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Fita isolante e o artigo 311 do Código Penal e a novel figura qualificada

A lei 9.426/96 introduziu o crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor no Código Penal, visando combater o aumento da criminalidade de veículos e sua venda ilegal, exigindo padrões probatórios rigorosos e proporcionalidade para condenações.

28/11/2023

A necessária base epistemológica, standard probatório e a observância do princípio da proporcionalidade para um decreto condenatório, a insuficiência da fita isolante para configurar o crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor e a limitação necessária da aplicação da nova figura qualificada.

A lei 9.426/96 modificou o Código Penal, no qual passou a conter o delito de adulteração de sinal identificador de veículo automotor- art. 311. Este crime surgiu a partir de um aumento da criminalidade de veículos automotores e sua comercialização ilegal. Segundo a Mensagem 784 do então Ministro da Justiça para o Congresso Nacional, estava-se disponibilizando aos órgãos de persecução penal instrumentos adequados ao combate de determinados crimes, como patrimoniais, violência contra a pessoa, corrupção e criminalidade organizada.  

A lei 14.562/23, no entanto, alterou a redação do art. 311 do CP, onde passou a constar também veículos não automotores, como reboque e monoblocos, para combater os crimes de receptação, roubo e a adulteração de veículos não automotores, na justificação do próprio autor da proposta da mudança legislativa, o senhor Deputado Federal Paulo Ganine e ratificada pelo relator Deputado Federal Hugo Leal na CCJ da Câmara dos Deputados.1

Nas palavras do deputado Paulo Ganine:

“Apenas no ano de 2016, foram registrados no país 556.330 ocorrências de roubo/furto de veículos, sendo que 330.920 foram recuperados, ou seja, 54,63% do total. Dessa forma, somente no ano passado 225.410 veículos podem ter voltado à circulação totalmente adulterados. Ocorre que o artigo 311 do Código Penal trata apenas do crime de adulteração de veículos automotores, não estando tipificado o crime de receptação de outros tipos de veículos, o que tem alimentado uma indústria de roubo, receptação e adulteração de veículos não automotores, como reboques”.  

O Senado Federal também foi no mesmo sentido e aprovou o projeto de lei nos termos do que decidiu a Câmara dos Deputados, pelo parecer do relator Senador Carlos Portinho na CCJ.3

Neste artigo nos limitaremos a tecer breves comentários acerca da novel figura do § 3º do art. 311 do CP no verbo conduzir, uma vez que quando praticada na atividade comercial e industrial tem a pena novos limites mínimos e máximos superiores ao que dispõe a forma simples, do caput (pena: reclusão, de 3 a 6 anos, e multa), bem como a desnecessária ciência do condutor sobre a ofensa da placa e da questão da fita isolante alterando determinado caractere e sua (a) tipicidade penal.

A figura qualificada (pena: reclusão, de 4 a 8 anos, e multa) – conduzir veículo automotor e não automotor, agora constante, na atividade comercial e industrial impõe pena mais severa. Por isso mesmo requer uma interpretação limitada deste tipo penal, incidindo no comércio e indústria dos objetos constantes no delito em estudo, ou seja, afasta-se a qualificadora quando se estiver, por exemplo, na atividade comercial de ifood, moto-táxi, uber, serviços de empresa de telefonia entre outros. O legislador foi claro ao criar a figura em apreço, qual seja, diminuir o roubo, receptação e adulteração de sinal de veículos automotores ou não, suas partes etc.

Grande discussão doutrinária e jurisprudencial sempre teve em torno do cometimento (ou não) do crime em destaque quando uma fita isolante é aposta na placa dos veículos automotores, adulterando-se o seu caractere. Não olvidando que o bem jurídico em tela protegido é a fé pública. Prevalece que o delito foi cometido. Neste sentido temos o RHC 116.371/DF, cuja relatoria fora do Min. Gilmar Mendes- STF, que ao se manifestar sobre a alegação de que a adulteração seria grosseira, remeteu-se ao que disse a PGR, para a qual a via eleita não se presta a corrigir o acerto (ou não) das decisões das instâncias inferiores, pois não caberia revolver o substrato fático subjacente, ou seja, não há possibilidade de dilação probatória.

A decisão acima se insere dentro de um contexto em que o processo nas instâncias ordinárias já havia transitado em julgado, porém houve pedido de revisão criminal no Tribunal de Justiça, tendo sido negado e impetrado habeas corpus no STJ, que também fora negado, somente a partir daí chega-se ao STF. Destarte, o ônus probatório e nos limites exigido pela revisão criminal era todo do condenado com uma decisão transitada em julgado contra si.

Contudo, pensa-se que assiste razão a decisão do STJ no Resp. 503.960/SP, a qual assentou que a conduta de apor fita isolante na placa de veículo automotor é atípica, isto é, não há condições da prática do delito em questão pelo meio empregado. O relator no Tribunal Superior, Desembargador convocado Celso Limongi assim ressaltou:

“No caso concreto, observa-se que a colocação de fita adesiva ou isolante para alterar letra ou número da placa de identificação do veículo é perceptível a olho nu. O meio empregado para a adulteração não se presta à ocultação de veículo objeto de crime contra o patrimônio. Qualquer pessoa, por mais incauta que seja, tem condições de identificar a falsidade que, de tão grosseira, a ninguém pode iludir. Em suma, a fraude é risível, grotesca. Logo, a fé pública não é sequer atingida”.

O relator destacou também o fato de se punir uma infração administrativa com uma sanção criminal. A decisão se deu por unanimidade, inclusive com os votos da Min. Maria Thereza e do Min. Og Fernandes.  

Ao verificar-se os laudos periciais sobre as adulterações das placas de veículos automotores por fita isolante o que se tem é apenas a constatação da mácula, quando muito a alegação de que um observador não atento poderia confundir os caracteres.4

Tais laudos são insuficientes, sendo necessário ao perito pormenorizar as medidas dos caracteres originais e aqueles adulterados, sobressaindo suas diferenças, dizer com exatidão se há capacidade de ludibriar alguém, principalmente os agentes estatais e a fiscalização eletrônica. Está-se querendo demonstrar que um expert pode constatar que a capacidade de engodo não existe, uma vez o meio empregado ser inadequado. De acordo com um standard probatório e epistemológico exigido para uma condenação penal, não pode haver um decreto condenatório fora desse quadro.

Com maior razão diante do preceito secundário do tipo, pois prevê pena de 3 a 6 anos, e multa. Nesta esteira nos ensina o professor Luiz Regis Prado, embora admita que há o crime na simples colocação de fita isolante alterando o caractere, nos seguintes termos:

“Nota-se extrema severidade da lei na repressão aos delitos aqui tratados, considerados mais graves – pelo indicador da severidade da sanção – que quaisquer outros crimes de falsidade, à exceção dos de falsidade monetária. Não se explica, sem ofensa ao princípio da proporcionalidade das penas, punir mais severamente a alteração de uma placa de automóvel que a falsificação de um relevante documento público”. (PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 250 a 361), volume 3 – ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 290.).    

Os autores João Paulo Martinelli e Leonardo Schimitt ensinam que o princípio da proporcionalidade penal serve tanto ao legislativo quanto ao judiciário, de modo a possibilitar aos magistrados ficarem atentos às proibições de excesso e de tutela insuficiente na atividade daquele poder, o que pode ser constatado no crime em estudo pela penalidade aplicada, muito elevada. Foge dos limites constitucionais. Até mesmo o STF já reconheceu a aplicabilidade do princípio em apreço, mesmo que timidamente, segundo os autores em destaque – HC n. 102.087/MG. O Min. Gilmar Mendes fez magistral abordagem, mas negou o madamus ao analisar o caso concreto, tratava-se da tipicidade penal (ou não) do porte de arma desmuniciada. (MARTINELLI, João Paulo e SCHIMITT, Leonardo. Lições fundamentais de direito penal: parte geral– São Paulo: Saraiva, 2016, p. 210.).

Portanto, defende-se primeiramente a atipicidade do crime do art. 311 do CP quando constatado por perito a insuficiência do meio empregado – fita isolante. Em segundo lugar, defende-se a inconstitucionalidade pela ofensa ao princípio da proporcionalidade, pois a pena é exacerbada. Além do que, defende-se a não qualificação do crime quando praticada fora da atividade comercial e industrial imanente ao tipo penal, que é de veículo automotor ou não, suas partes etc. Do contrário, estaremos, por exemplo, negando o acordo de não persecução penal a pessoas sem qualquer antecedente criminal, podendo piorar o quadro se continuarmos entender que a simples aposição de fita isolante, erro grosseiro, visível de pronto, configura o crime em análise. 

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https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1816341&filename=Tramitacao-PL%205385/2019

2 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2116263&filename=Tramitacao-PL%205385/2019 

3  https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9287767&ts=1684362879339&disposition=inline

4 Laudo: ICCE-RJ-SPVCDP-025773/2021- Procedimento:019-02254/2021; Laudo: ICCE-RJ-SPVPL-028975/23- Procedimento:039-03954/23)

Michel França
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Processual Penal. Professor e Palestrante.

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