A teoria do terceiro cúmplice (também conhecida como “eficácia externa” ou “transubjetiva” dos contratos”) já não é novidade nos contratos privados, havendo precedentes de sua aplicação no âmbito do STJ, por exemplo.
O STJ já reconhecia pelo menos desde 2008 que “o tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros, de modo positivo ou negativo, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato” 1.
Recentemente, em 2022, o STJ reafirmou que “os contratos são protegidos por deveres de confiança, os quais se estendem a terceiros em razão da cláusula de boa-fé objetiva”. E que, “de acordo com a Teoria do Terceiro Cúmplice, terceiro ofensor também está sujeito à eficácia transubjetiva das obrigações, haja vista que seu comportamento não pode interferir indevidamente na relação, perturbando o normal desempenho da prestação pelas partes, sob pena de se responsabilizar pelos danos decorrentes de sua conduta” 2.
A pergunta que se pode formular é a seguinte: a Administração Pública também está sujeita aos deveres de confiança (aos deveres anexos em geral) decorrentes dos contratos privados quando pretende celebrar contrato administrativo com um dos contratantes privados?
Formulando a pergunta de outro modo: a “eficácia externa” ou “transubjetiva” dos contratos privados também pode ser oposta contra a Administração Pública, a despeito do princípio da supremacia do interesse público?
A resposta parece ser positiva.
Logo de início já é possível perceber que o princípio da supremacia do interesse público não tem mais a mesma conotação do passado. A doutrina e jurisprudência contemporâneas têm mitigado, e bastante, a aplicação meramente abstrata deste princípio3, aliás, de qualquer princípio4.
E a legislação veio à reboque, a exemplo da LINDB que, desde 2015, proíbe expressamente a invocação, pura e simples, de “valores jurídicos abstratos” pela Administração Pública5.
É o começo do fim do que se poderia denominar “Era das prerrogativas” do direito administrativo. A Administração Pública não é mais do que ninguém; não está acima de ninguém.
Consequentemente, o contrato administrativo (a Administração Pública contratual) não está acima dos contratos privados, não existindo “hierarquia” entre um contrato administrativo e um contrato privado.
Isto significa que um contrato administrativo superveniente deve respeitar um contrato privado que lhe antecedente, não podendo interferir na esfera jurídica dos contratantes privados, de modo a perturbar o normal cumprimento das suas respectivas prestações obrigacionais.
Dito de outro modo, a Administração Pública não pode encarnar o papel de “terceiro cúmplice” para beneficiar ou prejudicar, mediante ação ou omissão, um dos contratantes de uma relação jurídica privada, mormente se esta for preexistente ao contrato administrativo6.
O contrato privado, para muito além dos “efeitos internos” entre as partes contratantes, também produz “efeitos externos” (“efeitos transubjetivos”), de modo a alcançar terceiros, dentre os quais se insere a Administração Pública.
Note bem.
Não bastasse essa evolução operada no direito administrativo, consistente numa espécie de “horizontalização” do poder administrativo (mitigação do princípio da supremacia do interesse público), é possível identificar, de modo inverso, uma espécie de “verticalização” no contrato privado, decorrente especialmente da complexidade das relações sociais e jurídicas e do seu (maior) alcance perante toda a sociedade.
Vale dizer, o contrato privado, em muitos casos, toma a forma (as vestes) de “quase” contrato administrativo, atendendo de modo concreto o interesse público, não raro, de modo até mais eficiente do que a própria Administração Pública poderia atender.
Só o puro preconceito poderia conduzir à conclusão de que a Administração Pública atende, sempre, só o interesse público e que os privados, inversamente, atendem, sempre, só o interesse privado. A primeira fórmula já vem sendo revisada há algum tempo pela dogmática do direito administrativo contemporâneo. É importante começar a revisar a segunda fórmula (a de que os privados atendem, sempre, só o interesse privado, ou seja, aquele de cunho meramente “egoístico”).
Seja como for, respeitando o tempo que a dogmática jurídica leva para evoluir, o fato é que a teoria do terceiro cúmplice (“eficácia externa” ou “transubjetiva” dos contratos) parece fazer todo o sentido também quando o assunto é Administração Pública, não havendo razão suficiente para deixar de aplicá-la nos contratos administrativos, em especial nos contratos administrativos supervenientes ao contrato privado.
Aliás, a via é uma mão-dupla: o contrato privado superveniente também deve respeitar o contrato administrativo antecedente, que também produz “eficácia externa” ou “transubjetiva” em relação a terceiros.
Nesse passo, o contrato administrativo não pode simplesmente ignorar um contrato privado antecedente, como se ele não existisse, interferindo de modo relevante, por ação ou mesmo omissão, no fiel cumprimento das prestações obrigacionais de uma das partes contratantes.
Um caso concreto pode ilustrar bem a questão.
A Administração Pública não pode celebrar um convênio cujo objeto seja a utilização de recursos do SUS para a aquisição e cessão de equipamento médico em favor de um hospital privado, filantrópico ou não, se este hospital mantém um contrato privado anterior, celebrado com empresa terceirizada, por prazo determinado e de longa duração, com cláusula de exclusividade, cujo objeto seja a prestação do mesmo serviço médico.
A celebração deste convênio, no caso concreto, importa em verdadeiro “esvaziamento” do contrato privado celebrado entre os contratantes privados, interferindo diretamente na execução das suas prestações obrigacionais, tendo o potencial inclusive de causar a rescisão indireta do contrato, não desejada pelo contratado (terceirizado), por conduta da própria Administração Pública. Ou seja, causar uma verdadeira desapropriação indireta travestida de convênio.
O contratado (terceirizado) que adquiriu equipamento semelhante, antes deste convênio, com o objetivo de prestar serviço médico mediante remuneração, com a disposição de recuperar este investimento no longo prazo, não pode ser simplesmente ignorado pela Administração Pública como se o seu contrato privado fosse restrito apenas às partes contratantes, ou seja, como se o contrato administrativo (o convênio) fosse superior hierarquicamente ao contrato privado celebrado anteriormente e o revogasse, ainda que tacitamente.
Não revoga. O contrato administrativo não é hierarquicamente superior ao contrato privado. Antes, deve respeito ao contrato privado que lhe é anterior.
Portanto, o contrato administrativo (o convênio) deve produzir efeitos apenas naquilo que não conflitar com o contrato privado, cuja “eficácia externa” ou “transubjetiva” deve ser garantida, inclusive por meio de ações judiciais que assegurem o cumprimento específico da obrigação (privada), não se devendo reduzir tudo a mero ressarcimento de perdas e danos, mormente se uma das partes contratantes é insolvente.
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2 REsp n. 1.895.272/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 26/4/22, DJe de 29/4/22.
3 A título de exemplo, vide: PEREIRA, Flávio Henrique Unes. A supremacia do interesse público sobre o interesse privado: superação ou releitura., in Revista CEJ, Brasília, Ano XIX, n. 65, p. 32-37, jan./abr. 2015.
4 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para Céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
5 Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
6 Embora não seja objeto do presente escrito, parece possível dizer que a Administração Pública tem o dever de diligência (due diligence) toda a vez que celebra um contrato administrativo.