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A prisão em flagrante delito na invasão de domicílio

A Constituição assegura a inviolabilidade do domicílio, permitindo exceções, como em caso de flagrante delito, desastre, socorro ou por ordem judicial durante o dia. No contexto de flagrante delito, especialmente em crimes permanentes como o tráfico de drogas, o padrão probatório necessário e suficiente para prisão dentro do domicílio é um tema relevante.

14/11/2023

A Constituição da República prescreve que a casa das pessoas é inviolável, a menos que elas permitam a entrada, mas excepciona algumas situações, como flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial, pelas suas particularidades e urgências, salvo esta última situação, pois decisão judicial requer uma maior elasticidade temporal (CR/88, art. 5º, XI).  Da mesma forma são os tratados internacionais, os quais protegem o domicílio contra ingerências abusivas e arbitrárias - Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e políticos (art. 11, 2, e art. 17, 1, respectivamente).

Nossa exposição ficará limitada aos casos de flagrante delito, mormente quando de crime permanente, como os são crimes de tráfico de drogas.   

O Código Penal diz que o termo casa compreende: qualquer compartimento habitado; aposento ocupado de habitação coletiva; compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (at.150, § 4º). Também deixa claro o que não estaria acobertado pelo termo em foco: hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta e não ocupada; taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero (art. 150, § 5º).

A doutrina e a jurisprudência entendem que trailers, barcos, quarto de hotel, de pousada, de pensão ou qualquer outro lugar fechado utilizado como morada de alguém, consultório médico, escritório de advocacia, comportam no termo casa, o qual também se estende para quintais e garagens. Já a cabine de caminhão há certa controvérsia, o professor Aury Lopes entende perfeitamente abrangida, ainda explicitando uma indignação ao se proteger cabine de trem e se rechaçar cabine de caminhão. (LOPES Jr., Aury, Direito processual penal- 15. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 510, 117.)

O Código de Processo Penal diz estar em flagrante delito quem está cometendo a infração penal; acaba de cometê-la; é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração (art. 302).

Como pode ser extraído do CPP, o flagrante requer atualidade delitiva, o que exige para invasão domiciliar não só o efetivo cometimento do crime mas também sua visibilidade, ou causa provável devidamente fundamentada em dados concretos, como em investigação prévia de crime permanente. Este ocorre quando a consumação se prolonga no tempo, há um hiato entre a consumação e o exaurimento. Nos termos do CPP (art. 303), no crime permanente subsiste o flagrante até que cesse a permanência, p. e., os crimes de sequestro ou cárcere privado, invasão de domicílio, tráfico de drogas.

A fundada suspeita, portanto, é exigível em sede de busca domiciliar, sendo que a Constituição da República fez maior restrição expressamente quando comparada com a busca pessoal, do que se conclui que o standard probatório deve ser mais exigente. O simples fato de haver drogas ou uma arma ilegal dentro de uma residência, posteriormente descoberta por policiais ao adentrá-la, sem, no entanto, uma investigação prévia, ainda que sumária, seja pelo conhecimento por um informante, seja a partir de denúncia anônima, faz de tal busca ilegal e a prova ilícita. Não é a descoberta posterior, fortuita, da droga ou arma que irá legitimar o flagrante, uma vez que as informações necessárias para invasão de um domicílio devem ser robustas antes da própria invasão e da presença de urgência, ou o crime estar ocorrendo e tendo uma visão suficiente da rua, cabendo as agências de controle da atividade policial fazer a devida sindicância posterior.   

O STF, no julgamento do RE 603.616/RO, ao debater um caso de tráfico de drogas com invasão de domicílio, expos a seguinte tese:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que, dentro da casa, ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil, e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.  

Interessante foi a posição do Min. Marco Aurélio, que ao analisar o caso concreto, divergiu da posição do relator e dos demais colegas presentes no julgamento. Segundo o Ministro, o fato de haver a prisão em flagrante de um corréu numa rodovia federal, ele afirmar que seu comparsa porta mais drogas em casa, por si só, não justifica a entrada em seu domicílio sem mandado judicial. Portanto, não caberia aos policias adentrarem a casa, ainda que obtiveram êxito na apreensão das drogas, mas sim requerer o devido mandado de buscar domiciliar, do contrário estaria se esvaziando o texto do inciso XI, do art. 5º, da CR/88. Declarou serem as provas ilícitas.

Os autores Fisher e Pacelli, comentando a decisão em apreço, entenderam que a fundada suspeita da flagrância do delito sempre foi imprescindível, nada mudando. Em outras palavras, no sentido exposto, a tese do Supremo Tribunal não teve relevância prática. (PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência – 10. ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018, p. 502.).

O STJ, no julgamento do HC 598.051, tendo como relator o Min. Rogério Schietti, o qual cita o Conde Chathan nos seguintes termos:

“O homem mais pobre pode em sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!" ("The poorest man may in his cottage bid defiance to all the forces of the Crown. It may be frail, its roof may shake, the wind may blow through it, the storm may enter, the rain may enter, but the King of England cannot enter!" William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845) v. 1).

Na decisão acima, ante um caso de busca domiciliar por policiais sob alegação de autorização do morador, concedeu a ordem e declarou ilícitas as provas pela falta de comprovação da anuência livre e objetivamente aferível, não sendo bastante a palavra dos policiais, mormente diante do contexto fático. O Tribunal Superior exigiu documento escrito/relatório circunstanciado, gravação de vídeo e áudio espancando qualquer dúvida na permissão.

O Min. relator consignou os abusos cometidos em operações policiais, bem como a utopia pressupor valor absoluto, pelo desinteresse pessoal em prejudicar um cidadão inocente, ao que verberam os agentes indicados como desrespeitadores dos direitos fundamentais em jogo. Assentou também que a invasão do domicílio não pode ter por fundamento o mero tirocínio policial, a partir de atitude “suspeita”, ou na evasão de um cidadão para sua casa ao se deparar com uma viatura policial, comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não, necessariamente, estar incorrendo no crime de tráfico de drogas ou portando-a para consumo, no que seria mero usuário.

A melhor doutrina segue na mesma direção, como o professor Aury Lopes, pela não validação das provas, eventual, encontradas nas casas após sua invasão com possível assentimento do morador, principalmente quando em periferias e favelas, onde o policial, infelizmente, faz o que bem quer, devassando toda a intimidade das pessoas que lá vivem, deixando em plano secundário a dignidade humana, fundamento de nossa Constituição da República. Urge elementar a comprovação em dados concretos e seguros da permissão do morador para que os policiais entrem em sua residência.

O movimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de conter o arbítrio, sempre reinante na sociedade brasileira, dos órgãos estatais encarregados pela persecução penal, primordial citar as policias, no caso de buscas pessoas e domiciliares, é fundamental. Não se pode continuar autorizar os abusos ante alegação de generalização de crimes, pelo caos social promovido pela criminalidade organizada, pelo narcotráfico. O Estado de Direito e Democrático requer contenção dos agentes ao macular direitos fundamentais, além de primeiro promover o que está delineado logo no preâmbulo de nossa Constituição, que é assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Michel França
Advogado Criminalista. Especialista em Direito Processual Penal. Professor e Palestrante.

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