1. Crédito, juros e adimplemento – introdução aos sistemas de concessão de crédito bancário e sua importância em relação à economia nacional
O acesso a empréstimos com taxas baixas de juros é um elemento importante para desenvolvimento e progresso de uma nação. Isso porque o dinheiro possui uma interessante qualidade de multiplicação quando circula. Imagine que A empreste 10 para B, este irá adquirir um bem para empreender de D. Com o valor da venda, D irá investir em novos bens, adquiridos de E, que por sua vez manterá a espiral em giro. É uma roda da fortuna, que precisa de dois elementos para se perpetuar: o ponto inicial e segurança jurídica para novas rodadas.
Quando A teme emprestar para B em razão do alto risco, ele passa a contar com duas opções. De um lado, poderá não emprestar, gerando escassez no sistema e impedindo o início do giro ou, o que ocorre normalmente, ele deverá embutir os riscos detectados no preço do dinheiro que são os juros. Os juros contratuais, ajustados ou convencionais são o valor que se paga por utilizar-se dinheiro. Aqui, dinheiro não se remete à noção de moeda, mas do valor intrínseco do crédito, vez que, na atualidade, o dinheiro circula virtualmente e não apenas com base em moeda/cédula contada.
Essa capacidade de multiplicação é essencial para uma economia sadia e um sistema social em desenvolvimento. Apesar de diversos governos pretenderem métodos artificiais de geração de riqueza (como estímulos setoriais) é comum observa-se que uma vez cessado o impulso a roda não tem forças para girar, como se deu, recentemente, com a venda de automóveis. Pior, pode ocorrer um gap de endividamento e, isso, impactar negativamente, fazendo com que a espiral gire em menor velocidade em comparação com o que se tinha antes da política pública se dar.
Em razão disso, cabe ao direito, através da doutrina e jurisprudência, contribuir, nos seus limites de atuação, para que o custo do dinheiro possa cair. E isso se dá através de dois caminhos: regras protetivas do crédito e segurança jurídica. As primeiras requerem uma maior atuação do Legislador, como se pode observar da recente tentativa, em construção, de uma lei de garantias (Marco Legal das Garantias de Empréstimos – PL 4188/21) sobre a qual nos debruçaremos em breve. Aqui, cabe uma análise abstrata do segundo ponto, a segurança jurídica. Esta, mais do que ao Legislativo, toca ao Judiciário, visto que, para além de normas claras, é fundamental que as decisões não afastem expectativas justas de satisfação do crédito.
A razão deste pequeno escrito, contudo, tangencia a questão do crédito, ao focar no elemento que o nutre, que é o adimplemento, o alcance do fim útil de todo contrato de empréstimo (com especial atenção ao mútuo). Credenciar mecanismos de extinção do crédito ou de objeção ao dever de adimplir é medida que tem relevo social, ao impedir a manutenção de relações jurídicas infrutíferas, mas deve ser aplicada em conta gotas, para impedir que se construa uma “ética do mal pagador”, confundindo a exceção do que caiu em ruína com a posição daquele que busca, por desejo de enriquecimento, ludibriar o sistema legal de execuções.
Neste sentido, a prescrição intercorrente, hoje, encrustada no art. 206-A do Código Civil e no art. 921 do CPC ganha importante destaque, trazendo para a mesa o debate entre segurança jurídica, estabilidade das relações, dignidade do devedor e manutenção do sistema de crédito.
Como o tema não é a prescrição intercorrente em si, mas a medida de sua aplicabilidade, e em respeito à necessária didática, tomamos a liberdade de posicionar o leitor acerca de tal instituto. A prescrição, que é forma de objeção à exigibilidade de um crédito, ao manter incólume o direito em si, ataca o dever de adimplir, afastando do devedor a obrigação de pagar em razão da inércia do credor em se fazer cumprir o pagamento. A prescrição, originalmente, atacava a exigibilidade de créditos não demandados, respeitadas as condições de suspensão e interrupção dos prazos, mas a doutrina civilística deu origem, com inspiração em regra de há muito existente nas execuções fiscais (art. 40 da Lei da Lei 6.830/80) ao debate acerca da apreciação da prescrição ao longo da demanda, quando demonstrado que esta não será frutífera em razão da não localização do devedor, de bens ou que estes sejam tão minguados que tornem não apenas irrisória a captação quanto onerosa a excussão. Daí surgiu o reconhecimento de o prazo prescricional também pode correr durante um processo executório, quando satisfeitas determinadas e exigências.
O tema foi inserido no CPC de 2015, passando a constar do Código Civil em 2022. O STJ, ao solucionar o primeiro Incidente de Assunção de Competência (IAC 1) fixou importantes teses acerca da apreciação da prescrição intercorrente em feitos que seguiram sob a batuta do CPC de 1973. É, aqui, que se inicia nossa rápida, mas esperamos, proveitosa, jornada.
2. O paradigma estabelecido pelo IAC nº 1, REsp 1.604.412/SC
O STJ, em análise do IAC que seria numerado como primeiro de sua história, julgado o paradigma oriundo de Santa Catarina (REsp 1.604.412) estabeleceu um conjunto de teses, que passaremos, agora, em breve revista.
“1.1 Incide a prescrição intercorrente, nas causas regidas pelo CPC/73, quando o exequente permanece inerte por prazo superior ao de prescrição do direito material vindicado, conforme interpretação extraída do art. 202, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
1.2 O termo inicial do prazo prescricional, na vigência do CPC/1973, conta-se do fim do prazo judicial de suspensão do processo ou, inexistindo prazo fixado, do transcurso de um ano (aplicação analógica do art. 40, § 2º, da lei 6.830/80).
1.3 O termo inicial do art. 1.056 do CPC/15 tem incidência apenas nas hipóteses em que o processo se encontrava suspenso na data da entrada em vigor da novel lei processual, uma vez que não se pode extrair interpretação que viabilize o reinício ou a reabertura de prazo prescricional ocorridos na vigência do revogado CPC/1973 (aplicação irretroativa da norma processual).
1.4. O contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição.”
O ponto nevrálgico do debate se encontra no item 1.3, mas é de se observar que (1.1) reconhece o STJ a incidência da prescrição intercorrente, mesmo em causas iniciadas na vigência do anterior CPC (1973) e (1.2) aplica analogicamente regra inexistente no CPC de 1973, inspirado, como se verá, no art. 202 do Código Civil.
Chegando ao item 1.3, tem-se que a eventual suspensão do processo anterior (mas ainda pendente) à vigência do CPC de 2015, valida a aplicação do prazo de prescrição intercorrente a contar de 16 de março de 2015. Caso não estivesse suspenso, e isso é de se alarmar, não haveria reabertura do prazo, mas sim contagem pregressa, o que não se tem como sustentar.
Isso porque, historicamente, alinham-se doutrina e jurisprudência no sentido de se evitar a surpresa, principalmente a que possa gerar grave iniquidade.
Como exemplo, veja-se interessante situação, que se deu ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988, envolveu o reconhecimento de que o prazo da usucapião especial urbana somente poderia ser computado a contar de 05.10.1988, como nos lembra:
“Por se tratar de direito novo e a fim de evitar surpresa e afronta ao direito de propriedade, a jurisprudência vai-se firmando no sentido da contagem do prazo somente a partir da vigência da Constituição, como se pode conferir: TAMG: Ap. 122.426-0, BDI, 1993, nº 2, p. 23; TARS: 1ª,4ª e 5ª Câmaras, BDI, 1993, nº 18, p. 12, JTARGS 81/145, 91/167, RT 705/92; TJSP: Ap. 194.233-1, BDI, 1994, nº 12, p. 22; Ap. 242.663-1, BDI, 1996, nº 14, p. 23; STF, RE 145.004-MT, j. 21.5.96. Vale citar este julgado do TJSP na Ap. 203.229-1/9:
"Usucapião urbano – art. 183 CF. Restou definitivamente assentado ocorrer impossibilidade jurídica do pedido de usucapião com base em posse anterior à CF. Seria surpresa iníqua e confisco odioso dos bens daqueles que confiavam no ordenamento jurídico.” (BDI, SP, 1994, nº 22, p. 19)’”1.
A prescrição intercorrente, conhecida das Execuções Fiscais, por norma própria, inexistia no sistema legal até a entrada em vigor do CPC de 2015. O esforço hermenêutico no sentido de apontar a sua existência a partir do art. 202, parágrafo único, do Código Civil não merece acolhida.
O dispositivo em tela determina que “Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á: (...) Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.”
Contudo, a norma não trata do transcurso intraprocessual, mas sim o termo “a quo” a ser considerado quando da aplicação da regra interruptiva (por exemplo, afastando a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado ou algo similar).
E o que estabelece a legislação sobre o tema? Antes de avançarmos, porém, necessário fazer alerta que, aqui não se discutirá a prescrição intercorrente nos processos de execução fiscal, visto que lá, ao contrário do que ocorre no processo civil geral, há previsão legal de longa data sobre o tema.
O CPC em seu artigo 921 estabelece que:
Art. 921. Suspende-se a execução:
(...)
III - quando não for localizado o executado ou bens penhoráveis; (Redação dada pela lei 14.195/21)
(...)
§ 1º Na hipótese do inciso III, o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 ano, durante o qual se suspenderá a prescrição.
§ 2º Decorrido o prazo máximo de 1 ano sem que seja localizado o executado ou que sejam encontrados bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos.
§ 3º Os autos serão desarquivados para prosseguimento da execução se a qualquer tempo forem encontrados bens penhoráveis.
§ 4º O termo inicial da prescrição no curso do processo será a ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis, e será suspensa, por uma única vez, pelo prazo máximo previsto no § 1º deste artigo. (Redação dada pela lei 14.195/21)
§ 4º-A A efetiva citação, intimação do devedor ou constrição de bens penhoráveis interrompe o prazo de prescrição, que não corre pelo tempo necessário à citação e à intimação do devedor, bem como para as formalidades da constrição patrimonial, se necessária, desde que o credor cumpra os prazos previstos na lei processual ou fixados pelo juiz. (Incluído pela lei 14.195/21)
§ 5º O juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes. Redação dada pela lei 14.195/21)
§ 6º A alegação de nulidade quanto ao procedimento previsto neste artigo somente será conhecida caso demonstrada a ocorrência de efetivo prejuízo, que será presumido apenas em caso de inexistência da intimação de que trata o § 4º deste artigo. (Incluído pela lei 14.195/21)
§ 7º Aplica-se o disposto neste artigo ao cumprimento de sentença de que trata o art. 523 deste Código. (Incluído pela lei 14.1952/21)
De outro tanto, em 2022, o Código Civil foi alterado, com a inserção do art. 206-A, que contempla a forma intercorrente da prescrição.
Art. 206-A. A prescrição intercorrente observará o mesmo prazo de prescrição da pretensão, observadas as causas de impedimento, de suspensão e de interrupção da prescrição previstas neste Código e observado o disposto no art. 921 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (CPC). (Redação dada pela lei 14.382/22)
Como não é objeto deste pequeno ensaio analisar a prescrição intercorrente em si, mas a forma de sua aplicação e momento, aponta-se apenas que caminhou bem o Legislador em regular tão importante tema. Mas a jurisprudência, por seu turno, precisa estar alinhada à lógica intrínseca da prescrição.
Dispor ser possível reconhecer a prescrição em atos processuais anteriores à regra legal fere de morte o art. 14 do CPC, cujo conteúdo segue para posterior análise.
Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.
Esta norma é o ponto de toque da aplicação da regra processual, impedindo que, por exemplo, um novel requisito do ato citatório atinja processos em que tal ato já se deu sob outra batuta. Por outro lado, permite que novas disposições alcancem momentos processuais futuros, como o atendimento de determinado requisito da citação para processos em que tal ato ainda não se implementou. É tamanha a importância que recentes alterações na sistemática recursal passaram a ser reconhecidas como necessárias apenas para processos cujas sentenças sejam a posteriores às alterações, impedindo a aplicação sobre atos em transcurso, cujo prazo já se iniciou.
3. Conclusão
Assim, é de se pensar: como interpretar a aplicação da prescrição intercorrente? Não é ela um ato processual. Como ato-fato ou outra caracterização que a ela se dê não há maiores espaços, neste momento, para uma análise acurada da natureza jurídica. Isso porque importa precisar se, tendo por lógica um tempo, um transcurso e não um evento, quando a ela poderia ser aplicada a nova norma processual.
Nos parece que considerar que o reconhecimento da prescrição é um ato isolado, mesmo que calcado sobre um iter, seria reduzir a um ponto todo um desenrolar. Desta forma, incabível a aplicação do procedimento (e do próprio reconhecimento) a processos suspensos (ou não) antes da vigência do CPC de 2015. Acertada, a nosso ver, a compreensão de que a prescrição somente poderá ser computada a contar da referida data (18.3.16), do que resulta respeito não apenas ao devido processo legal, mas também à segurança jurídica e ao princípio da não surpresa.
1 Dilvanir José da Costa, Usucapião: doutrina e jurisprudência. Senado Federal: Revista de informação legislativa. Brasília a. 36 n. 143 jul./set. 1999. p.332. pp. 321 a 334. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/524/r143-25.PDF?sequence=4&isAllowed=y