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Magistratura de carreira, aposentadoria e incongruências

O texto analisa a necessidade de revisão previdenciária para magistrados visando a proteção da independência judicial, referindo-se ao julgamento do STF.

23/11/2023

1. Prolegômenos

A análise aqui realizada não desconhece o julgamento do tema da previdência dos magistrados ocorrido no STF nas ADIs 3.308, 3.363, 3.998, 4.802 e 4.803. O que se busca é uma avaliação a respeito da necessidade de o Congresso Nacional rever a questão previdenciária da Magistratura de carreira, para a proteção da noção de independência da jurisdição no Brasil.

2. Apresentação                                 

A aposentadoria dos magistrados no Brasil continha previsão específica no Inciso VI do art. 93 da Constituição Federal. A partir da Emenda Constitucional 20/1998, mesmo os magistrados sofreram efeitos das reformas da década de 90 do século passado, inicialmente com a alteração do texto do Inciso VI acima referido, que passou a contar com nova redação.

O disposto no artigo 40, como decorre da literalidade de seu texto, é originalmente destinado aos servidores públicos: “Art. 40. O servidor será aposentado.” O caput do art. 40 sofreu três modificações através de emendas constitucionais, nem sempre com a melhor técnica legislativa — mas isso é matéria para outro texto. Em 2019 sobreveio nova emenda, passando o art. 40 a contara com esse texto hoje em vigor:

Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

Uma realidade é imutável: a cabeça do artigo nunca perdeu sua ligação com “servidores”. O que já deveria tornar as regras dos parágrafos, incisos e alíneas, com pouca particularidade para agentes de atribuição que não se enquadre, estritamente, na condição de servidor público, e contenha alguma função assemelhada a agente político. O que seria, por exemplo, o caso da Magistratura — seguramente — e poderíamos conjecturar outras categorias com cariz constitucional como, por exemplo (mas não exclusivamente), o Ministério Público.

Ficaremos adstritos, adiante, ao caso da Magistratura.

3. Magistrados: agentes políticos

Sem muito alongar, certo é que o STF já reconheceu não estarem os Magistrados na categoria dos “servidores” públicos gerais, mas, na categoria dos “agentes políticos”:

A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. Ação que deveria  ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual – responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições –, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. Legitimidade passiva reservada ao Estado. [RE 228.977, rel. min. Néri da Silveira, j. 5-3-02, 2ª T, DJ de 12-4-02.]

Na sempre precisa posição do saudoso Hely Lopes Meirelles:

“Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaboram normas legais, conduzem negócios públicos, decidem e atuam com independência nos assuntos de sua competência. São autoridades públicas supremas do Governo e da Administração na área de sua de atuação, pois não estão hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes em seus julgamentos, e, para tanto, ficam a salvo de responsabilização civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido com culpa grosseira, má-fé ou abuso de poder”1

Não é demasiado referir: não significa isso haver qualquer distinção de “pessoas”, mas, de “atribuições de cargos”. Já temos uma pista a respeito da necessidade de um estatuto jurídico específico para esse “exercício de atribuições constitucionais”, aquelas que decorrem diretamente da Constituição. Inclusive para os efeitos previdenciários.

4. Magistrados e seu estatuto jurídico peculiar

Como é de conhecimento geral, existe uma importância substancial para a Magistratura em qualquer país do Mundo, especialmente onde haja o império do Estado Democrático de Direito. Em todos esses países, a Magistratura possui algumas garantias peculiares. O tratamento distinto dos magistrados não é uma novidade, aliás, deveria ser uma questão óbvia. Klaus Stern, em seu Derecho del Estado de Republica Federal Alemana refere (p. 610) que a diferenciação dos estatutos dos magistrados e dos demais servidores civis se deve não a pessoas ou cargos, mas por razão das tarefas a serem protegidas.

Note-se que não estamos tratando de “privilégios”. Muito mesmo de situações que só existiriam no Brasil. A análise versa sobre garantias reconhecidas em outros países, como proteção à Jurisdição. Não é uma proteção “ao juiz ou juíza” individualmente considerados. A proteção remuneratória, inclusive na inatividade, protege a independência da jurisdição. 

Infelizmente são pouco investigados — ou com menor frequência que a devida — os Princípios de Bangalore para a Independência Judicial. Neste importante documento podemos encontrar a segurança financeira da Magistratura, inclusive para quando sair da atividade:

Segurança financeira: i.e. o direito ao salário e pensão estabelecido por lei não-sujeito à interferência arbitrária pelo executivo, de modo a afetar a independência judicial. Dentro dos limites desta exigência, entretanto, os governos podem deter autoridade para projetar os planos específicos de remuneração adequados aos diferentes tipos de cortes. Conseqüentemente, uma variedade de esquemas pode igualmente satisfazer à exigência da segurança financeira, desde que a essência da circunstância seja protegida.

Ainda que sejam toleráveis os níveis de remuneração por “tipos diferentes de corte”, não se poderia antever a redução remuneratória, sequer na aposentadoria.

Tomemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos, tantas vezes referida como o paradigma para a gênese de nosso STF. Os juízes aposentados da Suprema Corte dos EUA têm direito a uma pensão vitalícia igual ao seu maior salário integral. Para terem direito a uma pensão completa, os juízes que se aposentam devem ter servido durante um mínimo de 10 anos, desde que a soma da idade do juiz e dos anos de serviço no Supremo Tribunal totalize 80.2 Essa é a chamada Rule 80, como explicam Stephen J. Choi, Mitu Gulati and Eric A. Posner:

Quando os juízes atingem a idade de 65 anos, eles ficam sujeitos à Regra dos 80. De acordo com a Regra dos 80, um juiz recebe uma pensão integral - igual ao seu salário - quando a idade do juiz e os anos de experiência do juiz na magistratura são iguais a 80. Por exemplo, um juiz de 65 anos com 15 anos de magistratura qualifica-se de acordo com a Regra dos 80, assim como um juiz de 70 anos com 10 anos de magistratura [...].3 (tradução nossa)

Como nos EUA não existe idade de aposentadoria compulsória para o judiciário federal, a integralidade da “pensão” de aposentadoria seria um incentivo para juízes se aposentem. Stephen J. Choi, Mitu Gulati and Eric A. Posner chegam a usar a seguinte expressão: “the system indirectly bribes judges to leave office”,4 ou, em vernáculo, o sistema legalmente “suborna” os juízes para convencê-los a sair mais cedo de seus cargos para gerar maior rotatividade. Com maior razão o Brasil deveria  manter a integralidade, pois com a aposentadoria mandatória aos 75 anos a proteção remuneratória ao Magistrado de carreira seria violada não por uma vontade deste ficar ou não ficar em atividade, mas, por ser obrigado a sair da carreira.

A necessária preservação de uma prerrogativa da Magistratura, que é sua proteção remuneratória, deve se estender à inatividade. Toda proteção à independência da jurisdição é necessária, inclusive para o término da carreira e o período da inatividade (proventos de aposentadoria).

5. Conclusão

O presente estudo analisa, de forma breve, a potencial inconstitucionalidade da questão previdenciária geral dos “servidores”, sendo aplicada a clássicos agentes políticos, como os Magistrados de carreira. A matéria, todavia, já fora apreciada pelo STF. A necessidade de sistema específico, que garanta a integralidade da aposentadoria aos Magistrados de carreira, gera segurança não ao ocupante do cargo, mas, isso sim, à independência judicial, influenciando inclusive no recrutamento de novos Magistrados. De lege ferenda resta ao Congresso Nacional debater novamente a questão.

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1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Ed. Atlas. 2004. p. 76.

2 Disponível em: https://www.thoughtco.com/us-supreme-court-retirement-benefits-3322414#:~:text=Retiring%20U.S.%20Supreme%20Court%20justices%20are%20entitled%20to,and%20years%20of%20Supreme%20Court%20service%20totals%2080.

3 Stephen J. Choi, Mitu Gulati and Eric A. Posner. The Law and Policy of Judicial Retirement: An Empirical Study. The Journal of Legal Studies , Vol. 42, No. 1 (January 2013), p. 114.

4 Choi, Gulati and Posner. (2013), p. 114.

Luiz Henrique Antunes Alochio
Doutor em Direito (Uerj). Mestre em Direito Tributário (UCAM). Visiting Scholar - Florida State University (2022/23). Advogado (ES). Conselheiro Federal OAB (2019/2022). Redes sociais: @luiz_alochio

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