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Taylor’s Version: O que a regravação dos álbuns de Taylor Swift revela sobre direitos autorais?

No tocante à legislação brasileira, os direitos existenciais da compositora estão fora do tráfego negocial, restando a delimitação de eventual cessão circunscrita às questões patrimoniais.

16/11/2023

Certa vez, indagada durante uma entrevista a respeito de qual conselho daria a alguém que quisesse se tornar cantor, Taylor Swift, vencedora de doze prêmios Grammy, respondeu: “arrume um bom advogado”1.O motivo de tamanho pragmatismo decorre do fato de a cantora, aos quinze anos de idade2, ter firmado contrato com a Big Machine Records, gravadora com a qual produziria seis álbuns: Taylor Swift, Fearless, Speak Now, Red, 1989 e Reputation. O ajuste negocial estipulava que a Big Machine Records seria a proprietária dos masters3 das gravações correspondentes, em troca de um adiantamento em pecúnia4.

Com base no contexto normativo estadunidense5, os masters representam o produto acabado da universalidade estética, sendo feitas a partir dele todas as cópias destinadas à venda e reprodução, inclusive versões disponibilizadas por serviços de streaming e cópias físicas, como CDs e álbuns de vinil.  Assim, para que a reprodução daquela obra fonográfica possa ocorrer legalmente, é necessária a prévia autorização do proprietário dos masters.  Não obstante, a lei estadunidense contempla, ainda, que os direitos de reprodução podem ser objeto de cessão e, abrangendo as letras, partituras e melodias, são habitualmente atribuídos aos autores das canções6. 

Em 2018, logo após o fim da vigência do contrato firmado com a Big Machine Records, Taylor Swift vinculou-se à Universal Music Group. Já renomada por seu trabalho pretérito, o pacto com essa nova parceira do meio fonográfico atribuía à cantora a titularidade dos masters de suas gravações futuras, enquanto seus seis primeiros álbuns seguiriam pertencendo à gravadora anterior7.  Naquele mesmo ano, a cantora manifestou publicamente o seu descontentamento ao descobrir que a Big Machine Records havia vendido os masters a Scooter Braun, um produtor com quem ela já havia enfrentado problemas no passado. Para Taylor, a alienação de sua obra sem a estrita observância do direito de preferência/opção8 a seu favor – sem qualquer exigência outra que não o preço – permitiria que pessoas a quem não queria ser associada pudessem controlá-la perpetuamente. 

Com efeito, tal poder de controle se manifestou de modo mais explícito no ano seguinte: Taylor acusou a Big Machine Records e Scooter Braun, o comprador de seus masters, de impedirem-na de interpretar suas canções na ocasião em que receberia o prêmio de Artista da Década, bem como de utilizá-las num documentário produzido pela Netflix9. Ainda em 2019, Scooter Braun vendeu os masters para outra empresa – Shamrock Holdings – por trezentos milhões de dólares. Considerando a fama amealhada pela cantora já naquele momento, suas canções eram um ativo valioso para quem adquirisse os direitos sobre os masters: seu titular seria remunerado todas as vezes que tais específicas formas expressivas fossem acessadas por meio de serviços de streaming ou reproduzidas10. 

Inconformada, Taylor decidiu regravar seus cinco primeiros álbuns a partir de 2021, no intuito retomar o controle sobre suas músicas. Na ocasião, a cantora afirmou que os artistas deveriam ser os titulares de suas obras por muitas razões, estando a mais óbvia relacionada ao fato de serem os únicos que conhecem o trabalho a fundo11. Sempre sucedidos pelo epíteto Taylor’s Version, os álbuns regravados não apresentavam mudanças significativas em relação aos originais, com exceção da mudança no timbre da voz da cantora, em decorrência de seu amadurecimento, e algumas faixas mais extensas ou inéditas12, identificadas por meio da expressão from the vault (do cofre).

Mas por qual motivo as regravações, similares – embora não idênticas – às originais, asseguraram a Taylor Swift o direito de reaver o controle sobre as músicas gravadas com a Big Machine Records? O ajuste entabulado entre as partes permitia que, a partir de novembro de 2020, a cantora regravasse os cinco primeiros dos seis álbuns lançados ao longo da vigência do contrato.  Vale ressaltar que, no que tange à legislação dos EUA, por ser a autora das músicas, Taylor é a titular efetiva de tudo o que as envolve – com exceção dos masters originais, adquiridos por Scooter Braun13.

Por sua vez, no tocante à legislação brasileira, os direitos existenciais da compositora14 estão fora do tráfego negocial, restando a delimitação de eventual cessão circunscrita às questões patrimoniais15. Quanto à esfera econômica, as peculiaridades do contrato de Taylor com o cessionário original dos masters denotam certo estranhamento cultural do cotejo crítico entre o que costuma ocorrer no Brasil e o que foi praticado alhures.

Por exemplo, é mais frequente que as cessões patrimoniais no Brasil sejam mais amplas, exatamente pela disparidade de poderes entre quem faz o contrato de adesão (alienante) e quem a ele se submete (adquirente). Não é tão usual uma transmissão patrimonial definitiva seja adstrita a uma determinada versão da obra compósita/canção, mas contemple qualquer utência daquela forma expressiva. Ou seja, o caso de Taylor denotava uma obrigação negativa quanto àquelas formas originais do arranjo, sem cerceá-la, após algum tempo, de dar nova roupagem à criação estética. Assim, o conceito de unicidade da obra (no caso daquele contrato estadunidense) não impediu a autora de apresentar variações da mesma letra e melodia.

No mundo das artes plásticas, por exemplo, é conhecido o caso de Edvard Munch (1863-1944*) e seu quadro “O Grito”. Como poucas obras outras do artífice geraram o mesmo impacto no público, após vender seu corpo mecânico16, o autor emulou tal obra com algumas variações e uso de outras cores na composição de outros corpos físicos que também foram vendidos. Na minúcia, todas as obras (corpo místico e mecânico) eram originais e diferenciadas, ao menos para um especialista no assunto. De longe, pareciam extremamente símiles.

Tendo-se em mente que a própria voz humana é objeto de variações pela passagem do tempo17 (dinamismo dessa forma de direito de imagem), jamais uma nova gravação, biênios mais tarde, das obras objeto dos masters cedidos seria exatamente igual. Por isso, uma das formas de interpretação (pela boa-fé) do negócio jurídico entre cedente e cessionária seria delimitada entre a hermenêutica restritiva do pacto (art. 4º, da LDA), e a maximização das legítimas expectativas de ambas as partes (art. 422 do CC/02).

Importante ressaltar que gatilhos temporais como o contemplado no contrato estadunidense – no caso, o ano de 2020 – tiveram como causa18 o retorno financeiro (proporcionalidade) estimado pela gravadora relativamente ao investimento feito na artista e em seu trabalho quando ainda era uma jovem desconhecida. Sob o ponto de vista do risco assumido, a contrapartida pecuniária se revelou extremamente lucrativa, mesmo com a delimitação cronológica e contextual ao negócio pactuado.

De todo modo, a decisão de regravar os álbuns mostrou-se acorde às franjas contratuais. Ademais, do ponto de vista comercial, exprimir publicamente seu descontentamento com a venda dos masters e sua consequente exploração por Scooter Braun foi movimento que se mostrou acertado. Produzindo novas matrizes de seu repertório autoral – ainda que levemente distintas das originais –, Taylor Swift deu à sua fidelíssima base de fãs a oportunidade de escolher quais versões – bem como qual lado no embate – prefere.

Em síntese, a disputa estética posta ganha relevo por diversas razões jurídicas interessantes: (a) a oscilação que a reputação adquirida da cedente/autora teve; (b) o ganho exponencial do adquirente que assumiu o risco da cessão, originalmente; (c) a forma restritiva com a qual o contrato de cessão deve ser interpretado (adstrito àquelas formas expressivas, mas não ao corpo místico abstratamente); (d) a possibilidade de várias versões da mesma obra gerarem uma inflação de bens, de idêntica autoria, ao público-alvo; além (e) da forma pro-concorrencial com a qual os direitos de propriedade intelectual devem ser vistos no momento da exaustão.

Fato é que não cabe paternalismo jurídico em prol de gravadoras que mal dispuseram de seus direitos. Com sociedades empresárias a parêmia tadinha-de-mim desafina, e muito!

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[1] Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=M3At47FDh2E >. Acesso em 13.11.2023.

[2] O que, no Brasil, denotaria ser relativamente incapaz – art. 4º, I, do CC/2002.

[3] No Brasil, uma renomada disputa sobre a propriedade dos masters de gravações (contemplando obras clássicas como “Chega de Saudade”) se deu entre o falecido intérprete João Gilberto e a gravadora EMI (v. TJRJ, 7ª Câmara Cível, Des. André Andrade, AC 0206060-46.2013.8.19.0001, DJ 22.01.2016).

[4] Taylor Swift Vs The Big Machine: what’s this copyright fight really about? Artigo disponível em <https://iclaw.com/taylor-swift-vs-the-big-machine .>.  Acesso em 13.11.2023. 

[5] Inclusive o parágrafo 503, (a) (1) (B) da Copyright Law of the United States of America, do Título 17 do United States Code, prevê a possibilidade de os masters da gravação serem objeto de apreensão judicial contra atos de contrafação.

[6] Taylor Swift Vs The Big Machine: what’s this copyright fight really about? Artigo disponível em <https://iclaw.com/taylor-swift-vs-the-big-machine .>.  Acesso em 13.11.2023. 

[7]  What the hell happened: Taylor Swift Vs. Big Machine Records and Scooter Braun.  In: The Harvard Crimson, 24.12.2019. Disponível em: < https://www.thecrimson.com/article/2019/12/24/taylor-swift-big-machine-records-2019/ >.  Acesso em 13.11.2023. 

[8] Na contemporaneidade: que no Brasil atrairia a incidência do art. 513 do CC/2002. Por sua vez, sob o prisma da legalidade da Constituição de 1946, assim se pronunciava a melhor doutrina: “Disciplinou ela, todavia o contrato de cessão, dispondo que, não obstante a cessão de seu direito de exploração, o autor, mesmo posteriormente à publicação de sua obra, goza de direito de arrependimento, relativamente ao cessionário, embora não o possa exercitar sem o indenizar previamente do prejuízo que lhe possa causar; mas quando, ao depois, se decida a publicar a obra, é obrigado a conceder-lhe prioridade, nas condições originariamente determinadas” FERREIRA, Waldemar Martins. Tratado de Direito Comercial, V. 7, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 47.

[9] Ibidem. 

[10] Here’s why Taylor Swift is Re-releasing her old albums.  In: Time Magazine, 23.10.2023.  Disponível em:   < https://time.com/5949979/why-taylor-swift-is-rerecording-old-albums/ >.  Acesso em 13.11.2023.

[11]  Disponível em: < https://taylorswift.tumblr.com/post/185958366550/for-years-i-asked-pleaded-for-a-chance-to-own-my >.  Acesso em 13.11.2023. 

[12] Here’s why Taylor Swift is Re-releasing her old albums.  In: Time Magazine, 23.10.2023.  Disponível em:   < https://time.com/5949979/why-taylor-swift-is-rerecording-old-albums/ >.  Acesso em 13.11.2023.

[13] KALISHMAN, Ally.  This is why we can’t have nice things: The legality behind Taylor Swift’s Rerecordings.  In: Penn Undergraduate Law Journal. Disponível em:  < https://www.pulj.org/the-roundtable/this-is-why-we-cant-have-nice-things-the-legality-behind-taylor-swifts-rerecordings >.  Acesso em 13.11.2023. Conforme exposto pela autora, Taylor Swift precisará ter cuidado com uma cláusula específica do contrato firmado com a Big Machine Records, em virtude da qual ficaria proibida de produzir versões idênticas às contidas nos masters alienados pela gravadora à empresa de Scooter Braun. 

[14] MORATO, Antonio Carlos. Direito de Autor em Obra Coletiva. São Paulo: Saraiva 2007, p. 31.

[15] “O domínio intelectual é suscetível, como se viu, de cisões, que o parcializam no tempo, no espaço, ou no conteúdo (qualitativa ou quantitativamente). O titular de qualquer dos direitos parciais no tempo, ou parciais no espaço, ou parciais em conteúdo, é titular de domínio, e não de direito real limitado” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. 4ª Edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 77.

[16]La contrapposizrone tra quello che, a volte, nella dottrina si chiama il corpus mysticum e quello che invece allora si chiama il corpus mechanicum, tra la creazione intellettuale e la sua materiale estrinsecazione, e evidente, e vi abbiamo già ripetutamente fatto cenno nelle lezioni generali dedicate ai beni immateriali, concernendo appunto un problema generale di questi. Qualunque creazione intellettuale non può essere percepita indipendentemente da un'estrinsecazione materiale in cose o energie, ma pur a queste (e v. già l'art. 109, 1. d. aut.) si contrappone (le trascende abbiam detto con una terminologia che poi spiega il ricorso tradizionale alla contrapposizione tra corpus mysticum e corpus mechanicum) ed è appunto, possiamo soggiungere (e ricorderanno invero poi alcune consto de razioni particolari che devono soccorrere nel dominio delle arti plastiche), la possibilità offerta dalla tecnica di una molteplicità di estrinsecazioni fungibili di una stessa creazione intellettuale, quella che è venuta accentuando la portata della distinzione e così ponendo la necessità di una speciale disciplina della creazione intellettuale, indipendentemente dalla disciplina del diritto comune concernente le sue materiali estrinsecazioni” ASCARELLI, Tullio. Teoria della concorrenza e dei Beni immateriali, 3a Edição. Milão: Editore Dott A. Giuffré, 1960, p. 695.

[17] Como é perceptível nas diversas gravações da obra de Cole Porter, cantadas por Frank Sinatra e Ella Fitzgerald ao longo das suas longas carreiras de sucesso.

[18] No âmbito da causa, ou seja, da típica função econômico-social que o direito reconhece como idônea para justificar a tutela da autonomia privada, categorias de interesses "merecedores de tutela", segundo a avaliação historicamente condicionada da consciência social e do ordenamento (1322, alínea), podem ser legitimamente perseguidas” (BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos: Teoria geral e dogmática. Traduzido por Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 242).

Roberta Mauro Medina Maia
Professora de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Advogada.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

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