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Sobre a fixação da “tese” na repercussão geral

Quando, se redige uma tese para espelhar aquilo que foi decidido no caso concreto, não se estará praticando inconstitucionalidade alguma! Ao contrário disso, se estará aplicando, com sabedoria, um sistema (que é o de precedentes vinculantes, criado pelo CPC de 2015) que tem a potencialidade de gerar coesão e harmonia do direito, isonomia de tratamento a todos os jurisdicionados, numa palavra: segurança jurídica.

4/10/2023

No último dia 27 de setembro deste ano, houve interessante discussão no STF a respeito de como devem ser redigidas as teses, que são formuladas depois de um recurso extraordinário, submetido à sistemática da repercussão geral, ser julgado. A discussão e tomada de decisão, se deram no âmbito do julgamento do tema 1.031 da repercussão geral (RE 1.017.365, Rel. Min. Edson Fachin).

Os debates ficaram em torno de se saber se as teses deveriam ser sintéticas ou analíticas, ou seja, se deveriam ser curtas ou mais abrangentes. Os Ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes se inclinaram abertamente pela opção por uma tese analítica, enquanto que os Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, inicialmente, por uma tese sintética. Em verdade, a tese proposta pelo Ministro Barroso era ainda mais restrita, em comparação à proposta do Ministro relator, Edson Fachin, chegando a ser qualificada como “ultra-sintética”, em determinado momento dos debates.

Mas, para além da questão estrutural, relativa ao tamanho e estilo da tese, se sintética ou analítica, a nosso ver, o que importa mesmo é se ela reflete aquilo que foi decidido, se ela não está nem aquém e nem além daquilo que foi decidido, que não pode ser diferente daquilo que foi pedido e daquilo que foi discutido.

Se as coisas se passarem de modo diferente, principalmente se acontecer de as teses desbordarem os limites das discussões que houve no processo, não se estará respeitando o princípio do contraditório e o Supremo Tribunal Federal não estará exercendo a sua função. Isso porque, as teses não podem, pura e simplesmente, avançar sobre temas que não fizeram parte de pedido e a respeito do qual não houve o mais pleno e exauriente contraditório.

Este é o perigo de se fazer a afirmação no sentido de que os Tribunais Superiores são tribunais de teses! De rigor, os Tribunais Superiores decidem casos. E, desses casos, nasce uma tese! Mas esta tese não é o verdadeiro objeto de decisão do tribunal. Assim como não se confunde com o precedente. O verdadeiro objeto de decisão do tribunal é o caso, e é a decisão do caso que deve constar da tese.

Essa é uma regra que se aplica a todo o processo civil brasileiro. Juízes decidem casos! É claro que é diferente a carga normativa de uma decisão do STF tomada no regime da repercussão geral, de uma decisão de um juiz de 1.º grau, porque se está, no caso do STF, diante de um precedente vinculante. Isso significa que, embora se trate de uma decisão que resolva um caso concreto, esta mesma decisão é revestida de um caráter normativo equivalente ao da lei: por isso a conveniência de se redigirem teses.

 Mas, há uma diferença fundamental entre teses e textos legislativos: textos legislativos são abstratos e teses são enunciados normativos necessariamente vinculados a um caso concreto, que terá sido anteriormente julgado.

Assim, ainda que se entenda que a tese fixada no precedente qualificado é norma jurídica, é fundamental que se tenha em mente que esta não consiste em norma geral e abstrata, fruto da vontade política, mas sim, em norma produzida à luz de um caso individual e concreto.

Afinal, a produção de normas gerais e abstratas a partir da expressão da vontade política é tarefa do Poder Legislativo. A função do Judiciário é aplicar essas normas gerais e abstratas aos casos individuais e concretos, sendo certo que, para tanto, o Judiciário estabelece conclusões acerca da interpretação, do alcance e da aplicação dessas normas gerais na fundamentação da decisão.

Essas conclusões acerca das normas gerais e abstratas, a que terá chegado o órgão julgador e que constam da fundamentação do julgado individual e concreto, ao contrário do dispositivo da decisão, têm uma dimensão “geral” ou, mais precisamente, ensejam a possibilidade de que delas seja extraída a ratio da decisão, tendo esta última a característica de ser generalizável, e, por via de consequência, de ser aplicada a outros casos concretos, análogos.

Entretanto, ao contrário das normas gerais e abstratas produzidas pelo Legislativo, em que os fatores (políticos) levados em consideração para a tomada de decisão se descolam da norma ao final produzida, a norma do precedente permanece ligada de uma maneira indissociável aos fatos do caso concreto submetido à apreciação.

Essa necessidade de se limitar aquilo que deve constar da tese, aos pontos e questões objeto do pedido e da decisão (i.e., do mérito do recurso), também se justifica, como mencionamos, à luz do relevantíssimo princípio do contraditório, uma vez que, os objetos da decisão, de cuja análise deriva o enunciado normativo constante da tese, têm de ter sido efetivamente discutidos no processo e têm de constar da fundamentação e conclusão da decisão.

Isso porque, a adstrição do juiz ao pedido ou, mais amplamente, a inércia jurisdicional que limita a atuação do juiz  aos limites criados pela provocação das partes, garante, a um só tempo, a preservação da imparcialidade do magistrado, que não pode conhecer e julgar questões “por ele mesmo inseridas no processo”, bem como garante aos interessados a observância de seu direito ao contraditório, dado que estes podem ter a certeza de que o pronunciamento jurisdicional que será exarado versará apenas exatamente sobre aquilo que discutiram no curso do processo.

No procedimento de formação da convicção do magistrado, o contraditório funciona como uma ferramenta de otimização do procedimento e de aperfeiçoamento do precedente qualificado, atuando de forma preventiva e anterior à consagração do entendimento, permitindo que à luz de um debate ampliado, o órgão jurisdicional tenha a visão mais aberta e completa possível do objeto do litígio. A legitimidade do precedente e sua autoridade vinculante está diretamente ligada à maximização do contraditório no procedimento de formação.

Sobre o contraditório nas diversas técnicas de formação de súmula vinculante ou precedentes qualificados, ressaltando a importância da participação de amicus curiae como sujeito legitimado, a doutrina1faz alusão ao “contraditório institucionalizado” para demonstrar que “na vinculação das decisões judiciais aos precedentes que versam sobre a mesma questão fático-jurídica, mais do que nunca, torna-se necessário ao juiz aproximar-se do fato social para bem decidir, decidi-lo como um todo e não como uma parte, dissociada de seu contexto mais amplo”.

Seria contrária à ideia de vedação à decisão surpresa qualquer alteração ou acréscimo de decisões a respeito de questões não controvertidas, por que não constantes da decisão de afetação (ou instauração do incidente), quando do julgamento de mérito e fixação da tese. Isto porque, nesta situação, sujeitos não relacionados à questão afetada e, por isso, “desinteressados” no julgamento de mérito (não participantes), poderão, ao fim, indevidamente, ser atingidos pelo entendimento consagrado.

A amplitude do contraditório deve refletir-se na motivação do precedente qualificado, que deve abranger integralmente os argumentos existentes em torno da controvérsia objeto de julgamento.

Trata-se de uma conclusão decorrente de uma das perspectivas do contraditório, qual seja, a garantia de que o magistrado exerça adequadamente seu dever de considerar, para decidir, os argumentos e os elementos trazidos pelas partes e terceiros, pois de nada adiantaria dar-se ciência e oportunidades de manifestação aos sujeitos do processo, se o juiz não estivesse, correlatamente, obrigado a considerar o material produzido por elas.  

É assim que se chega a uma decisão judicial suficiente e corretamente motivada. E é a partir deste universo que a tese jurídica deve ser concebida.

As teses, de que deve constar uma espécie de resumo daquilo que foi decidido no caso concreto, podem-se aplicar de forma quase automática a casos idênticos. Mas nunca a um caso análogo. A formulação da tese não dispensa aquele juiz que pretende fazer uso do precedente como base da sua decisão, de ler o acórdão que deu origem à tese para investigar sobre sua ratio. Esta é, sem dúvida, a função do juiz que vai usar o precedente, que é vinculante, em caso que tenha que julgar, posteriormente.

Por serem fenômenos conceitualmente distintos, a ‘tese jurídica’ e a ratio decidendi têm funcionalidades diversas no sistema processual. A ratio ganha relevância quando se trata de resolver casos que não são absolutamente iguais àquele que deu origem ao precedente.

Pode dela constar um resumo da parte decisória do acórdão e, também, entretanto, dependendo da situação submetida à análise, da técnica decisória adotada pelo tribunal, e até da técnica redacional eleita, também a fundamentação. Neste último caso, dela constará a síntese do fundamento (“tese-síntese”) e a representação da solução da questão controvertida submetida ao julgamento (“tese-solução”).

A tese-síntese da fundamentação e da conclusão, de que pode ser extraída a ratio decidendi, deve trazer, em si mesma, de forma resumida, as razões que levaram à Corte, formadora do precedente, a decidir, ou seja, sintetizar seus fundamentos determinantes, espelhando a essência da motivação.

Esta parece ser a proposta do Ministro Luís Roberto Barroso que, em texto publicado em coautoria com Patrícia Perrone, observa:

o segundo autor deste trabalho tem defendido – e já vem prevalecendo no STF – a ideia de que ao final de todo julgamento seja fixada a tese jurídica em que se fundamenta a decisão. No caso da repercussão geral, trata-se de exigência legal (CPC, art. 1.035, § 11). Mas a providência se impõe, também, nos demais casos. Isto porque, como assinalado, o que vincula efetivamente os demais juízos e tribunais é a ratio decidendi. Daí ser imprescindível que ela, como tese de julgamento, fique inequívoca para quem tenha de aplicá-la aos demais casos2.

Ao estabelecer a tese jurídica, o tribunal define, desde logo, a hipótese de incidência da ratio decidendi, delimitando a zona de certeza positiva das situações fático-jurídicas que estão abrangidas pela regra criada pelo precedente3.

Não se descarta tampouco a possibilidade de a tese jurídica desempenhar apenas o papel de síntese da “solução do tema controvertido”, sem necessariamente conter os fundamentos.    

Nestes casos, a tese se deve estruturar como uma regra jurídica (com hipótese de incidência e consequência prescrita na norma) sem, necessariamente, resumir as razões (fundamentos) da solução. Essa concepção permite que a ‘tese jurídica’ cumpra seu principal “objetivo” no sistema de precedentes: ser aplicada, objetivamente, a todos os feitos envolvendo a mesma questão jurídica, que sejam exatamente idênticos, possivelmente suspensos desde a afetação do tema. Normalmente, questões ligadas à litigiosidade de massa.

 Entretanto, é evidentemente, mesmo neste contexto, os deveres de adstrição ao caso concreto, contraditório e fundamentação devem ser observados e influem nos limites da formulação da tese.

Cabe ao STF, na sua função de criar precedentes vinculantes orientar não só as decisões dos demais órgãos do Poder Judiciário brasileiro, mas também a conduta do próprio jurisdicionado. Preencher a tese com a fundamentação do caso e com a decisão propriamente dita ou optar por sintetizar apenas a solução da questão submetida, são opções possíveis.

Mas, em qualquer caso, o ponto central é a impossibilidade de se inserir na tese a resolução de questões que não foram objeto de discussão.

Em essência, a fundamentação, de que se pode extrair a ratio decidendi, consiste nas razões jurídicas essenciais, afirmadas na decisão como motivo para assim se decidir, considerando o caso apreciado e levando-se em conta também os fatos tidos pelo órgão julgador como determinantes para a tomada de decisão.

Quando se coloca na tese a fundamentação, tem-se uma luz para que se possa chegar até a ratio decidendi.  Esta deve ser compreendida como um pronunciamento do juiz sobre o direito4, o que leva à necessidade de se compreendê-la à luz dos fatos relevantes, razões jurídicas invocadas no precedente e resultado do julgamento5.

Estas “razões jurídicas” mencionadas acima podem tomar forma de: i) princípio jurídico concretizado pelo tribunal à luz do caso concreto; ii) regra formulada pelo órgão julgador; iii) conclusão acerca do sentido e do alcance de uma norma jurídica à luz dos fatos apreciados, e; iv) qualquer outra afirmação sobre o direito considerada pelo órgão julgador no julgamento do caso concreto. E estes aspectos, desde que presentes no caso apreciado, submetidos ao contraditório e efetiva e motivadamente decididos pela Corte podem ser sintetizados na tese.

As decisões do STF são, de regra, precedentes vinculantes, cujo pressuposto procedimental, para que sejam atendidos valores constitucionais, é o de que haja contraditório pleno com a própria por ser sociedade, por meio da participação de amici curiae e da realização de audiências públicas. Se não houver delimitação prévia do que será julgado e, portanto, do que será decidido e do que deverá constar da tese, essas garantias se esvaziam integralmente. Daí a relevância da adstrição.

 A ratio, proposição mais abstrata e generalizável, nem sempre pode ser liofilizada, pasteurizada, a ponto de caber num enunciado curto que tem a função de tornar o sistema de precedentes mais operativo. Digamos que a ratio consta da tese, como se estivesse “embutida” na fundamentação. Nesta medida, pode ser “devisada”.

Razão assiste ao Ministro Barroso, atual presidente da Corte, que insistiu, na sua manifestação, em que esta vinculação – caso concreto e tese – deve necessariamente prevalecer, pois, do contrário, o STF estaria legislando, agindo fora dos limites constitucionais estabelecidos para a sua função. Em certa medida, mesmo propondo uma tese mais sintética e sendo quanto ao ponto vencido na primeira parte do julgamento, a essência da manifestação do atual Presidente da Suprema Corte prevaleceu, o que demonstra o acerto do afirmado na introdução deste artigo, no sentido de que para além da questão estrutural, relativa ao formato da tese, se sintética ou analítica, é importante que constem da mesma apenas questões que efetivamente integrem o caso e tenham sido efetivamente discutidas.

Tanto é assim, que a proposta de tese analítica foi incorporada pelo relator Ministro Edson Fachin, nada obstante este também ter proposto, inicialmente, uma tese sintética. Ao final, a tese analítica foi acolhida a unanimidade pelo Plenário do STF.

Quando, se redige uma tese para espelhar aquilo que foi decidido no caso concreto, não se estará praticando inconstitucionalidade alguma! Ao contrário disso, se estará aplicando, com sabedoria, um sistema (que é o de precedentes vinculantes, criado pelo CPC de 2015) que tem a potencialidade de gerar coesão e harmonia do direito, isonomia de tratamento a todos os jurisdicionados, numa palavra: segurança jurídica.

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1 SANTOS, Welder Queiroz dos. Princípio do contraditório e vedação de decisão surpresa. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 155.

2 BARROSO, Luís Roberto; PERRONE, Patrícia. Trabalhando com uma nova lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf. Acesso em: 16 mar. 2021, p. 22.

3 ARRUDA ALVIM, Teresa; BARIONI, Rodrigo. Recursos repetitivos: tese jurídica e ratio decidendi. Revista de Processo, São Paulo, n. 296, 2019, p. 186.

4 ARRUDA ALVIM, Teresa. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Revista de Processo, São Paulo, n. 172, 2009, p. 132.

5 ZANETI JUNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes: o modelo garantista (MG) e a redução da discricionariedade judicial: uma teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes: Salvador: JusPodivm, 2015.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

Fábio Victor da Fonte Monnerat
Procurador Federal. Coordenador Geral de Tribunais Superiores da Procuradoria Geral Federal. Doutor e mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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