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Estupro virtual como tipo penal e seus efeitos simbólicos

O crime de estupro, definido no artigo 213 do Código Penal, não se limita à conjunção carnal, abrangendo também atos libidinosos, inclusive virtualmente, quando o agressor força a vítima a realizar tais atos mediante violência ou grave ameaça.

14/11/2023

O crime de estupro é um dos crimes contra a dignidade sexual. Sua capitulação está prevista no artigo 213 do Código Penal e traz consigo a seguinte redação: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Diferente do que muitos pensam, o crime de estupro não ocorre apenas com a cópula vagínica ou anal, ele pode ocorrer por meio de um ato libidinoso, quando, por exemplo, o agressor, mediante violência ou grave ameaça, força a vítima a inserir objetos em sua própria genitália para satisfação da sua lascívia.

Assim, da mesma forma que o exemplo acima ilustra a possibilidade de consumação do crime de estupro sem contato físico entre os corpos do agressor e da vítima, também se torna possível a ocorrência do mesmo delito de forma virtual. 

No mesmo entendimento, o professor André Santos (apud Lucches e Hernandez, 2018), reitera que:

No caso em que o autor, ameaçando divulgar vídeo íntimo da vítima, a constrange, via internet, a se automasturbar ou a introduzir objetos na vagina ou no ânus, tem-se estupro, pois a vítima, mediante grave ameaça, foi constrangida a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal1.

Desta forma, percebe-se que o denominado crime de “estupro virtual” pelo senso comum do direito, é, na verdade, apenas uma modalidade em que se alcança o fato típico do crime de estupro aqui já mencionado.                               

Assim, não há de se falar em um delito autônomo desse meio atribuído ao crime. Sua aplicação infundada fere, inclusive, um dos princípios basilares do direito penal; O respeito à legalidade e competência do legislador para estruturar a criminalização primária.

O crime pode ocorrer de diversas maneiras, por pessoas desconhecidas ou próximas.

Em muitos casos, o modus operandi para o crime de estupro virtual ocorre por meio de um perfil falso em uma plataforma digital para relacionamentos ou outros aplicativos.

Fazendo se passar por uma outra pessoa, o indivíduo ganha a confiança da vítima, enviando, inclusive, falsas imagens íntimas, para que ela também se sinta à vontade e mande fotos ou até vídeos íntimos.

Após ter em posse essas imagens, o agressor ameaça a vítima de divulgá-las caso ela pare de mandar fotos, ou não mande com os atos e posições desejadas pelo agressor.

Com receio de ter sua intimidade exposta e, por muitas vezes, com vergonha de comunicar o fato a um terceiro de sua confiança para ajudá-la ou de comparecer em sede policial, a vítima entra em um ciclo com o indivíduo enviando forçadamente mais conteúdo digital para que não tenha sua intimidade publicada na internet.

No ano de 2023 foi proposto o PL 1891/23, tendo como autora a deputada federal eleita por São Paulo, Renata Abreu (Pode - SP). O projeto visa criar um tipo penal específico para o crime de estupro praticado por meio do ambiente virtual, aplicando-se como pena por equiparação os crimes já previstos de estupro e estupro de vulnerável. Esse projeto teve como fonte uma decisão proferida pelo Tribunal do Estado do Piauí, em que um homem foi condenado por essa prática delituosa por meio de uma plataforma digital.

Apesar de ser reconhecida a legitimidade do poder legiferante para a criação e propostas de normas, o projeto supracitado claramente não observa dois fatores importantes para a produção legislativa penal.

Em primeiro lugar, não se coteja o fenômeno do direito penal simbólico e a falsa sensação de segurança e efetividade normativa pela sociedade. Esse tipo penal seria apenas mais uma forma de política criminal por engano, com o fim de apaziguar a mazela social, uma reação fantasiosa. Ou seja, o projeto busca a autoafirmação da capacidade estatal para solucionar o fenômeno do crime e, ao mesmo tempo, age como norma que visa adiar a resolução de conflitos sociais. A atenuação dessa forma delituosa só se dará através de políticas criminais sérias e não com a deificação de instrumentos repressores do Estado como um ente salvador. Ademais, a argumentação de que a criação do Tipo penal “estupro virtual” teria como intuito trazer segurança jurídica não deve prosperar. A interpretação fundada na lógica - sistemática já preleciona que se deve filtrar o  significado da norma pelo “conjunto de expressões linguísticas com o conjunto de expressões linguísticas dados pelas demais normas que compõem determinado sistema normativo2”, assim, fazendo-se  um  simples juízo global do nosso Código Penal com as lentes direcionadas aos artigos 213 e 217 do mesmo, tem-se a conclusão  de que não há requisitos que  obstem a possibilidade do estupro e o estupro vulnerável pelo meio virtual. Inclusive, esse é o entendimento da Sexta Turma do STJ. A mesma firmou o entendimento de que o estupro se consuma com a prática de qualquer ato libidinoso, independente de contato físico. No caso em questão, tratava-se de um estupro de vulnerável, tramitando em segredo de Justiça, onde o réu teve a ordem de Habeas Corpus denegada, fundamentando, o Ministro, no sentido de que haveria “prescindibilidade de contato físico direto para a configuração dos crimes"3 e ainda que “a ênfase recai no eventual transtorno psíquico que a conduta praticada enseja na vítima e na real ofensa à sua dignidade sexual, o que torna despicienda efetiva lesão corporal física por força de ato direto do agente".

Percebe-se, portanto, que a criação dessa figura típica de estupro pode não ser tão eficaz quanto políticas criminais que versam, de fato, sobre o combate à violência sexual, haja vista que já existe um mandamento normativo– interpretativo abarcados pelas modalidades existentes nos artigos 213 e 217 do Código Penal.  Essa inquietação legislativa é fruto de um direito penal com causas latentes e que, por sua vez, mostra-se despreocupado com o real aumento da propagação desse crime contra a dignidade sexual na referida modalidade. Logo, ao invés da criação de um novo tipo penal, necessário é garantir que os meios de combate à criminalidade virtual se tornem mais eficazes, repelindo à ação do agressor e resguardando à vítima, fazendo com que esta tenha sua intimidade e dignidade sexual preservadas.  

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1 LUCCHESI, Ângela Tereza; HERNANDEZ, Erika Fernanda Tangerino. Crimes Virtuais. Revista Officium: estudos de direito – v.1, n.1, 2. semestre de 2018, pág. 11.

2 Busato, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 4 ª edição, São Paulo, editora Atlas, 2018, pág.182.

3 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/26022021-Sexta-Turma-nega-habeas-corpus-a-reu-condenado-por-estupro-de-vulneravel-mesmo-sem-contato-fisico.aspx

Anne Nobre
Advogada criminal no escritório França David & Barreto Advogados. Pós-graduanda em Criminologia, Direito Penal e Processo Penal pela UCAM.

Marven Braz
Colaborador no escritório França David & Barreto Advogados. Graduando em Direito pela UFRJ, com extensão em Direito Penal Econômico pela FGV.

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