No último dia 14 de setembro foi publicada uma sentença judicial proferida pela 4ª Vara do Trabalho de SP que reconheceu que a natureza dos serviços prestados pelos motoristas de transporte de passageiros via aplicativo configura vínculo de emprego e determinou que a Uber Brasil Tecnologia LTDA deve, em até seis meses do trânsito em julgado da ação, efetivar os registros em CTPS de todos os motoristas cadastrados na plataforma, bem como daqueles que vierem a ser contratados. Além disso, o juiz condenou a empresa ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no importe de R$ 1 bilhão.
A sentença foi bastante comentada em diversos veículos de comunicação, já que, tratando-se de ação civil pública, a decisão tem eficácia erga omnes, isto é, mesmo tendo sido proferida por uma Vara Trabalhista da Cidade de SP, é aplicável a todos os trabalhadores vinculados à Uber no país. Autuada sob o nº 1001379-33.2021.5.02.0004, o Ministério Público do Trabalho - MPT, apresentou a referida ação a partir de um Inquérito Civil, instaurado em junho de 2016 e originado de uma denúncia da Associação dos Motoristas Autônomos de Aplicativos - AMAA.
No inquérito, foram colhidos depoimentos de motoristas e, além disso, juntadas informações produzidas em procedimentos da mesma natureza instaurados pelas Procuradorias do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro) e de São Bernardo do Campo. Ainda constou da ação civil pública o Relatório Conclusivo do Grupo de Estudos “GE UBER” do MPT.
Foi esta ampla investigação, formalmente iniciada há mais de sete anos, que provocou no MPT, por meio da Procuradoria Regional da 2ª Região (São Paulo) e, também, no juízo da 2ª Vara do Trabalho de São Paulo o convencimento acerca existência do vínculo emprego de motoristas da Uber.
Antes da análise dos elementos em si relacionados à existência de vínculo de emprego, previstos no artigo 3º, da CLT, a decisão em comento teceu relevantes considerações acerca da natureza das atividades desenvolvidas pela empresa do aplicativo. E isso porque um dos principais fundamentos que a Uber em sua defesa se utilizou para afastar o reconhecimento de vínculo de emprego com os trabalhadores é o de que esta seria mera empresa de fornecimento de tecnologia, de modo que seria impossível seu reconhecimento como empregadora de motoristas.
Em relação a essa particularidade, o juízo trabalhista reconheceu que a alegação da empresa não reflete a realidade. Para tanto, mencionou que, contraditoriamente, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI – autarquia federal responsável pelos depósitos de patentes, desenhos industriais e registros de marca, órgão de proteção da propriedade intelectual de empresas, que atua para impedir a disputa das marcas contra possíveis copiadores – a Uber requereu o registro de sua marca como efetiva empresa de transporte.
Além disso, o juiz observou que a empresa não comercializa tecnologia pura e simplesmente, mas que, pelo contrário, se beneficia de uma estrutura pública de mobilidade urbana já existente, bem como de veículos privados custeados pelos próprios motoristas, de modo que o seu ganho está necessariamente acoplado ao sistema de transporte.
Por esta razão, o Magistrado declarou, incidentalmente, que uma das atividades principais da Uber é o transporte de passageiros, declaração esta que contém elementos fundamentais para o reconhecimento da competência da justiça do trabalho para o julgamento da causa e, ainda, possibilitou o prosseguimento da análise do pedido de reconhecimento de vínculo de emprego.
Destaca-se que o artigo 6º, § único, da CLT, estipula que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.” O dispositivo tem o intuito de regular a relação de meios telemáticos e informatizados com o mundo do trabalho, estando sustentado pelo artigo 7º, XXVII da Constituição da República, que prevê a proteção dos trabalhadores dos efeitos da automação.
Apesar disso, a aparente dificuldade nos casos de pedidos de vínculo de emprego com a Uber seria identificar a existência do requisito da subordinação, ou, em outras palavras, comprovar de que modo a empresa controlaria, via aplicativo, a força de trabalho de motoristas que, em tese, teriam liberdade para se conectarem em seus celulares quando e da maneira que quiserem, sendo responsáveis pelas próprias atividades sem qualquer ingerência.
Na ação civil pública ora em análise ficou comprovado que a empresa de aplicativo não só dispõe de ferramentas para, como efetivamente controla o trabalho dos motoristas. A esse exemplo, o juiz do trabalho assentiu que, como é de amplo conhecimento, é facultado aos passageiros atribuir notas aos motoristas, tendo ficado demonstrado pela prova documental que a média de notas dos trabalhadores impacta diretamente no número de viagens recebidas por cada motorista no aplicativo e, assim, no rendimento médio diário de cada um. Também nesse sentido ficou demonstrada a existência de relatórios referentes a taxa de cancelamento de viagens por motorista, dado este que também impacta na quantidade de viagens que cada um recebe.
Ainda, consta dos Termos e Condições da Uber que os motoristas que não atingirem a avaliação média mínima da cidade poderão perder, no todo ou em parte, o acesso à Plataforma. Aliás, os termos de uso juntados pela própria empresa estão repletos de hipóteses de punição dos trabalhadores, que vão desde a suspensão (bloqueio) até a dispensa do trabalhador, o que demonstra a necessidade de prestação de serviços nos estritos termos delimitados pela empresa.
Ademais, ficou comprovado que é a empresa quem estipula, unilateralmente, os valores a serem cobrados em cada corrida e os percentuais que lhes são devidos. Além disso, ficou expresso que a empresa desenvolve pelo aplicativo, em um fenômeno denominado de gamificação, dinâmicas virtuais com recompensas pecuniárias que estipulam que quanto mais os motoristas atendam aos estímulos, mais chamadas e remuneração serão creditados. Assim, no intuito de obter maiores lucros, a empresa incentiva que os trabalhadores, em prejuízo de sua própria saúde e segurança, trabalhem em jornadas absolutamente extenuantes, sem qualquer responsabilização correspondente.
Em suma, o juiz trabalhista concluiu que: “i) a Ré decide quem pode dirigir ou não por intermédio de sua plataforma; ii) a Ré impõe as regras para trabalhar dirigindo por intermédio da plataforma; iii) a Ré controla em tempo integral as atividades dos motoristas; iv) a Ré conhece tudo, e de forma ampla e irrestrita, o que é feito pelo motorista, como e quando é feito, individualmente em relação a cada motorista; v) a Ré tem amplo poder fiscalizatório da atividade dos motoristas, diretamente pela plataforma; vi) a Ré tem poder de punir de forma média, com restrição de chamadas, bloqueios unilaterais temporários e de forma máxima, extrema, mediante bloqueio definitivo”.
A decisão identificou, portanto, que, ao contrário das falsas polêmicas que foram construídas pela classe patronal nos últimos anos, o uso de meios telemáticos no mundo do trabalho, na verdade, aprimorou – e não eliminou – as ferramentas de controle da mão de obra de trabalhadores, fazendo emergir uma espécie de subordinação denominada de algorítmica.
Assim, a sentença se apresenta como um importante precedente para a discussão travada na Justiça do Trabalho, que ainda não foi chancelada.
No âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, foi admitido recurso de embargos da Uber nos autos nº 100353-02.2017.5.01.0066. O julgamento do caso pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais foi iniciado no dia 06/10/2022, tendo a Ministra Relatora Maria Cristina Irigoyen Peduzzi votado pelo provimento do recurso para afastar o vínculo de emprego que havia sido determinado no acórdão oriundo da 3ª Turma do TST. O Min. Cláudio Brandão pediu vista regimental e o julgamento, até então, não prosseguiu.
Além da 3ª Turma, a 8ª Turma e a 2ª Turma do TST já reconheceram a existência de vínculo empregatício dos trabalhadores da Uber.
Por sua vez, no âmbito do STF, o Ministro Alexandre de Moraes determinou, nos autos da Reclamação Constitucional nº 59.795/MG, a cassação de decisão da Justiça do Trabalho, reconhecendo a sua incompetência para julgamento de pedido de vínculo de emprego formulado por motorista da empresa Cabify SA., que tem dinâmica de funcionamento semelhante à da Uber.
À exemplo da decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes, tem se observado uma leva de decisões em reclamações constitucionais no âmbito do STF que derrubaram decisões trabalhistas que reconheceram vínculo de emprego de trabalhadores. Tais decisões podem ser modificadas em sede de recurso e têm sido alvo de intensa discussão, pois apresentam nítida violação ao artigo 114, inciso IX, da Constituição Federal (EC 45), que determina que a competência da Justiça do Trabalho abrange toda e qualquer forma de trabalho, seja subordinado, seja autônomo.
De todo modo, apesar do cenário de indefinição, o que se observa é que, por sua magnitude, a construção argumentativa da decisão tomada na ação civil pública acima comentada, que foi ancorada em uma instrução probatória mais ampla que as realizadas em ações individuais, provoca novos contornos na justiça do trabalho, tendo como resultado imediato o fortalecimento da tese pelo reconhecimento do efetivo vínculo de emprego destes inúmeros trabalhadores no país.