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CF, a sociedade bulímica e a inclusão putativa

Neste ano celebram-se 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. No entanto, a assimetria entre as aspirações constitucionais e a realidade mais se aproximam a um quadro de inclusões putativas e de uma sociedade bulímica descrita por Young.

15/11/2023

Introdução

Em 1988, o Brasil respirava ares de liberdade cívica após o fim do regime militar, período o qual foi marcado juridicamente pela outorga de duas constituições sem a participação popular. O ápice da nova ordem política foi alcançado no dia 5 de outubro de 1988 com a promulgação da nova carta constitucional brasileira, então alcunhada de “Constituição Cidadã”. À época de sua promulgação, Ulysses Guimarães declarou perante a Assembleia Nacional Constituinte que “a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar”. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. Em um país com um não tão distante passado colonial, turbulentos regimes políticos autoritários, extenso histórico de corrupção, dilapidação do patrimônio público e diversas constituições que seguiram diferentes rumos ideológicos, a Constituição Federal de 1988 emergiu com um farol de esperança a guiar os rumos de um país ainda em desenvolvimento que buscava o progresso da nação como um ente democraticamente consolidado e soberano, assim como a construção de uma sociedade efetivamente livre, justa e solidária.

Chega-se, pois, ao ano de 2023, onde a então esperançosamente denominada Constituição Cidadã completa 35 anos de sua promulgação, gerando, pois, homenagens e celebrações em diversos setores nas esferas pública e privada. A Lex Legum, isto é, “a lei das leis” brasileira, ainda impulsiona discursos emotivos e promessas por um futuro melhor. Os seus méritos são inúmeros, sobretudo no que tange a reconhecer e resguardar direitos fundamentais básicos do cidadão e estabelecer raízes institucionais sólidas para o funcionamento de um Estado Democrático de Direito. No entanto, passadas mais de três décadas de sua promulgação, os seus insucessos também devem ser objeto de reflexão, notadamente sobre o quanto efetivamente foi alcançado pelo texto constitucional e o quanto tem se constituído apenas como uma retórica ilusória e congestão de disposições legais com implementações práticas deficitárias ou inexistentes.

No plano acadêmico, ao estudante de Direito constitui-se quase que uma citação obrigatória nas aulas de Direito Constitucional a célebre lição de Ferdinand Lassalle no sentido de que a constituição precisa ter efetividade, sob pena de se tornar uma “mera folha de papel”. Igualmente, alcançou notoriedade a teoria ontológica da constituição, difundida por Karl Löewenstein, a qual busca, em síntese, analisar o grau de compatibilidade entre o texto constitucional com a realidade social existente (constituições normativas, nominais e semânticas). Não obstante, a despeito do diferente arcabouço teórico constitucional que se opte por esquadrinhar a efetividade da constituição analisada, o ponto central que emerge de eventual dissonância constitucional é o perfil estrutural e societário de um país que historicamente exclui, porém, normativamente inclui. Vale dizer, o problema da inefetividade de uma constituição pode ser analisado pelo prisma comparativo entre o texto e a realidade, assim como pelo viés sociológico onde um quadro social com raízes viciosas pode ser revelado. Nesse contexto, apresenta-se de grande relevo as lições elaboradas pelo sociólogo e criminólogo britânico Jock Young, o qual preleciona sobre as diferenças existentes entre uma sociedade inclusiva e exclusiva, bem como sobre processos bulímicos que nela podem existir.

Sociedade bulímica

Em sua obra The Exclusive Society: Social Exclusion, Crime and Difference in Late Modernity (1999), Jock Young descreve a existência de uma sociedade inclusiva na Europa e nos Estados Unidos da América no período subsequente ao término da Segunda Guerra Mundial, onde havia uma grande oferta de empregos, inserção das mulheres no mercado de trabalho e tentativas de equalizar direitos entre grupos até então discriminados. Tal cenário, no entanto, mudou nas décadas de 80 e 90, nas quais se observou um declínio da economia de mercado e uma guinada para um processo de formação de subclasses estruturais e de exclusão. Afirma o sociólogo britânico, ainda, a criação de um cordão sanitário invisível (cordon sanitaire), no qual, de um lado, estará o núcleo com os trabalhadores primários, com carreiras de trabalho sólidas e qualitativas, e, de outro, trabalhadores do mercado secundário que vivem em condições de privação e precariedade. De acordo com o autor, as tensões que emergem no seio social estão relacionadas à privação do alcance do sonho americano e europeu, isto é, do acesso por determinado segmento aquilo que é culturalmente difundido como sucesso e de todas as benesses de um mercado de consumo.

Young (2003) prossegue, ainda, afirmando que na pós-modernidade tem-se, então, um processo concomitante de inclusão e exclusão, formando-se, assim, uma sociedade bulímica. Nesta sociedade há uma inclusão cultural massiva, onde determinados grupos sociais são incentivados a participarem da sociedade de consumo, porém sofrem uma exclusão estrutural sistemática e estigmatizante. Nas palavras de Young (2003), “Temos um processo que comparei à bulimia do sistema social: uma sociedade que canta o mantra liberal de liberdade, igualdade e fraternidade, mas sistematicamente no mercado de trabalho, nas ruas, nos contatos do dia-a-dia com o mundo exterior, pratica a exclusão1.

Trata-se, pois, de uma sociedade bulímica que, ao mesmo tempo que absorve, rejeita. O processo de inclusão ocorreria pelos meios de comunicação, educação em massa, mercado, estado do bem-estar social (welfare state), sistema político e justiça criminal. Cada um destes veículos carrega a noção de valores universais, de uma democracia igualitária e de mérito e recompensa de acordo com as circunstâncias e mérito. A seu turno, segundo Young, “cada uma destas instituições não apenas advoga fortemente pela inclusão cidadã como, também, paradoxalmente, é o próprio local onde ocorre a sua exclusão”2. Como resultado desta contradição entre expectativa e realidade e do cordão divisório demarcado entre grupos diversos na sociedade, diferentes respostas surgirão para resolver problemas sociais, as quais, contudo, não identificam as frustrações que lhe dão azo e geram um sistema seletivo e segregatício com bodes expiatórios. Enquanto para uns o mundo é um lugar repleto de oportunidades, para outros é um lugar cheio de barreiras e restrições.

Sistematicamente, portanto, a teoria da sociedade bulímica proposta por Jock Young tem por premissa central uma inclusão cultural, nas expectativas criadas em usufruir de benefícios por uma vida exitosa, e uma exclusão estrutural. Nessa ambiência, o processo bulímico será o principal fator a alimentar o descontentamento social.

Constituição Federal, a sociedade bulímica e a inclusão putativa

Muito embora o cenário cuja análise se pautou Jock Young esteja relacionado ao contexto ocidental, envolvendo, pois, os Estados Unidos da América e a Europa, as premissas por ele formuladas podem ser aplicadas igualmente em contextos circunstancialmente adaptados, como ocorre no quadro brasileiro. O processo social bulímico é formado pelas assimetrias existentes entre as expectativas criadas por diversos veículos, entre eles, o estado do bem-estar social, e o seu não atendimento na prática.

Ao se direcionar tais premissas para a Constituição Federal de 1988, observa-se que o panorama político à época de sua promulgação era de grande esperança e renovo. Ao longo do século XX o Brasil passou por severas inconstâncias políticas e o novo texto constitucional contemplou uma ruptura paradigmática e um ideário inclusivo. Direitos basilares, muitos dos quais de forma inédita, foram extensamente elencados. No entanto, passados 35 anos da promulgação da carta constitucional, o que se observa é uma inclusão textual, cujo conteúdo é amplamente propagado, contudo, denotam na prática uma contínua e reiterada exclusão estrutural. A título exemplificativo, muitos direitos e garantias arrolados nos artigos 5, 6 e 231, da Constituição Federal acabam por representar apenas uma inclusão putativa. Vale dizer, estão cuidadosamente inseridos na tessitura constitucional, muitos, inclusive, de forma redundante, mas cuja efetividade prática é concomitantemente expelida.

Em um viés mais específico, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição 2/16, a qual visa inserir o saneamento básico como um direito social elencado no artigo 6 da Constituição Federal. Conforme dados levantados pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS, mais de 100 milhões de cidadãos brasileiros não tem acesso ao serviço de coleta de esgotos (Agência Senado, 2022). Todavia, tal cenário deficitário é historicamente conhecido pelas agências governamentais, assim como defluir normativamente de diversos dispositivos constitucionais que asseguram o direito à saúde (artigo 6º) e à qualidade de vida (artigo 225). De igual forma, os artigos 231 e 232 da Carta Magna assentaram aquilo que o então Ministro Carlos Britto (STF, 2010) denominou de “estatuto jurídico da causa indígena”. Em contrapartida, diversas garantias originárias previstas aos índios são reiteradamente relativizadas e desconsideradas, afigurando-se, assim, mais um exemplo de inclusão putativa. O rol de artigos em descompasso semelhante é extenso e a verificação de tal disparidade é facilmente aferível pelos persistentes índices de desigualdade social e pobreza no Brasil.

Nessa ordem de ideias, observa-se que, apesar do cenário promissor em que a Constituição Federal foi promulgada, passadas mais de três décadas de sua promulgação a dinâmica percebida na sociedade brasileira é de inclusão cultural e normativa, porém de exclusão estrutural e sistemática. Tal processo bulímico é inevitavelmente propulsor de descontentamento e de respostas estatais inadequadas que apenas acentuam os problemas e criam setores estigmatizados.

Considerações finais

As celebrações que permeiam os 35 anos da festejada promulgação da Constituição Federal de 1988 devem ser um ponto de reflexão sobre os avanços, estagnações e regressos existentes na sociedade brasileira. As estatísticas apontam continuamente o reiterado ciclo assimétrico entre previsibilidade de direitos e concretizações. O Brasil ainda vive um intenso processo bulímico que urge ser sanado. Não se trata, pois, de reivindicar a positivação cada vez mais minudente no texto constitucional de facetas de algum direito já claramente consagrado, como se tal inserir fragmentado tivesse o poder de transmudar realidades. O problema não é normativo, mas sim estrutural. Não é a ausência de menção singularizada de determinado ponto que gerará a sua inclusão. Os problemas estruturais brasileiros não são inéditos e perduram décadas. É a bulimia que causa o descontentamento e as convulsões sociais. Segundo Jock Young é preciso um novo pacto social em que uma nova cidadania inclusiva seja apresentada de forma a se superar as injustiças e o individualismo. Não se pode aguardar mais três décadas para celebrar a norma sem implementar e corrigir aquelas que são efetivamente causas excludentes e impeditivas da construção de uma sociedade efetivamente livre, justa e solidária.

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1 Tradução livre do inglês: “We have a process that I likened to bulimia of the social system: a society that choruses the liberal mantra of liberty, equality and fraternity yet systematically in the job market, on the streets, in the day-to-day contacts with the outside world, practises exclusion”.

 

2 Tradução livre do inglês:Each of these institutions is not only a strong advocate of inclusive citizenship, it is also paradoxically the site of exclusion

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Agência Senado (2022). 100 milhões de pessoas não têm coleta de esgoto no Brasil. https://www12.senado.leg.br/radio/1/conexao-senado/2022/03/22/100-milhoes-de-pessoas-nao-tem-coleta-de-esgoto-no-brasil

STF (2010). Pet 3388. Julgamento 19/3/2009. Publicação 01/07/2010.

Young, J. (1999). The Exclusive Society: Social Exclusion, Crime and Difference in Late Modernity. Sage. London.

Young, J. (2003). Merton with Energy, Katz with Structure: The Sociology of Vindictiveness and the Criminology of Transgression. In Theoretical Criminology, 7(3), 389-414.

Fernando Procópio Palazzo
Assessor jurídico. Mestre em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent. Membro da CSSN (Brown Univeristy) e da European Society of Criminology (ESC).

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