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Emendas “pix” e o dilema do controle

O problema do controle das emendas pix é um só: a ausência de um marco legal regulatório sólido. Isso pode ser realizado por normas infraconstitucionais federais, estaduais e municipais.

3/10/2023

Segundo notícias veiculadas na mídia, Estados e prefeituras “contrariam TCU e ocultam gastos de R$ 5,4 bi em emendas Pix”. No caso, gestores públicos beneficiados com indicações de parlamentares teriam prestado contas de apenas 6% dos recursos transferidos de 2020 a 20221. O TCU é o órgão de fiscalização competente para receber as contas das transferências especiais (vulgo emendas pix) no caso? O que fazer para aprimorar o grau de accountability?

Quem é titular e quem controla os recursos das transferências especiais?

Segundo o §2º, II, do artigo 166-A da Constituição, os recursos objeto da transferência especial “pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira”. Cuida-se do principal aspecto da modalidade de transferência introduzida pela EC 105/19, porquanto a titularidade da receita impacta diretamente na competência fiscalizatória.

Segundo os incisos II e VI do artigo 71 da Constituição, compete ao TCU respectivamente “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos” que integram o erário federal e “fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município”.

Percebe-se que os recursos das transferências especiais escapam o controle do TCU não somente em razão da ausência de obrigatoriedade de “convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres” (inciso I do §2º do artigo 166-A), mas igualmente porque tais valores passam a integrar o erário do ente local beneficiário a partir da efetivação da transferência (inciso II do §2º do artigo 166-A). No caso, a competência fiscalizatória seria repassada aos Tribunais de Contas Estaduais e Municipais (onde houver) responsáveis.

Uma pergunta é necessária: Somente há troca de titularidade das verbas nas transferências especiais? Não. Transferências voluntárias também importam em mudança de titularidade, ao menos no que diz respeito ao objeto resultante da programação orçamentária. O que ocorre, portanto, é um diferimento da titularidade das verbas e um regime diferenciado de controle.

No caso das transferências especiais, a mudança de titularidade ocorre concomitantemente ao ato de efetiva transferência financeira aos entes federados. A transferência dominial é dos recursos, e não dos bens ou serviços resultantes. No caso das transferências decorrentes de convênios (transferências voluntárias), a mudança da titularidade ocorre a partir da conclusão do acordo pactuado e da respectiva aprovação das contas, com a entrega de bem ou serviço ao governo local conforme ajuste celebrado.

Trata-se de distinção importante, porquanto caso haja sobra de saldo financeiro na conta do convênio ao final de uma obra, esses valores devem ser retornados ao órgão concedente, com reajuste monetário, nos termos do convênio e no prazo estabelecido para a apresentação da prestação de contas2.

Há outras consequências dessa transferência de titularidade que influenciam na atuação judicial do Ministério Público Federal e da União. Nos casos de desvios e má utilização dos recursos repassados, a titularidade destas verbas reflete na legitimidade ativa para ajuizamento das ações judiciais de ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa. Esse reflexo é de visualização mais fácil no caso das transferências especiais, cujos recursos mudam de titularidade a partir da efetiva transferência financeira, sendo o ente beneficiário o exclusivo legitimado para ajuizamento de ação judicial de ressarcimento e de improbidade administrativa.

No caso das transferências voluntárias (e as de finalidade definida), a análise do dano ao erário exige análise detalhada do acordo ou ajuste de cooperação objeto do repasse (contrapartida, obrigações, deveres, domínio dos bens e serviços etc.). O interesse processual do Ministério Público Federal e da União é mais fácil visualização nesses casos. Os órgãos dos entes subnacionais teriam um ônus argumentativo maior comprovar um dano ao erário passível de legitimar a sua atuação no feito (como a previsão de uma contrapartida financeira, por exemplo).

Em suma, a natureza do recurso determina quem fiscaliza sua aplicação. Recursos da União (federais) são fiscalizados pelo TCU e pelos órgãos de controle interno federais, independente de quem esteja gerindo ou aplicando tais recursos. A mesma lógica é aplicável à fiscalização dos recursos estaduais, municipais e do Distrito Federal, cuja competência é das respectivas instâncias de controle (Ministério Público e órgãos da Justiça) que terão competência para julgar feitos relacionados ao emprego desses recursos financeiros (ex: ações de improbidade administrativa, ações civis públicas, ações populares etc.).

Uma possível conclusão seria de que a titularidade aqui tratada importa apenas para fins de controle, havendo sempre uma transferência dominial, qualquer que seja a modalidade das transferências.

O que o TCU entendeu a respeito?

O Tribunal de Contas da União abordou teses específicas sobre as transferências especiais em duas oportunidades: no Acórdão do plenário 518/23 (TC 032.080/21-2) e no Acórdão do plenário 1758/23 (TC 045.470/21-9). Entre erros e acertos, o TCU se julgou competente somente para fiscalizar as condicionantes constitucionais das transferências especiais (§§1º e 5º do artigo 166-A da CF), fazendo diversas ponderações. Algumas, inclusive, sem previsão constitucional no artigo 166-A da Constituição.

Onde o TCU errou?

No Acórdão 518/23 (TC 032.080/21-2), o TCU julgou a seguinte tese:

9.2.1. a fiscalização sobre a regularidade das despesas efetuadas na aplicação de recursos obtidos por meio de transferência especial pelo ente federado é de competência do sistema de controle local, incluindo o respectivo tribunal de contas, desde a promulgação da Emenda Constitucional 105, de 12 de dezembro de 2019

9.2.2. a fiscalização sobre o cumprimento, pelo ente beneficiário da transferência especial, das condicionantes que a legitimam, previstas no art. 166-A, § 1º, incisos I e II, § 2º, inciso III, e § 5º, é de competência federal, incluindo o TCU;

9.2.3. a comprovação do cumprimento das condicionantes constitucionais será feita pelo ente federado por meio de informações e documentos inseridos na Plataforma +Brasil (ou no Transferegov.br), na forma e nos prazos disciplinados em instrução normativa a ser editada pelo TCU, dispensada a prestação de contas para esse fim específico e reservadas as competências próprias dos tribunais de contas locais na fiscalização sobre a aplicação dos recursos;

9.2.4. se for verificado o descumprimento de qualquer condicionante, tornando inválida a transferência especial, ou a omissão no dever de disponibilizar os elementos necessários à sua verificação, o TCU poderá instaurar processo de tomada de contas especial, com vistas à responsabilização do ente federado pelo débito decorrente do desvio para finalidade irregular ou da não comprovação da regularidade, a ser recolhido aos cofres da União, bem como para eventual aplicação de sanções ao gestor que praticou o ato infringente, comissivo ou omissivo;

Denota-se que, no item 9.2.4 do dispositivo do julgado, o TCU não somente se julgou competente para sancionar o gestor público local infrator (artigo 71, VIII, da CF), como também se julgou competente para invalidar a transferência especial, responsabilizando o “ente federado pelo débito decorrente do desvio para finalidade irregular ou da não comprovação da regularidade”. Em tese, isso daria ao Tribunal de Contas da União a competência para invalidar a decisão do parlamentar em sede de emenda individual de execução obrigatória, tornando sem efeito a mudança de titularidade das verbas.

Pode o TCU invalidar a decisão do parlamentar, em sede de emenda individual, por descumprimento das condicionantes constitucionais da transferência especial?

Essa interpretação esvaziaria o expresso texto do artigo 166-A da Constituição. Isso porque, na prática, a mudança de titularidade vem antes da execução da despesa. Consequentemente, a eventual invalidação da despesa pelo TCU afetaria o ato anterior da operação – a indicação do beneficiário pelo parlamentar.

Ressalta-se que uma questão é defender que a despesa é irregular e responsabilizar o gestor local. Outra questão totalmente distinta é invalidar a decisão do parlamentar, tornando sem efeito a mudança de titularidade das verbas. Na primeira, responsabiliza-se pessoalmente o gestor. Na segunda hipótese, responsabiliza-se a pessoa jurídica, que consequentemente será obrigada a ressarcir o valor repassado por emenda. Em verdade, a transferência especial torna-se ato jurídico perfeito a partir da efetiva tradição dos recursos, quando há a mudança de titularidade.

A partir da mudança de titularidade, a competência fiscalizatória para sancionar passa a ser do tribunal de contas local competente. Discutível ainda a prerrogativa do TCU para invalidar uma decisão legislativa (uma norma orçamentária) pela inconstitucionalidade de atos do gestor local recipiente das verbas. Isso porque: (1) afronta o posicionamento do Supremo Tribunal Federal segundo o qual o Tribunal de Contas da União não pode afastar incidência de norma sob o fundamento de exercer o controle de constitucionalidade3; (2) dentro de uma premissa básica de direito sancionatório, não há nexo de causalidade entre o ato invalidado (decisão do parlamentar que indica o beneficiário) e o ato infrator (descumprimento de condicionalidades pelo gestor local); (3) a apreciação do controle pelo TCU se daria sobre verbas de titularidade de entes subnacionais após o ato jurídico perfeito; (4) impossibilidade operacional de cisão entre o controle das condicionalidades do artigo 166-A, de um lado, e a regularidade geral da execução orçamentária dessas verbas do outro, podendo haver conflito de interpretações entre diferentes cortes de contas.

Onde o TCU acertou? A questão dos gargalos

Não se ignoram os esforços do Tribunal de Contas da União para aumentar o nível de governança, transparência e controle social sobre os valores provenientes de transferências especiais, dificultando gastos indevidos e desvios. O Tribunal de Contas da União, pela forma que estrutura seus julgados, percebeu diversos gargalos na sistemática das transferências especiais: (I) falta de transparência; (II) ausência de integração interfederativa entre órgãos de controle em uma operação financeira intergovernamental; e (III) dificuldades na responsabilização e acountability no desrespeito às condicionantes.

No Acórdão do plenário 1758/23, processo TC 045.470/21-9, oriundo de consulta, o TCU complementou o entendimento anterior (Acórdão 518/23) da seguinte maneira: (a) tornar obrigatória por lei a divulgação, em plataforma centralizada de acesso geral, de informações e documentos relativos às despesas com a aplicação dos recursos e ao cumprimento das respectivas condicionantes, em tempo real (art. 48, § 1º, II, da LRF) ; e (b) recomendação ao Congresso de instituir autorização legal para que órgãos federais de controle (TCU e CGU) possam atuar em colaboração com os órgãos de controle dos entes subnacionais, especificamente, no que se refere à fiscalização das despesas com a aplicação dos recursos, para o fim de comunicá-los sobre indícios de irregularidade encontrados, preservando suas competências para julgamento.

Em relação à falta de transparência (I), é imprescindível a divulgação obrigatória, em plataforma centralizada de acesso geral, de informações e documentos relativos às despesas com a aplicação dos recursos (item 9.1.3.1). Não há como defender uma discricionariedade que vai contra os deveres de transparência e moralidade administrativa. Deve-se fazer uma interpretação sistemática entre o artigo 166-A da Constituição e o artigo 163-A, no sentido de que as transferências especiais não escapam dos deveres de transparência e de submissão ao controle social, devidamente assegurados em plataforma pública de dados orçamentários de amplo acesso.

Há ainda a ausência de integração interfederativa entre órgãos de controle (II). Acerta o Tribunal de Contas da União no tocante à autorização legal para que órgãos federais de controle possam atuar em colaboração com os órgãos de controle dos entes subnacionais (item 9.1.3.1), sem que haja relação de hierarquia e controle. Entes subnacionais podem aprender e aumentar suas capacidades estatais pela troca de experiências e colaboração com o órgão federal.

Em adição a esse último entendimento do TCU, sugerem-se ainda duas medidas para mitigar as dificuldades na responsabilização e acountability (III) no desrespeito às condicionantes: (III.1) previsão de impedimento de recebimento de novos repasses por entes que não cumprem as condicionantes do artigo 166-A, incluindo as transferências especiais, a partir da comunicação dos órgãos federais de controle; e (III.2) estabelecimento de regras de boa governança orçamentária para a gestão e contabilização dos recursos de emendas pix, a exemplo do Mato Grosso do Sul4.

O problema do controle das emendas pix é um só: a ausência de um marco legal regulatório sólido. Isso pode ser realizado por normas infraconstitucionais federais, estaduais e municipais.

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1 O GLOBO. Estados e prefeituras contrariam TCU e ocultam gastos de R$ 5,4 bi em emendas Pix. https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/09/25/estados-e-prefeituras-contrariam-tcu-e-ocultam-gastos-de-r-54-bi-em-emendas-pix.ghtml notícia de 25/09/2023 03h56

2 OLKOWSKI, Gustavo Ferreira. Planejamento da Licitação de Obras Públicas de Edificação e Saneamento. 1.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 29.

3 Posição do Supremo Tribunal quando do julgamento dos Mandados de Segurança (MS) 35410, 35490, 35494, 35498, 35500, 35836, 35812 e 35824.

4 Decreto estadual 16.023/22. Dispõe sobre a transferência de recursos especiais a Estados prevista no art. 166-A da Constituição Federal, e dá outras providências.. Link: aacpdappls.net.ms.gov.br/appls/legislacao/secoge/govato.nsf/1b758e65922af3e904256b220050342a/715593dbfd51944c042588cc0043082d.

Texto baseado no seguinte artigo: MASCARENHAS, Caio Gama. Orçamento impositivo e as transferências do artigo 166-A da Constituição: notas sobre regime jurídico, accountability e corrupção. Revista Eletrônica Da PGE-RJ, 6(1), 2023. https://doi.org/10.46818/pge.v6i1.340

Caio Gama Mascarenhas
Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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