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Melhor interesse x legítimo interesse no tratamento de dados de crianças e adolescentes

A manutenção da possibilidade do uso da base do legítimo interesse no tratamento de dados de crianças e adolescentes, além de não se justificar, tem um potencial enorme de criar situações prejudiciais e danos irreversíveis aos direitos e liberdades desses titulares, violando disposições constitucionais e legais voltadas para a proteção da infância e adolescência.

18/10/2023

A Autoridade Nacional de proteção de Dados (“ANPD”) publicou, em maio deste ano, o Enunciado CD/ANPD 1/231 (“Enunciado”), com o objetivo de uniformizar sua interpretação a respeito do tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. De acordo com o Enunciado, o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes pode ser realizado com base nas hipóteses legais previstas nos artigos 7º e 11º da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (“LGPD”), desde que observado e prevalecendo o melhor interesse desses titulares.

Desta forma, a ANPD deixou claro que o consentimento não é a única base legal aplicável ao tratamento de dados de crianças e adolescentes, liberando o uso das outras hipóteses legais indicadas na LGPD. Entre elas, está a do legítimo interesse, que se funda na premissa de que o tratamento de dados pessoais poderá ser realizado “quando necessário para atender os interesses legítimos do controlador ou terceiro, como o apoio e a promoção de atividades do controlador e proteção, em relação ao titular, do exercício de seus direitos ou prestação de serviços que o beneficiem, respeitadas as legítimas expectavas do titular, seus direitos e suas liberdades fundamentais”, conforme disposto no artigo 10 da LGPD.

Mas, como fazer para atender, ao mesmo tempo, o melhor interesse da criança ou adolescente titular do dado e o legítimo interesse do controlador ou terceiro? Essa conciliação é possível de ser realizada?

 

A ANPD, no seu Estudo Preliminar realizado em setembro de 2022 sobre as hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes1 (“Estudo”), concluiu que essa conciliação é possível, destacando que a utilização de outras bases legais, além do consentimento, deve ser analisada “com uma dose adicional de cautela, considerando a vulnerabilidade desse público e os riscos potenciais aos seus direitos fundamentais”2. O Estudo apontou que “a tentativa de amenizar os riscos no tratamento de dados de crianças e adolescentes por meio do impedimento, a priori e em abstrato, do uso de determinadas hipóteses legais, tais como as de execução de contrato, de legítimo interesse e proteção ao crédito, poderá inviabilizar casos específicos de tratamento de dados pessoais que sejam realizados no melhor interesse da criança e adolescente”.3

 

Por outro lado, algumas organizações que participaram das discussões acerca do tema não concordaram com o posicionamento da ANPD. A OAB São Paulo, por exemplo, por meio de nota publicada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente em junho de 20234, manifestou sua discordância e preocupação quanto ao uso de algumas bases legais do artigo 7º da LGPD para o tratamento de dados de crianças e adolescentes, dentre elas a do legítimo interesse. Na nota, a OAB destaca que “a incompatibilidade do melhor interesse da criança e do adolescente consagrado no caput do artigo 14 da LGPD como requisito primordial para uso de seus dados com a base legal do legítimo interesse é notória. Tal base legal, por definição, busca privilegiar os interesses do controlador ou de terceiros em detrimento daqueles do titular, enquanto o melhor interesse, novamente nos termos do Comentário Geral 14 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, determina que, em potencial situação de conflito, deve sempre prevalecer o resguardo à criança e ao adolescente”.

Essa divergência mostra que o controlador deve dobrar a cautela ao optar pela utilização da base legal do legítimo interesse. Isso porque o risco de prejudicar essa categoria de titulares é mais alto, por conta da sua vulnerabilidade presumida. Por conta disso, nesses casos, entendemos que é obrigatória a realização de um teste de balanceamento6 (“LIA”) para verificar se os direitos e liberdades fundamentais desses titulares serão mandos, assim como a observância da preponderância do seu melhor interesse. Com o LIA, o controlador terá uma ferramenta mais adequada para fazer essa análise, sendo ainda indicado, a feitura de um Relatório de Impacto de Dados Pessoais (“RIDP”) para avaliar os impactos nesse grupo de titulares do tratamento pretendido de seus dados por meio da base legal do legítimo interesse.  

 

Considerando o risco da inobservância do melhor interesse da criança e do adolescente em função de interpretações que poderão ser consideradas mais tarde errôneas pelas autoridades ou entidades que auxiliam no resguardo dos direitos desses titulares, a pergunta que fazemos agora é: qual é a real necessidade de se utilizar a base do legítimo interesse para o tratamento de dados de crianças e adolescentes? Na prática, qual é a consequência de impedir o uso do legítimo interesse para fundamentar o tratamento de dados de menores de 18 anos?  

 

No Estudo, a ANPD argumenta que a possibilidade de utilização da base legal do legítimo interesse para o tratamento de dados de crianças e adolescentes é necessária, pois impede que situações triviais de tratamento sejam inviabilizadas ou gerem impactos negativos aos direitos das crianças e adolescentes. Para corroborar com esse argumento, a ANPD dá um único exemplo, transcrito abaixo:

“Por exemplo, ao utilizar a rede wi-fi de sua escola, os dados pessoais de crianças e adolescentes podem ser eventualmente coletados com base no legítimo interesse do controlador visando à própria segurança daqueles estudantes e ao adequado gerenciamento da rede da escola, como ao impedir o acesso a determinadas páginas eletrônicas ou ao identificar uma criança que acessou determinada página em horário específico.”

Nesse exemplo, não há necessidade de se utilizar a base do legítimo interesse, já que esta atividade de tratamento se enquadraria perfeitamente na base legal prevista no artigo 11, II, d, da LGPD, qual seja, a “garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular”. A própria ANPD, no exemplo acima, enfatiza que a coleta dos dados das crianças e adolescentes é feita “visando a própria segurança daqueles estudantes”.

Desde já, desafio o leitor a encontrar situação em que a hipótese legal do legítimo interesse seja de fato a única alternava para a realização de um determinado tratamento de dados de crianças e adolescentes, considerando, claro, a preservação do seu melhor interesse. Simplesmente, não há.

Dessa forma, a manutenção da possibilidade de utilização do legítimo interesse como base legal para o tratamento de dados de crianças e adolescentes não só não traz qualquer benefício para o titular, como também pode contribuir para o favorecimento da realização de atividades de tratamento de dados que violam o princípio do melhor interesse. 

A Pesquisa TIC KIDS ONLINE BRASIL 2022  mostra que a grande parte das crianças e adolescentes no nosso país estão, de certo modo, inseridos no ambiente digital, sendo que 86% dos usuários da rede entre 9 e 17 anos reportaram possuir um perfil em pelo menos uma rede social. Considerando esse grande volume, a utilização da base legal do legítimo interesse no tratamento de dados desses titulares aumentará substancialmente o risco do uso indiscriminado desses dados pessoais sem a observância do melhor interesse e a transparência necessária. Essa flexibilização vai contra as diversas iniciavas nacionais e internacionais de regulamentação da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes em ambientes digitais.   

 

Esse tema é tão delicado que a própria ANPD faz uma ressalva no seu Estudo que abre uma brecha para uma futura restrição ao uso da base legal do legítimo interesse nesses casos:

“Nesse sentido, essa interpretação não impede que a ANPD venha a estabelecer restrições ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes em situações concretas específicas, inclusive quanto ao uso de determinadas hipóteses legais, sempre que for necessário para garantir o respeito ao princípio do melhor interesse e dos demais princípios e regras previstos na LGPD e na legislação pertinente.”

Por todo exposto, a revisão da interpretação conda no Enunciado quanto ao tema aqui discutido é urgente. A manutenção da possibilidade do uso da base do legítimo interesse no tratamento de dados de crianças e adolescentes, além de não se justificar, tem um potencial enorme de criar situações prejudiciais e danos irreversíveis aos direitos e liberdades desses titulares, violando disposições constitucionais e legais voltadas para a proteção da infância e adolescência. 

_____________

1 Enunciado CD/ANPD Nº1, DE 22 DE MAIO DE 2023, publicado no Diário Oficial de União em 24/05/2023, edição 98, Seção 1, Página 29: 

“ENUNCIADO CD/ANPD Nº1, DE 22 DE MAIO DE 2023 

O CONSELHO DIRETOR DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD), exercendo as competências normativas instituídas pelo art. 55-J, XX, da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018; pelo art. 2º, XX, do Decreto nº 10.474, de 26 de agosto de 2020; e pelos art. 5º, IX, e art. 51, parágrafo único, do Regimento Interno da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, aprovado pela Portaria nº 1, de 8 de março de 2021, 

CONSIDERANDO o que consta nos autos do Processo nº 00261.001880/2022-84; e 

CONSIDERANDO a deliberação tomada no Circuito Deliberativo nº 11/2023; resolve: 

Editar o presente Enunciado: 

"O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes poderá ser realizado com base nas hipóteses legais previstas no art. 7º ou no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), desde que observado e prevalecente o seu melhor interesse, a ser avaliado no caso concreto, nos termos do art. 14 da Lei." 

Este Enunciado entra em vigor na data de sua publicação. 

1 “ANPD Estudo Preliminar - Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, Setembro/2022” - htps://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/estudopreliminar-tratamento-de-dados-crianca-e-adolescente.pdf. 

2 Cf. página //// do Estudo. 

3 Cf. página /// do Estudo. 

4 htps://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/nocias/oab-sp-manifesta-preocupacao-com-jusficava-daanpd-sobre-tratamento-de-dados-pessoais-de-criancas-e-adolescentes/ - OAB SP manifesta preocupação com jusficava da ANPD sobre tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes - Jornal da Advocacia.

6 Argo 10, § 3º. 

Juliana Guimarães de Castro Neves
Advogada e engenheira mecânica, com pós-graduação em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas e mestrado (LLM) em Arbitragem Internacional pela University of Miami School of Law. Realizou o curso Privacidade e Proteção de Dados - Teoria e Prática do Data Privacy Brasil e é certificada em Sistemas de Informação pelo Exin (ISFS ISO/IEC 27001). Membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/SP e integrante da equipe de privacidade do Mendonça de Barros Advogados, com larga experiência em projetos de adequação à LGPD em diversas empresas de grande, médio e pequeno porte.

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