O Prêmio Nobel de Economia deste ano, Claudia Goldin, deve ser celebrado como um grande feito histórico. Isso porque, além de ser a terceira mulher a receber o prêmio, depois de Elinor Ostrom (2009) e Esther Duflo (2019), em 93 prêmios Nobel de Economia concedidos desde 1969, o trabalho da professora na Universidade de Harvard se destaca ao abordar as principais causas da disparidade salarial entre homens e mulheres nos Estados Unidos e as razões pelas quais as mulheres são sub-representadas no mercado de trabalho global. Ou seja, o prêmio reconhece e legitima estudos de gênero como ciência e ressalta a sua importância e necessidade na economia e também, por que não, em outras áreas e disciplinas.
Os primeiros programas de estudos de gênero, assim como os primeiros Centros de Estudos Feministas, foram estabelecidos nas universidades dos EUA na década de 1960 a partir da tradição crítica tanto das ciências sociais quanto das ciências humanas. Desde então, esses espaços dedicados a tratar das necessidades específicas das mulheres que hoje também incluem questões LGBTQ no âmbito da academia, do mercado de trabalho e da sociedade foram e são fundamentais para fomentar uma mudança pessoal, pedagógica, política e institucional. Servindo como uma ferramenta de análise do funcionamento do mundo, das organizações sociais e instituições, os estudos de gênero têm contribuído com debates, análises, políticas e ações concretas que promovem ambientes mais diversos e mais justos para todos.
O reconhecimento do prêmio Nobel chega em boa hora pois grupos ultraconservadores vêm atacando e buscando meios de desqualificar os programas e estudos de gênero por todo o mundo há vários anos. Do Kuwait à Hungria, do Brasil aos EUA, os ataques tomam muitas formas e, geralmente, são proclamados contra uma suposta “ideologia de gênero”, termo sem significado concreto e que é adaptado a qualquer coisa que possa ser o alvo do dia desses grupos. Atacam a educação sexual nas escolas, o direito ao aborto, os direitos LGBTQ, as quotas e políticas de inclusão e até os professores, programas e estudos de gênero nas universidades.
Em 2018, o governo da Hungria decidiu revogar a acreditação de todos os programas de estudo de gênero do país alegando que estudos de gênero não seriam uma ciência e que não serviriam a nenhuma profissão. Nos EUA, em agosto deste ano, o conselho diretório do New College of Florida votou para extinguir o seu departamento de estudos de gênero. No Brasil, a agressão verbal que Judith Butler sofreu no aeroporto de Congonhas quando visitava o país em 2017 foi só um indicativo do que seria encorajado pela administração do ex-presidente Bolsonaro e que tem ramificações até hoje, tanto nos níveis federal, estadual e municipal.
Segundo relatório da Human Rights Watch, “Tenho medo, esse era o objetivo deles: esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil”, 217 projetos de lei foram apresentados entre 2014 e 2022 destinados a proibir explicitamente o ensino ou a divulgação de conteúdo sobre gênero e sexualidade nas escolas municipais ou estaduais. Professores brasileiros sofreram agressão verbal, ameaças de violência ou processos administrativos por abordarem o tema de gênero em sala de aula. Ainda segundo o mesmo relatório, em março de 2022, a cidade de Sinop, no Mato Grosso, aprovou lei que proíbe educadores da rede pública municipal de divulgar qualquer tipo de informação sobre “ideologia de gênero”, orientação sexual e direitos sexuais e reprodutivos.
Os ataques e tentativas de preservar à força as estruturas patriarcais e os papéis tradicionalmente atribuídos aos gêneros estão quase sempre associados a regimes autoritários que buscam controlar a produção de conhecimento e a sexualidade de sua população. Sem fundamento, além de restringirem a liberdade acadêmica, esses ataques vão contra o conhecimento científico produzido sobre o tema em mais de seis décadas. Educação integral em sexualidade está associada ao adiamento do início das relações sexuais e ao aumento do uso de preservativos e contraceptivos, a um maior conhecimento sobre proteção contra violência sexual e de gênero e atitudes positivas em relação a equidade e diversidade de gênero. Pesquisas de gênero em saúde pública e medicina melhoraram o tratamento e a saúde de milhares de mulheres. Estudos de gênero em economia e finanças ajudaram a aliviar a pobreza extrema em vários países e, agora, a autora de um estudo econômico sobre a disparidade salarial por gênero recebe um Prêmio Nobel!
Em seus estudos, Claudia Goldin demonstra que as decisões educacionais, que impactam uma vida inteira de oportunidades profissionais são tomadas em uma idade relativamente jovem. Sabemos que no mercado de trabalho, atualmente, as profissões com maiores salários estão ligadas à tecnologia de informação e IA, áreas que desde os primeiros anos de educação escolar até o estágio ou recrutamento para empregos restringem o acesso de mulheres. Além disso, dentre algumas das principais razões para a disparidade salarial entre homens e mulheres nos EUA, identificadas pela professora Goldin está o fato de que a maternidade ainda se impõe como barreira permanente à equidade salarial entre homens e mulheres. A disparidade salarial por gênero nos EUA se manteve estável nas últimas duas décadas e, ainda hoje, em média, as mulheres recebem 82% do salário dos homens para o mesmo trabalho nos EUA. O prêmio Nobel é certamente uma grande conquista, mas muito ainda precisa ser feito.