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A omissão da administração pública face à vigilância epidemiológica no controle, prevenção e erradicação de zoonoses

Como se vê, inconcebível nos dias atuais considerar zoonoses, já conhecidas cientificamente, doenças de difícil diagnóstico, e fazer com que seres viventes, humanos e animais, fiquem à mercê de indignidade de saúde pública, que acarreta o óbito ou ofensa à saúde por zoonoses que poderiam e deveriam ser evitadas, prevenidas e erradicadas com vigilância epidemiológica minimamente eficiente.

27/10/2023

Fato é, o ano de 2023 está sendo marcado pelo debate massivo no Direito da Saúde e dos Animais, pela presença de algumas zoonoses no território Nacional, que imaginávamos controladas, tais como febre maculosa, dengue, leptospirose, raiva, esporotricore, entre outras, o que demonstra uma necessária evolução jurídica no que diz respeito a obrigação da Administração Pública com a vigilância epidemiológica, como forma de assegurar a saúde única brasileira e evitar mortandade desnecessária de animais e pessoas como vem ocorrendo no Brasil pela mistanásia.

Segundo o Ministério da Saúde zoonoses são: “doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas. Os patógenos podem ser bacterianos, virais, parasitários ou podem envolver agentes não convencionais e podem se espalhar para os humanos por meio do contato direto ou através de alimentos, água ou meio ambiente.1

Neste contexto, cidadãos e cidadãs estão morrendo por zoonoses, não só pela gravidade em si da doença, mas também por diagnóstico tardio ou “erro” de diagnóstico, e quando procurado responsabilização a defesa está em torno da afirmativa de que doenças zoonóticas são de difícil diagnóstico, como situação fático-jurídica julgada pelo TJ/SP nos autos 1001787-73.2017.8.26.0318, em que uma criança faleceu como causa da morte informada pelo SUS de meningite/hemorragia, porém a mãe do menor sem qualquer conhecimento técnico, inconformada, levou material para análise ao Instituto Adolfo Lutz, que diagnosticou a real causa da morte como Febre Maculosa, só que em primeira instância a demanda foi julgada improcedente por ter considerado o r.juízo a febre maculosa como de “difícil diagnóstico”, reformada a decisão pelo TJ/SP, conforme jurisprudência:

APELAÇÃO – Indenizatória – Danos morais e materiais - Falecimento de parente em virtude de erro de diagnóstico - Erro médico caracterizado - Inadequação na prestação do serviço demonstrada – Febre maculosa - Região rural onde sabidamente a criança tinha contato com animais transmissores de carrapato, o que afasta a alegação de diagnóstico difícil em razão de doença rara - Presença de nexo causal direto e imediato entre o dano e o evento danoso - Dever de indenizar os danos patrimoniais e extrapatrimoniais configurado -Responsabilidade solidária dos réus - Culpa concorrente da genitora da vítima, que omitiu fatos importantes para a anamnese - Fixação da indenização pelos danos morais, observando-se a redução proporcional e a razoabilidade – Pensionamento mensal devido aos genitores, nos moldes da jurisprudência do C. STJ - Reforma da r. sentença – Recurso parcialmente provido. (TJ/SP; Apelação Cível 1001787-73.2017.8.26.0318; Relator (a): Silvia Meirelles; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Público; Foro de Leme - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/6/20; Data de Registro: 19/6/20).

Destarte a decisão de primeiro grau, que não é isolada na Justiça Brasileira, que tem em alguns casos acatado a tese de que Zoonoses são de difícil diagnóstico, nos faz refletir o papel da Administração Pública na vigilância epidemiológica, e o alerta realizado pela Fiocruz (Instituição Osvaldo Cruz – Uma Instituição a Serviço da Vida) no ano de 2022, de que zoonoses, não são de difícil diagnóstico, na verdade são “esquecidas no momento do diagnóstico dos pacientes, o que leva a atrasos na sua identificação, aumentando o risco de quadros graves e morte, devido ao diagnóstico tardio ou até mesmo erro de diagnóstico causando dano à outrem, seja pelo óbito ou lesão/ofensa à saúde2:

Doenças transmitidas de animais para pessoas, a febre maculosa, a febre Q, as hantaviroses e as arenaviroses apresentam quadro clínico inicial comum a outras infecções, incluindo febre, dor de cabeça ou no corpo e mal-estar. Em meio a epidemias, quando todos os olhos estão voltados para agravos de grande circulação, como dengue ou Covid-19, essas zoonoses são frequentemente esquecidas no momento do diagnóstico dos pacientes, o que leva a atrasos na sua identificação, aumentando o risco de quadros graves e morte. O alerta para a circulação dessas “doenças zoonóticas invisíveis” está em artigo recém-publicado na revista The Lancet Regional Health – Americas por pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Autora da publicação, a chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do IOC/Fiocruz, Elba Lemos, ressalta que a conscientização é fundamental para evitar óbitos. “Ano passado, um paciente com hantavirose recebeu diagnóstico de Covid-19 no Rio Grande do Sul e acabou falecendo. Esse ano, em um surto de febre maculosa com cinco casos no Rio de Janeiro, dois pacientes receberam diagnóstico de Covid-19 e morreram porque o tratamento da febre maculosa não foi iniciado a tempo. Mesmo em um período de pandemia, é preciso levar em conta esses patógenos zoonóticos que circulam no Brasil, mas que são invisibilizados”, ressalta a pesquisadora.

Aliás, de encontro ao alerta da Fiocruz, foi a afirmação do médico Dr. Carlos Levischi CRM/SP 105.457 especialista na doença de Lyme (zoonoses transmitida pelo carrapato) em entrevista concedida ao programa Diário TV 2º edição, transmitido pela TV Diário – Afiliada Rede Globo, que a dificuldade de diagnóstico de zoonoses, consiste no médico pensar errado na hora do diagnóstico.3

Logo, importante destacar que a vida é bem jurídico tutelado constitucionalmente no artigo 5º, “caput”, desse direito a constituição traçou no artigo 196 e seguintes o poder-dever para a administração pública no controle/prevenção e erradicação das zoonoses, com medidas que integram o fortalecimento dos agentes de saúde no SUS, entre elas a vigilância epidemiológica.

A vigilância epidemiológica é prevista na Constituição Federativa do Brasil no artigo 200, inciso II, e definida na lei 8.080/90 como “um conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos”, compõe a questão epidemiológica - doenças transmissíveis e os fatores de risco - doenças crônicas não transmissíveis e os fatores de risco - agravos à saúde.

O objetivo principal é fornecer orientação técnica permanente para os profissionais de saúde, que têm a responsabilidade de decidir sobre a execução de ações de controle de doenças e agravos, tornando disponíveis, para esse fim, informações atualizadas sobre a ocorrência dessas doenças e agravos, bem como dos fatores que a condicionam, numa área geográfica ou população definida, incluindo atividades e atribuições definidas para os três níveis de atuação do SUS.

A unidade de vigilância de zoonoses - UVZ, antigo CCZ, está definida através da portaria do ministério da saúde 1.138 de 23/5/14, como sendo a pasta do município responsável pelas ações e os serviços de saúde voltados para vigilância, prevenção e controle de zoonoses e de acidentes causados por animais peçonhentos e venenosos, de relevância para a saúde pública.

Logo, para que as UVZs funcione, o Ministério da Saúde sistematizou a aplicação de recursos, visando apoiar os municípios na implantação e na implementação de unidades de vigilância de zoonoses, unidades estas integradas ao SUS, conforme determinação constitucional;

Inclusive o Ministério da Saúde destaca as normas técnicas mínimas necessárias para estruturação física das UVZs, através do manual4, a fim de que a estruturação física seja adequada, além de que o governo federal propicia o financiamento federal, que contempla a construção dos ambientes obrigatórios das UVZs, bem como a ampliação e a reforma de qualquer um de seus ambientes dispostos no manual, mediante justificativa epidemiológica.

Importante destacar que, quando falamos em UVZs, estamos falando também no SUS, pois o médico como agente de saúde está obrigado à vigilância epidemiológica e as diretrizes do Código de Ética da Medicina, que disciplinou que a medicina deve equilibrar-se entre estar a serviço do paciente, da saúde pública e do bem-estar da sociedade, destacando como princípios fundamentais que “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.”

E neste contexto, não menos importante pontuarmos a necessária participação do médico-veterinário, que atualmente compõe o Sistema Único de Saúde e também está obrigado à vigilância epidemiológica, atuando entre outras funções, no campo das doenças zoonóticas, sendo obrigatória sua presença nas UVZs, inclusive fiscalizando as eutanásias realizadas no local que devem estar em respeito à lei 14.228/21 (Dispõe sobre a proibição da eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres; e dá outras providências).

Lembrando que, os animais NÃO SÃO OS VILÕES, muitas vezes os gatos (esporotricose), cães (leishmaniose), macaco (febre amarela), são apenas vítimas do ciclo de transmissão, assim como os humanos e outros animais mamíferos, aliás agem como verdadeiros “anjos” avisando a Administração Pública que a localidade necessita de vigilância epidemiológica em questões específicas.

Contudo, quando a administração pública se mantém omissa na sua obrigatoriedade à eficiência em vigilância epidemiológica, seja por falta de capacitação dos agentes de saúde, seja por falta de infraestrutura física mínima necessária nas UVZs, em tese ocorre a denominada mistanásia, que ceifa vidas humanas e dos animais:

“Diferentemente da eutanásia, em que uma pessoa gera intencionalmente a morte de outra que se encontra debilitada ou em sofrimento insuportável, a mistanásia ocorre em decorrência de má gestão da saúde pública e de omissão dos responsáveis.O termo pode ser usado quando pacientes morrem de maneira evitável por falta de atendimento de qualidade, de insumos ou de leitos, comprovando uma violação do direito à saúde que é garantido pela Constituição Federal. Na maioria dos casos, a mistanásia atinge indivíduos excluídos da sociedade e que dependem de políticas públicas.“ 5

A questão zoonótica é tão séria, que segundo dados da Fiocruz entre 2010 e 2020, foram confirmados mais de 1,9 mil casos de febre maculosa no Brasil, com 679 óbitos, o que significa uma taxa de letalidade de 35%. “A Febre Maculosa pode ser curada com um antibiótico barato. Porém, se o medicamento não é administrado no início da infecção, a bactéria faz um estrago grande nos vasos sanguíneos e o dano se torna irreversível”6. Aliás a febre maculosa tem sido uma preocupação crescente no Brasil, com um aumento significativo de casos relatados nos últimos anos, e a saúde pública precisa estar preparada, a fim de evitar óbitos “desnecessários”, não só pela febre maculosa, mas também leptospirose, leishmaniose, esporotricose, entre outras.

Como se vê, inconcebível nos dias atuais considerar zoonoses, já conhecidas cientificamente, doenças de difícil diagnóstico, e fazer com que seres viventes, humanos e animais, fiquem à mercê de indignidade de saúde pública, que acarreta o óbito ou ofensa à saúde por zoonoses que poderiam e deveriam ser evitadas, prevenidas e erradicadas com vigilância epidemiológica minimamente eficiente, e não o são, pela omissão da Administração Pública em vigilância epidemiológica, a começar pela precariedade das UVZs, e a falta de capacitação técnica para que os agentes de saúde “pensem certo” na hora do diagnóstico, atuando com zelo e dedicação, a começar pela realização do exame laboratorial para certeiro diagnóstico de doenças infectocontagiosas, como fez a mãe da criança falecida por Febre Maculosa, na situação fático-jurídica julgada pelo TJ/SP.

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1 Disponível em: https://www.saude.pr.gov.br/Pagina/Zoonoses#:~:text=Zoonoses%20s%C3%A3o%20doen%C3%A7as%20infecciosas%20transmitidas,alimentos%2C%20%C3%A1gua%20ou%20meio%20ambiente.

Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisadores-alertam-para-circulacao-de-zoonoses#:~:text=As%20primeiras%20manifesta%C3%A7%C3%B5es%20cl%C3%ADnicas%20da,ap%C3%B3s%20o%20in%C3%ADcio%20dos%20sintomas.

Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/11713305/?fbclid=IwAR3n5UGPhqkd2mWPQOCz-_z2j-tpMQVKxD_RxJWb5DaNZqGUo4vGDJtih-U

Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/normas_tecnicas_estruturas_fisicas_unidades_vigilancia_zoonoses.pdf

Disponível em: https://summitsaude.estadao.com.br/saude-humanizada/o-que-e-mistanasia-e-qual-e-sua-relacao-com-a-crise-de-manaus/

Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisadores-alertam-para-circulacao-de-zoonoses#:~:text=Entre%202010%20e%202020%2C%20foram,taxa%20de%20letalidade%20de%2041%25.

Ariana Anari Gil
Advogada OAB/SP 221.152. Compõe o Repositório Nacional de Mulheres Juristas do CNJ. Escritora de livros e artigos jurídicos publicados. Palestrante, Pesquisadora e Consultora Jurídica.

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