Introdução
Existe um entendimento, amplamente difundido, de que o exercício do poder de polícia se materializa pela simples existência de competências fiscalizatórias e sancionatórias executadas por determinado órgão ou entidade da Administração Pública.
Todavia, essa percepção desconsidera elementos importantes desenvolvidos por renomados doutrinadores administrativistas1, bem como ignora os requisitos impostos pela jurisprudência qualificada do Superior Tribunal de Justiça2, especificamente relacionados à caracterização de determinada atividade como vinculada ao exercício do poder de polícia.
Ademais, em um Estado Democrático e Constitucional de Direito imperam mandamentos constitucionais e legais, como forma de limitar idiossincrasias e subjetividades autoritárias. À vista disso, para a correta subsunção de determinada atividade ao conceito de poder de polícia, faz-se imperiosa observância, sobretudo, do princípio da estrita legalidade.
Evidentemente, o exercício de poder de polícia pressupõe a existência de competências relacionadas à fiscalização e sanção. Contudo, nem todas as atividades que envolvem fiscalização e sanção podem ser consideradas como reflexo do exercício do poder de polícia.
Em outras palavras, o desenvolvimento de atividades concernentes a fiscalização e sanção, apesar de ser requisito necessário para a caracterização do efetivo exercício de poder de polícia, por determinado órgão da Administração Pública, não é premissa suficiente.
No presente artigo, procuramos lançar luz sobre o papel do Tribunal de Contas da União, como órgão auxiliar do Congresso Nacional no exercício do controle externo, analisando – com fundamento na doutrina, na jurisprudência e na lei – se as competências de fiscalização e sanção da Corte de Contas são suficientes para permitir concluir que o órgão exerce atividade policial de qualquer natureza, notadamente o poder de polícia administrativa.
Para tanto, o presente trabalho foi estruturado em três capítulos, para além da introdução e da conclusão. Inicialmente, discutem-se as competências do Tribunal de Contas da União, com ênfase em suas atividades fiscalizatórias, em seus poderes sancionatórios, na especificação do interesse público tutelado pelo desempenho de suas competências constitucionais e legais, na delimitação dos possíveis sujeitos passivos de suas ações de fiscalização e sanção, bem como na delimitação do poder sancionatório e do poder geral de cautela exercido pelo Tribunal de Contas da União.
Em seguida, analisa-se o conceito doutrinário de poder de polícia administrativa, os requisitos jurisprudenciais para a caracterização de efetivo poder de polícia e, finalmente, porém não menos importante, a delimitação legal e a estrutura normativa do conceito legislativo de poder de polícia.
Finalmente, cotejando-se as reflexões descritas nos dois capítulos anteriores, o último tópico do presente artigo pondera a respeito da (im)possibilidade de enquadramento do Tribunal de Contas da União como órgão de polícia administrativa, com o objetivo de aprofundar e de fomentar o debate e a reflexão sobre tão importante temática.
Das competências do Tribunal de Contas da União
Controle externo como desdobramento do princípio da separação de poderes
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União, e das entidades da administração direta e indireta, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, bem como pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro3, em termos gerais, considera-se controle externo “o controle exercido por um dos Poderes sobre o outro”. Nessa mesma linha, Marçal Justen Filho leciona que “o controle externo consiste na submissão da atividade administrativa à fiscalização exercitada por órgãos externos à estrutura do Poder que os praticou”4.
Em vista dessas definições, pode-se afirmar que o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, e exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, decorre, fundamentalmente, do princípio constitucional da separação dos poderes e objetiva, em sua dimensão de controle financeiro, garantir a boa e regular aplicação de recursos públicos.
Atividades inerentes ao exercício do controle externo
De acordo com o magistério de Marçal Justem Filho5, controle externo pode ser definido como, “o dever-poder atribuído constitucionalmente e instituído por lei como competência específica de certos Poderes e órgãos, tendo por objeto identificar e prevenir defeitos ou aperfeiçoar a atividade administrativa, promovendo as medidas necessárias para tanto”.
Desse modo, como se observa da própria definição de controle externo transcrita acima, constata-se que o desempenho de atividades inerentes ao exercício desse “dever-poder” pressupõe a existência de competências fiscalizatórias, com o intuito de “identificar e prevenir defeitos”, que podem “resultar, ainda, em provimentos de cunho condenatório, impondo ao ente administrativo a obrigação de fazer, de não fazer ou de pagar quantia certa em dinheiro” 6.
Assim, o efetivo exercício do controle externo, “atribuído constitucionalmente e instituído por lei como competência específica de certos Poderes e órgãos” 7, pressupõe a existência de competências fiscalizatórias e sancionatórias, nos exatos limites da Constituição Federal e da lei8, que não se confundem com a noção de poder de polícia, conforme abordado em capítulo próprio.
Sujeitos passivos submetidos à jurisdição do Tribunal de Contas da União
A delimitação dos sujeitos passivos submetidos à jurisdição do Tribunal de Contas da União possui relação direta e necessária com a existência de recursos públicos envolvidos em determinada transação.
De fato, o controle financeiro da destinação dos recursos públicos é uma competência essencial ao regime democrático e a prestação de contas, acerca da boa e regulação aplicação de recursos públicos, é dever fiduciário do gestor público e de todos aqueles que possuem algum tipo de responsabilidade no trato com dinheiros, bens e valores públicos9.
Para os fins propostos no presente estudo, tão importante quanto definir os eventuais sujeitos passivos submetidos à jurisdição do Tribunal de Contas da União, é delimitar, de forma clara e precisa, quem não se submete às competências fiscalizatórias e sancionatórias da Corte de Contas.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, deverá prestar contas qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
A contrário senso, portanto, toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que não possua responsabilidades relacionadas com recursos públicos federais estará fora do escrutínio do Tribunal de Contas da União, tanto em termos de fiscalização como de sanção. Significa dizer que a Corte de Contas não possui qualquer competência para limitar ou disciplinar direito, interesse ou liberdade de pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado, que não possuam qualquer responsabilidade no trato com dinheiros, bens e valores públicos da União.
Nesse sentido, pode-se concluir que os principais sujeitos passivos submetidos à jurisdição do Tribunal de Contas da União serão, precipuamente, servidores e agentes públicos. No entanto, excepcionalmente, pessoas físicas ou jurídicas, que estabeleçam algum tipo de vinculação especial com a Administração Pública, notadamente licitantes10 ou as que contratam com o Poder Público, podem se sujeitar ao poder sancionatório do Tribunal de Contas da União, considerando-se a origem federal dos recursos públicos envolvidos.
Importante observar, desde logo, que as competências constitucionais e legais da Corte de Contas se aplicam apenas um grupo específico de pessoas que possuem um vínculo especial com a Administração Pública, a saber: responsáveis pela utilização, arrecadação, guarda, gestão ou administração de bens e valores públicos federais.
Sem embargo, giza-se, ao contrário do que ocorre com outros órgãos e entidades da Administração Pública, cujo poder fiscalizatório e sancionatório alcança todo e qualquer tipo de particular, afetando direta e indistintamente direito, interesse ou liberdade, as competências de fiscalização e sanção do Tribunal de Contas da União, desempenhadas em decorrência do exercício do controle externo, somente alcançam pessoas com especial vínculo com o Poder Público, sejam servidores, agentes públicos, licitantes ou pessoas físicas e jurídicas que constituam uma relação contratual com a Administração Pública.
Interesse público tutelado pela Corte de Contas
Conforme abordado, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, terá como objetivo a análise da legalidade, legitimidade e economicidade de atos e contratos, devendo prestar contas qualquer pessoa que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre recursos públicos federais.
No âmbito de suas competências constitucionais e legais, pode-se afirmar que o interesse público tutelado pelo Tribunal de Contas da União, por meio da fiscalização de atos e contratos da Administração Pública, é o de garantir que os recursos públicos sejam aplicados respeitando-se a legalidade, a legitimidade e a economicidade.
Por seu turno, o Regimento Interno do Tribunal de Contas da União (RITCU) esclarece que a prestação de contas deve conter elementos e demonstrativos que evidenciem “a boa e regular aplicação dos recursos públicos”11.
Dessa forma, pode-se concluir que o interesse público, constitucionalmente definido, que legitima, no exercício do controle externo, a atuação fiscalizatória e sancionatória do Tribunal de Contas da União e, por conseguinte, a limitação a direito, interesse ou liberdade dos responsáveis sob sua jurisdição, está relacionado à boa e regular aplicação de recursos públicos federais.
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