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Perspectiva jurídica atual da residência médica no Brasil

É importante enfrentar estas situações adversas e oferecer aos futuros especialistas boas condições de trabalho e estudo, para que possam desenvolver com excelência suas competências técnicas, com a necessária sensibilidade, empatia e responsabilidade que a profissão exige e que a sociedade espera.

14/11/2023

O documento denominado “Demografia Médica no Brasil”, publicado pela Associação Médica Brasileira, em 2023, demonstra que o percentual de médicos com título de especialista no Brasil, no ano de 2022, era de 62,5%1, sendo que os títulos apenas podem ser fornecidos para médicos que realizam a residência médica ou a prova de título de sociedade de especialidade. Excluem-se, portanto, os diplomas em cursos de especialização lato sensu e títulos científicos, como mestrado e doutorado.

A residência médica é considerada uma pós-graduação “padrão ouro”, na qual os profissionais se aperfeiçoam em área pré-definida, atuando intensamente na prática assistencial, com uma carga anual mínima de 2.800 horas. No ano de 2021, cursavam residência médica 41.853 profissionais no Brasil, inscritos em programas mantidos por 789 instituições2, que podem durar de 2 a 5 anos, dependendo do programa e da área de especialização.

Atualmente, os bons programas de residência preparam o profissional para uma realidade nova, em que a Medicina é centrada no paciente e o médico procura tomar decisões baseadas nas melhores práticas e evidências de pesquisa, informando o paciente de forma adequada e levando em consideração suas preferências e as circunstâncias, bem como a disponibilidade de recursos.

Alguns dos programas de residência médica, que inserem os residentes no Sistema Único de Saúde, geram um relevante impacto social, ao proporcionar uma experiência mais complexa, muitas vezes não oferecida pela graduação e que é muito significativa para a formação médica. Oferecem ainda, a oportunidade de contribuírem para a melhoria da saúde e bem-estar das comunidades a que servem.

A alta concorrência pelas residências bem-conceituadas advém do desejo do profissional pelo aperfeiçoamento, além de possibilitar a ele uma melhor colocação profissional, o incremento de sua remuneração e a construção de relacionamento com médicos da especialidade pretendida.

Quanto ao aspecto regulatório, os programas são regidos pelo Ministério da Educação e pela Comissão Nacional de Residência Médica - CNRM3, e estão sujeitos ao que foi estabelecido especialmente pela lei 6.932, de 7 de julho de 1981. A referida lei dispõe sobre as atividades do médico residente e define seus principais direitos e deveres, sobre os quais teceremos algumas considerações.  

As instituições devem fornecer ao residente a supervisão permanente e adequada, composta por médicos treinados e de elevada competência ética e profissional, que tenham obtido título de especialista na mesma área. Deve haver pelo menos um médico do corpo clínico da instituição em regime de tempo integral para cada seis residentes ou dois médicos do corpo clínico da instituição em tempo parcial para cada três residentes.

Além disso, dentre as atividades executadas, deverá haver um mínimo de 10% e um máximo de 20% da carga horária de atividades teórico-práticas, sob a forma de sessões atualizadas, seminários, correlações clínico-patológicas ou outras, de acordo com os programas pré-estabelecidos.

Apesar de a lei definir o residente como estudante, existe previsão de direitos, equiparados aos trabalhistas, como a bolsa auxílio, que atualmente é de R$ 4.106,094, férias de 30 dias consecutivos, registro no Regime Geral da Previdência Social - RGPS como contribuinte individual, licença maternidade, paternidade e de saúde. Também garantidos em lei estão os auxílios alimentação e moradia, que poderão ser oferecidos in natura ou em pecúnia.

A carga horária exigida é de 60 horas semanais, das quais poderá cumprir um máximo de 24 horas de plantão. Deve gozar de pelo menos uma folga semanal, além das férias anuais, já mencionadas. Importante frisar que é expressamente proibido o plantão de sobreaviso ou à distância.

Em relação aos deveres, deve-se considerar que o residente é médico formado e registrado no Conselho Regional de Medicina de sua região, exercendo a atividade profissional integralmente e tendo por obrigação conhecer o Código de Ética Médica e as normas expedidas por seu conselho de classe. Também pode vir a ser responsabilizado por erro de conduta (negligência, imprudência, imperícia) em âmbito administrativo, civil e até criminal, caso comprovada sua culpa ou dolo.

Na condição de profissional em formação, pode, em algumas situações, compartilhar eventual culpa e responsabilidade com o médico preceptor e até mesmo com a instituição, se comprovada falha na obrigação legal de fiscalização, vigilância supervisão e orientação da atividade de especialização, situação em que devem ser analisadas as circunstâncias e peculiaridades do caso concreto.

O residente deve atender aos padrões e critérios estabelecidos pela Comissão de Residência Médica - COREME e da Comissão Estadual de Residência - CEREM de sua instituição. É fundamental que o profissional atue com integridade, ética e responsabilidade, mantendo bom relacionamento com a equipe de saúde, pacientes e seus familiares.

Durante todo o curso, o médico residente é testado periodicamente e deve demonstrar competência, profissionalismo, habilidades de comunicação, capacidade de tomada de decisão adequada e o compromisso contínuo com seu aprendizado e desenvolvimento profissional. As avaliações envolvem questões teóricas, conhecimento prático e observação atitudinal em ambiente prático5

O cumprimento da carga horária e o sucesso nas avaliações é que definirão a promoção ou não do médico ao nível seguinte e, consequentemente a obtenção do certificado de conclusão do programa e o título de especialista. Aquele que tiver desempenho insuficiente no final de cada período anual de formação poderá ser desligado do programa.

Como em toda relação humana, podem emergir conflitos e, dos casos levados ao Judiciário, verificamos relatos como falta de preceptor, excesso da horas de trabalho, não recolhimento de encargos e falta de pagamento de auxílio moradia e alimentação. 

Os auxílios moradia e alimentação, mesmo que muitos editais de programas de residência médica não os contemplem, os Tribunais vêm reconhecendo como legítimos, por existir expressa previsão legal e, consequentemente, têm condenado as instituições ao ressarcimento retroativo dos valores em favor dos residentes que acionam a Justiça.

Por outro lado, o desligamento de um médico residente também pode ocorrer, quando houver falta de cumprimento das obrigações previstas em lei ou no edital do programa de residência. Para tanto, necessária a abertura de um processo administrativo disciplinar, a ser julgado pela COREME credenciada à respectiva instituição. Ao Poder Judiciário caberá, se for provocado, apreciar a legalidade do processo e eventual violação de direitos do profissional em relação ao julgamento administrativo.

Vimos que são muitos os desafios do médico em formação, exigindo contínuo estudo, trabalho e dedicação. O período da residência pode ser um dos mais desafiadores, por ser realizado num ambiente naturalmente estressante e exposto a diversas formas de tensão e adversidades, exigindo do profissional um maior amadurecimento e equilíbrio emocional.

A falta de comprometimento do residente afeta diretamente a dinâmica de trabalho da instituição de saúde, prejudicando toda a equipe e os pacientes assistidos. Contudo, igualmente é preocupante a negligência a seus direitos, que pode resultar em perda de rendimento profissional, redução de tempo para atividades pessoais, necessidade de buscar outros trabalhos remunerados e, principalmente, prejuízo de sua saúde mental.

Diante desta realidade, é importante enfrentar estas situações adversas e oferecer aos futuros especialistas boas condições de trabalho e estudo, para que possam desenvolver com excelência suas competências técnicas, com a necessária sensibilidade, empatia e responsabilidade que a profissão exige e que a sociedade espera. 

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1 SCHEFFER, M. et al. Demografia Me'dica no Brasil 2023. Sa~o Paulo, SP: FMUSP, AMB, 2023. 344 p. ISBN: 978-65-00-60986-8, p. 75.

2 Idem, p. 129.

3 A Comissão Nacional de Residência Médica foi criada em 1982 para a supervisão e regulamentação dos programas de residência médica no Brasil e é responsável por estabelecer as diretrizes para a residência médica.

4 Portaria Interministerial 9, de 13 de outubro de 2021.

5 Conforme Resolução CNMR 4/2023.

Gisele Machado Figueiredo Boselli
Graduada em Direito da PUC Campinas. Especialista em Direito da Economia e da Empresa pela FGV. Especialista em Direto Médico e da Saúde pela PUC-PR.

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