No dia 1º de agosto, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, por maioria de votos, reconheceu a ilegitimidade de uma associação civil para requerer recuperação judicial.
A decisão é importante no atual cenário. Nos últimos anos tem-se observado com certa frequência a utilização dos regimes recuperatórios por entidades não empresárias, tais como fundações e associações civis. O recente acórdão do TJ/SP se soma aos diversos precedentes existentes sobre esse tema, que ainda carece de referenciais mais claros na jurisprudência e uniformização pelas Cortes Superiores.
E a relevância prática da discussão é evidente: a pesquisa “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil”1, realizada pelo IBGE no ano de 2016, catalogou a existência de 236.950 fundações privadas e associações sem fins lucrativos no país. São organismos que exercem desde atividades religiosas e filantrópicas, até a prestação de serviços de interesse público como educação, pesquisa, saúde e habitação. O estudo serve como uma amostra do universo potencialmente atingido pela discussão tocada pelo recente acórdão do TJ/SP.
O art. 1º da lei 11.101/05 – “LREF” prevê que a legislação especial que disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência aplica-se apenas ao empresário e à sociedade empresária – e a reforma recente da lei de insolvência, advinda com a lei 14.112/20, manteve tal restrição. Portanto, a questão que se coloca é se as associações civis estariam abarcadas por esse tratamento, na medida em que, apesar de não serem tecnicamente empresário e nem sociedade empresária, são agentes econômicos que exercem atividade supostamente equiparável àquela desempenhada pelas empresas. Semelhante discussão já foi travada em casos envolvendo a presença de fundações, que, assim como as associações, são entes civis que podem exercer atividade produtiva, mas não têm finalidade lucrativa.
Trazendo contornos mais claros sobre esse debate, o voto condutor do recente julgado do TJ/SP traz importantes elementos e argumentos para embasar seu entendimento, tais como (i) a impossibilidade de ampliação do acesso à recuperação judicial, contrariamente à dicção expressa do art. 1º da LREF; (ii) a inviabilidade de conceder a recuperação judicial a entidades que não se sujeitam à falência, como as associações civis; (iii) o tratamento tributário distinto destinado às associações, entre outras diferenças relevantes para as sociedades empresárias; e (iv) o encarecimento do crédito que resultaria da aceitação de um procedimento não previsto legalmente e sequer cogitado pelo concedente do empréstimo.
Nessa mesma linha, a ilegitimidade de associações de saúde (hospital) e ensino também foi reconhecida em julgados do TJ/RJ2, do TJ/SP3 e do TJ/MG4. Por outro lado, apenas para citar alguns exemplos e ilustrando o indefinido cenário que hoje se apresenta na jurisprudência, tem-se conhecimento de julgados favoráveis à recuperação judicial de associações/fundações do TJ/RJ5 e do TJ/MG6, também envolvendo uma faculdade e um hospital.
Ou seja, é possível notar, inclusive, que há decisões em sentido oposto provenientes de um mesmo tribunal em períodos relativamente próximos, como nos casos acima citados do TJ/MG, julgados no mesmo ano, o que bem representa o cenário de insegurança jurídica que ainda paira sobre o assunto.
A recuperação judicial de um grupo de instituições de ensino no Rio Grande do Sul, que se tornou um dos mais emblemáticos casos discutindo a legitimidade das associações civis, é marcado pelas suas diversas “idas e vindas”: em primeiro grau, o juízo da 2ª Vara Regional Empresarial de Porto Alegre/RS deferiu o processamento da recuperação judicial às associações; por sua vez, a 5ª Câmara Cível do TJ/RS deu provimento a recursos interpostos por determinados credores para indeferir o processamento da recuperação judicial; em decisão monocrática, o 3º Vice-Presidente do TJRS, ao admitir os recursos especiais do Grupo Metodista, sustou os efeitos do acórdão da 5ª Câmara Cível do TJ-RS, restabelecendo o processamento da recuperação judicial; em sede de tutela provisória, o Ministro Raul Araújo revogou o efeito suspensivo concedido pelo tribunal a quo até ulterior decisão; e, ao julgar o agravo interno do Grupo Metodista, a Quarta Turma do STJ deferiu efeito suspensivo ao recurso especial e, mais uma vez, restabeleceu o processamento da recuperação judicial.
Ainda sobre esse caso originário da corte gaúcha, cabe destacar que, embora a decisão da TP 3.654/RS ataque alguns importantes aspectos do recurso, naquela ocasião a Quarta Turma do STJ se debruçava tão somente sobre um pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto pelas associações7. Ou seja, o julgado – que atualmente é citado recorrentemente como uma das referências de jurisprudência da corte sobre o assunto – é, na realidade, uma decisão proferida em um juízo de cognição sumária. Os recursos especiais do caso ainda pendem de julgamento, não havendo, portanto, um pronunciamento definitivo e exauriente do órgão julgador sobre o mérito da questão.
Em outro precedente frequentemente citado do STJ, o REsp 1.004.910/RJ, embora se tenha mantido o processamento da recuperação judicial de uma associação, o voto do Ministro Fernando Gonçalves deixa claro que um dos aspectos determinantes para a formação do convencimento da Quarta Turma naquele caso foi o tempo decorrido e todos os atos que se sucederam no processo, aplicando-se a teoria do fato consumado (segundo a qual a situação consolidada pelo decurso tempo, amparada por decisão judicial, não poderia ser desconstituída)8.
Enfim, à luz do atual panorama legislativo, da instabilidade da jurisprudência nacional sobre esse assunto e da falta de um precedente da instância superior que efetivamente resolva o mérito da questão, fica claro que o tema ainda merece aprofundada reflexão.
Se por um lado é certo que a decisão do TJ/SP não deve encerrar a discussão, por outro, não se pode negar que o acórdão traz luz para importantes aspectos que devem ser sopesados nessa análise. Trata-se de um precedente emitido por um órgão especializado de um tribunal que concentra um expressivo volume de recuperações judiciais relevantes para o país e que vem produzindo jurisprudência em casos de grande impacto econômico em âmbito nacional.
Além disso, o acórdão do TJ/SP também tem a peculiaridade de enfrentar o tema à luz de recentes reformas legislativas que parecem reafirmar a opção legislativa pela exclusão das entidades não empresárias do microssistema de insolvência empresarial, ressalvadas as exceções expressas feitas pelo legislador – como se viu, por exemplo, na Lei das Sociedades Anônimas do Futebol ou como a própria reforma da LREF fez em relação ao produtor rural. Resta, portanto, acompanhar de perto quando e como esses pontos serão enfrentados pelo STJ, em prol da necessária uniformização da jurisprudência nacional sobre esse importante tema.
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1 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pesquisa/35/0. Acesso em: 14/8/23
2 TJ/RJ, Apelação 0440514-05.2012.8.19.0001, Relatora: Desª. Inês Da Trindade Chaves De Melo, Sexta Câmara Cível, j. 30/7/14.
3 TJ/SP; Apelação Cível 1007620-13.2015.8.26.0037, Relator: Desembargador Teixeira Leite, Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 11/11/15, DJe 13/11/15.
4 TJ/MG, Agravo de Instrumento 1.0000.21.095062-2/001, Número CNJ 0950838-50.2021.8.13.0000, Relator: Desembargador Peixoto Henriques, rel. p/ acórdão Des. Oliveira Firmo, 7ª Câmara Cível, j. 30/11/2021, DJe 30/11/21.
5 TJ/RJ, Agravo de Instrumento 0031515-53.2020.8.19.0000, Relator: Desembargador Nagib Slaibi Filho, Sexta Câmara Cível, j. 2/9/20, DJe 15/10/20.
6 TJ/MG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.442604-3/004, Relator: Des. Leite Praça, 19ª Câmara Cível, j. 1/7/21, DJe: 6/7/21.
7 STJ, AgInt no TP 3.654/RS, Relator: Ministro Raul Araújo, relator p/ acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 15/3/22, DJe de 8/4/22.
8 STJ, REsp 1.004.910/RJ, Relator: Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, j. 18/3/08, DJe 4/8/08.