Os problemas da cobrança do ICMS nas transferências entre estabelecimentos ainda pode ter novos capítulos com relação aos créditos da não cumulatividade.
O sistema tributário brasileiro é dotado de alta complexidade, o que não poderia ser diferente considerando que não só cada ente federado possui competências para instituir e cobrar seus tributos que podem recair sobre materialidades semelhantes. Ademais, um mesmo tributo pode ser regulado de forma diferente em cada unidade federada. Nesta segunda hipótese se insere o ICMS, um tributo não cumulativo, de amplitude nacional, cujo proveito econômico é repartido entre os Estados de origem e destino da mercadoria, que causa muita controvérsia no cenário tributário.
Veja-se que quando há a realização de uma operação interna, limitada à territorialidade de um único Estado, a solução é simples, pois aplica-se a legislação deste Estado. Lado outro, quando ocorre uma operação interestadual, devem ser observados diferentes regramentos jurídicos, cada qual regulando os aspectos que lhe competem.
É neste contexto que se insere a famigerada discussão dos créditos das transferências entre estabelecimentos situados em unidades federativas diversas. Nesta histórica discussão jurídica que perdura desde o ICM, de um lado os Estados pretendem cobrar ICMS sobre a circulação física de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade e, de outro, os contribuintes entendem que se não operação mercantil, não há incidência do tributo.
A questão poderia ser de simples resolução pela mera declaração de que na transferência entre estabelecimentos não há circulação jurídica, de modo que não restam preenchidos os requisitos constitucionais para que ocorra a incidência tributária, como inclusive entendeu a jurisprudência das últimas décadas.
Entretanto, toda discussão de débitos de tributos não cumulativos encontra sua peculiaridade exatamente na regra de não cumulatividade, eis que há uma relação intrínseca entre o destaque do ICMS na nota fiscal e a transferência dos créditos da não cumulatividade, sobretudo em operações interestaduais.
Relembra-se que a não cumulatividade é uma técnica que visa alcançar uma maior neutralidade na tributação, eis que o contribuinte pode tomar crédito das aquisições, que serão compensadas com o tributo devido na saída, evitando a incidência de tributo em cascata. No caso específico da não cumulatividade do ICMS, o contribuinte toma crédito sobre os impostos incidentes nas aquisições de mercadorias e serviços, que são compensados com os débitos devido em razão da operação própria, seja de circulação de mercadorias ou prestação de serviços.
É curioso que a própria Constituição, ao desenhar a não cumulatividade do ICMS, cria exceções que autorizam que os Estados exijam estornos dos créditos de ICMS quando houver ocorrência de operações “isentas ou não tributadas”, o que deve ser compreendido como situações em que há isenção ou imunidade, que quebram a cadeia da não cumulatividade.
Ocorre que os Estados estruturaram o ICMS com base na regra de que se consideram autônomos os estabelecimentos de um mesmo contribuinte. Assim, para fins de ICMS, prevê que cada estabelecimento será considerado como responsável pelos atos e fatos que derem origem à obrigação tributária, inclusive quando se relacionar com outro estabelecimento a ele vinculado. Os Estados, pautados na autonomia dos estabelecimentos, estruturaram a transferência dos créditos ao considerar estas transferências como se fossem operações de circulação de mercadoria (sobretudo as interestaduais), embora não se trate de um negócio jurídico por ser unilateral.
Com a declaração de inconstitucionalidade da cobrança de ICMS sobre as transferências, os Estados passaram a compreender que as saídas em transferências entre estabelecimentos seriam isentas ou não tributadas, de modo que deveriam ensejar o estorno dos créditos da não cumulatividade. Esse entendimento é completamente equivocado, pois a inexistência de operação mercantil, no caso das transferências entre estabelecimentos, não se confunde com uma regra de isenção ou hipótese de imunidade.
Foi exatamente pautado neste racional que o STF entendeu ser incabível o estorno de créditos nas transferências entre estabelecimentos, julgamento realizado em controle concentrado de constitucionalidade por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC nº 49. Assim, após provocado a se manifestar sobre os estornos, o STF disse o óbvio, qual seja que as “transferências entre estabelecimentos de uma mesma pessoa jurídica não corresponde a não-incidência prevista no art. 155, § 2º, II, ao que mantido o direito de creditamento do contribuinte”1.
Ocorre que os contribuintes também foram surpreendidos com a decisão de modulação para que a decisão só produzisse efeitos em 2024, eis que a jurisprudência dos tribunais era pacífica acerca da não incidência de ICMS nas transferências e, a despeito disso, uma possível interpretação do julgado seria a possibilidade de os Estados cobrarem ICMS nas transferências, o que implicou na oposição de embargos de declaração. Sobre este ponto, ainda pairam dúvidas com relação à conclusão que será adotada pelos Ministros.
Primeira consideração que deve ser feita diz respeito à modulação propriamente dita, que determinou que a decisão produza efeitos para o exercício de 2024 no tocante à declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto do artigo 11, §3º, inciso II, da lei Complementar nº 87 de 1996, que autorizava a cobrança de ICMS nas transferências. Assim, realmente existem dúvidas se podem ser lavrados autos de infração com base no referido artigo até o início do exercício de 2024 com relação aos fatos geradores até então ocorridos, com base na legislação vigente à época, o que justifica o esclarecimento deste ponto pela corte.
Para responder ao questionamento e balizada a premissa acerca da necessidade de manutenção do crédito das transferências entre estabelecimentos na origem, deve-se refletir sobre os possíveis impactos práticos da decisão no Estado de destino da mercadoria. Isso, pois caso o contribuinte aproveite o crédito na origem e também o faça no destino, haverá um aproveitamento em duplicidade dos créditos, o que é vedado pela regra da não cumulatividade. É essa diferença entre os créditos aproveitados na origem e no destino que poderá ser cobrada por meio de lançamento de ofício pelo Estado de destino, não pelo Estado de origem. Por outro lado, contribuintes que transferiram menos créditos nas transferências que os detidos na origem poderão pleitear repetição de indébito na origem, ponto este que já possui precedentes favoráveis para sua aplicação.
Cabe pontuar que o procedimento correto para que o Estado realize o lançamento de ofício e cobre os valores referentes aos créditos da não cumulatividade declarados a maior é o lançamento deve se dar por meio de glosa, que oportunizará a ampla defesa e contraditório ao contribuinte e respeitará o prazo decadencial de 5 anos a contar do fato gerador, caso não ocorra dolo ou fraude. Lembra-se que o prazo decadencial não se suspende ou se interrompe, sendo facultado à administração fiscal inclusive a lavratura de autos de infração para que se evite a decadência do crédito.
É neste ponto que se percebe o desencontro dos marcos temporais que amparam o pleito dos contribuintes e das fazendas estaduais no tocante à cobrança de créditos da não cumulatividade de ICMS.
Isso, pois enquanto os contribuintes que ajuizaram ações para discutir cobrança indevida de ICMS nas transferências entre estabelecimentos, o prazo prescricional se interrompeu, resguardando os 5 anos anteriores ao ajuizamento. Lado outro, o prazo de cobrar o crédito de ICMS declarado a maior possui natureza decadencial e não se suspende ou interrompe, de modo que caberia ao Fisco do Estado de Destino autuar o contribuinte pela glosa dos créditos das transferências, mesmo que fosse apenas para prevenir a decadência.
Conclui-se, portanto, que os efeitos de eventual decisão, caso desfavorável aos contribuintes, só poderá atingir fatos geradores dos últimos 5 anos limitados a 2024 e somente com relação à parcela de crédito comprovadamente aproveitada em duplicidade na origem e no destino.
1 STF. Acórdão ADC 49. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360059515&ext=.pdf. Acesso em 29 de agosto de 2023.