Relendo o “O caso dos exploradores de caverna”, de Lon Luvois Fuller, pude parar para refletir sobre as entranhas do Direito sob uma ótica diferente da minha primeira leitura, quando ainda era estudante e não o conhecia tão intimamente.
Confesso que quando tive o primeiro contato com a leitura desse livro eu era apenas uma estudante de Direito ainda muito iludida com o universo jurídico que estava se abrindo para mim.
Grande parte dos estudantes quando se deparam com o Direito acreditam em um ideal de justiça intocável, em que o justo é justo e não há o que se discutir. Nesse sentido, rememoro que, na época, fiquei muito revoltada com o resultado final do julgamento, de tal forma que a intenção do livro, a de levar a uma reflexão filosófica, ficou de lado.
Hoje compreendo que a lei é criada com um objetivo específico e a cada caso deve ser aplicada considerando as peculiaridades que envolvem os fatos. Um exemplo bem simples é o da pensão. Toda criança tem direito a receber alimentos para fazer frente às suas despesas com alimentação, saúde e educação. Contudo, o valor a ser arbitrado vai depender da necessidade do menor e da capacidade do pai ou da mãe para pagar.
Ou seja, o julgador é obrigado a analisar o caso concreto ao invés de aplicar a lei nua e crua, fugindo, ainda, do mito dos 30% que tanto reverbera por dentro de nossa sociedade.
No caso dos exploradores da caverna, a sobrevivência deles estava condicionada à capacidade de se alimentar. Porém, o local onde estavam presos não dispunha de meios suficientes para suprir as necessidades dos exploradores. Assim, forçados pelo contexto de sobrevivência, optaram por sacrificar um deles de modo a terem alimentos até que fossem resgatados. Seguindo a seguinte lógica: um morre para que os outros quatro consigam sobreviver.
A obra em questão elucida uma complexidade de direitos que, em muitos casos, conflitam entre si. Afinal, os quatro homens foram resgatados somente 32 dias após o acidente, a um custo financeiro altíssimo e mediante a perda da vida de 10 operários que morreram durante o resgate em função dos deslizamentos.
Além disso, a morte de um deles se tornou imperiosa para sobrevida dos demais até que o resgate ocorresse. E, para tanto, firmou-se um contrato entre os cinco homens de modo a evitar a morte de todos por inanição. A solução, no momento, pareceu plausível, uma vez que consultado o chefe dos médicos ali presente, este informou, a contragosto, que o consumo da carne humana poderia amenizar o quadro de inanição e aumentar, consideravelmente, a chance de sobrevivência.
Foi feito um acordo em que todos foram signatários. O explorador escolhido chegou a pedir a anulação do pacto firmado, mas não foi ouvido. Contudo, quando questionado se aceitaria os resultados dos dados jogados por outra pessoa, ele aceitou e, assim, a sorte ficou contra ele.
Quando resgatados e o caso veio à tona, muitos analisariam o fato e, perante as leis daquele país, a atitude dos sobreviventes foi considerada homicídio, independente das circunstâncias. Assim foi o entendimento do Tribunal de Primeira Instância.
Inconformado com a sentença que condenaria os quatro sobreviventes à forca, o advogado recorreu à Suprema Corte. Foi nesse momento que os julgadores se depararam com uma diversidade de opiniões e precisou uniformizar o pensamento, a fim de chegar a um veredicto final.
O Presidente da Suprema Corte entendia que aos réus deveria ser concedida clemência. Já o juiz Foster J. discordava do Presidente e o criticava ferrenhamente afirmando que ele estava se esquivando do julgamento do caso.
De acordo com o juiz Foster J., o texto da lei deveria ser lido de maneira mais racional de forma a avaliar o ato praticado pelos réus, conforme seu propósito.
Quanto ao juiz Tatting, J., entendeu que seria impossível dissociar o emocional do intelectual no julgamento do caso. Diante disso, o juiz mostrou-se pasmo ao imaginar os quatro acusados, após todo dinheiro dispendido para lhes salvar a vida e de tantas vidas perdidas na operação de resgate, sendo condenados à morte.
O juiz Keen J., por sua vez, deixou clara sua capacidade de distinguir sentimentos no exercício de suas funções e trouxe a princípio sua opinião sobre o caso, afirmando que enxergava todos os requisitos necessários para que o caso seja classificado como um assassinato.
O último juiz, Handy, J., último a votar, ponderou que todos somos falhos e trouxe a ideia de que a chance da maioria estar errada é menor do que a de uma pequena maioria regida por formalidades e burocracias e decidiu pela inocência dos réus.
Ao fim da votação, foi perguntado pelo Presidente ao juiz Tatting se após tudo exposto, ele gostaria de rever sua posição, mas o juiz manteve sua posição inicial. Ao final, com o empate apresentado na decisão, a sentença inicial foi mantida, e os réus foram sentenciados a morte.
Resta cientificamente comprovado que a sobrevivência de todos os réus só foi possível porque tiraram a vida de outrem. Diante disso, é impossível não questionar as premissas básicas que se baseiam nossa ordem legal e até mesmo os princípios humanos mais basilares.
Em um sentido físico, é possível imaginar que a prisão dos exploradores debaixo da terra estava separada da jurisdição humana por camadas espessas de pedras, o que os colocou no que o autor denominou de ‘estado de natureza”, vigorando ali, o regramento por eles criado e não o que os levou à forca.
Em contrapartida, impossível esquecer das dez pessoas que morreram para que apenas quatro sobrevivessem. Esse fato induz à uma profunda e triste ponderação sobre cada viaduto, ponte ou grande obra construída ao longo dos anos, que ao mesmo tempo que tanto progresso nos trazem, significam muitas vezes o sacrifício de vidas humanas.
A própria mineração que é uma atividade de suma importância em algumas regiões já levou centenas de vidas, sendo que muitas ainda estão soterradas.
Essa reflexão nos coloca em uma posição desconfortável. Veja que todo o progresso que tanto ostentamos foi baseado em vidas humanas esquecidas pelo tempo. Vidas, em geral, de pessoas humildes, trabalhadoras braçais cujo labor dependemos tanto. É preciso uma melhor compreensão da acerca da capacidade hermenêutica dos julgadores, eis que elastecer a lei e aplicá-la ao caso concreto, considerando cada peculiaridade que o faz único, é indispensável, afinal por detrás de cada peça processual há vidas humanas envolvidas.