representativas dos grupos afetados, de políticos e de grande parte da imprensa.

Portanto, a segurança jurídica, a proteção à confiança, os valores e princípios constitucionais ‘indicam’ a necessidade de manter-se a situação jurídica estabelecida há anos pelo Parlamento, inclusive com beneplácito do próprio Poder Executivo, que tem sancionado, aprovado, os projetos de leis da ‘desoneração da folha de salários’ nas legislações a respeito do tema.

Heraldo Garcia Vitta
Advogado e Professor de Direito. Parecerista e Consultor Jurídico. Especialista em Direito Privado, Mestre e Doutor em Direito do Estado. Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP).

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