Em primeiro lugar, a portaria 848, editada pelo MINTRANS, datada de 25 de agosto de 2023, requer uma reflexão quanto ao seu efetivo escopo. Ela fixa referências expressas à estruturação de uma política pública – tanto nas suas considerações iniciais quanto, posteriormente, no decorrer de seu capítulo inicial. Longe de ser um tema apenas formal, ele impacta no papel exercido pela norma em questão, seja junto às concessionárias, em sentido mais imediato, ou perante todos os usuários, no contexto amplo.1
Na realidade, mais do que uma política com a aspiração de readaptar e otimizar os contratos de concessão – de forma abstrata ou genérica, como seria esperado, no primeiro momento –, a portaria estrutura parâmetros sensíveis. Os critérios e as exigências para a readequação e a otimização dos contratos, no âmbito do transporte rodoviário federal, são ilustrativos. No mesmo sentido, arrolam-se outros objetivos, pressupostos e instrumentos.
Na prática, procura-se viabilizar a remodelagem de contratos de concessão rodoviária que enfrentam dificuldades, destravando, assim, os tão necessários investimentos. É preciso considerar a recente decisão do TCU, que permitiu a “negociação” de contratos sem necessidade de relicitação de ativos.2 É manifesto como a portaria decorre do julgamento.
Sobre o termo negociação – empregado com frequência, ora referido entre aspas –, cabe aduzir uma segunda problematização. O vocábulo mais preciso, na realidade, seria transação administrativa. Ocorre que, o ato de negociar, típico do espaço privado, guarda sensível distância da esfera pública. Nela, as aspirações assumem uma perspectiva distinta, pautada, justamente, pelo interesse público, resultando, assim, em outro modo de manejar os temas.
Conforme aprofundado em estudo anterior,
Possibilita-se, assim, responder, objetivamente, que não há uma mera faculdade imposta ao administrador em promover o diálogo com os particulares. Faculdade é característica da “negociação” e essa, tecnicamente, não há no desempenho público. Em oposição, há um verdadeiro dever administrativo de prestar atenção às incertezas do parceiro privado, como forma de evitar que a tutela legítima do interesse público venha a se deteriorar pela evolução de problemas vislumbrados na relação vigente.
Não se trata de um interesse individual do agente público, de uma construção negociada pelo exercício da sua vontade, pois essa certamente resultaria em edição de decisões inválidas, arbitrárias e dissociadas, não só do regime próprio das contratações públicas, como de todo o regime jurídico-administrativo. Se ficasse ao crivo do administrador escolher e negociar com quem lhe aprouver, aqueles que, eventualmente, gozam de sua simpatia, teriam seus contratos “negociados”, enquanto o Estado, capturado, autoconsumir-se-ia em benefício de poucos.
Dessa forma, em vez da expressão “negociação”, que tecnicamente deve manter-se restrita ao campo privado, nas relações contratuais públicas, o caminho é a dialogia, ou seja, a consensualidade administrativa a ser concretizada por meio do instituto da “transação administrativa”, construída pelas partes em prol do atendimento de interesses convergentes, de forma a conjugar esforços para a obtenção de decisões administrativas justas durante a execução do contrato, em plena satisfação aos valores consagrados no Texto Constitucional e aos imperativos que ensejaram a celebração do ajuste.3
À luz dos interesses presentes, bem como da forte repercussão social atrelada a eles, verifica-se um distanciamento daquilo que é referido como negociação não apenas na acepção mais coloquial, mas também, muito mais, na própria maneira com que ela se desenvolve, com frequência, entre dois particulares, por exemplo.
O instrumento estrutura-se em quatro pilares complementares. Em primeiro plano, enuncia os objetivos da “política pública” em questão; na sequência, trata das suas premissas; depois, da admissibilidade dos estudos de concessão e da avaliação; e, por fim, prescreve suas disposições finais. Tem uma estrutura concisa, perceptivelmente, como demonstram seus 17 artigos. Vejamos os principais aspectos pertinentes, considerando, além disso, sua vigência por prazo determinado, de 1º de setembro a 31 de dezembro.
De início, a portaria busca fundamento na defesa do interesse público. Tenta conciliar as viabilidades técnica, econômica e jurídica. Homenageia, ainda, a manutenção da modicidade tarifária.4 Quanto ao último parâmetro, cabe recordar: a falta de proporcionalidade pode resultar na sua inconstitucionalidade, uma vez que a cobrança não pode comprometer o exercício de direitos fundamentais, como as atividades administrativas que se encontram concretizadas por meio dos aludidos contratos concessórios.
Na sequência, recorda-se que a tomada de decisão para celebrar um aditivo deve restar fundamentada em estudos consistentes.5 Para tanto, fixam-se doze requisitos, entre os quais, a renúncia a quaisquer processos judiciais, administrativos e arbitrais; o compromisso em incrementar a qualidade rodoviária; a limitação da prorrogação contratual por, no máximo, quinze anos, bem como regras objetivas frente ao eventual descumprimento.6 Consideradas as peculiaridades presentes em cada um dos temas, constata-se a sua extraordinária relevância para o setor, visto que estimula a redução da litigância.
Com grande conveniência, enuncia-se o início imediato de execução das obras, antecipando-se, no mesmo sentido, o cronograma de execução.7 O esforço em dinamizar o setor de rodovias, dentro da maior brevidade possível, é manifesto. Em consonância com a modicidade tarifária, exige-se que o valor do pedágio seja inferior ao consignado em estudos preexistentes ou à média deles, o que representa um prodigioso desafio, haja vista o respectivo balanço econômico-financeiro embutido nas relações concessórias.
O período de transição de, no mínimo, três anos, objetiva garantir a execução das obras e de serviços com qualidade e fluidez nas rodovias. Durante a fase, vedam-se a distribuição de dividendos para acionistas e a transferência de controle acionário.8 A disposição encontra fundamento no princípio da continuidade da atividade de infraestrutura, que é um corolário da indisponibilidade do interesse público e ocupa uma posição central no regime jurídico-administrativo.
Sem surpresas, o processo de fiscalização é incumbido à ANTT, de modo trimestral, com o auxílio de fiscalizadores independentes. Prefere-se que sejam contratados pela Infra S.A., empresa pública federal voltada ao planejamento e à consolidação de projetos de infraestrutura, como a nomenclatura antecipa, em parte.9 A Infra S.A. participa também da admissibilidade ao verificar a presença das premissas elencadas na Portaria. Os documentos serão reportados, ainda, ao MINTRANS, competindo-lhe manifestar-se sobre o mesmo assunto.10
O descumprimento do cronograma pode ensejar a extinção automática do termo aditivo, o retorno do contrato às condições originais ou a instauração automática do processo de caducidade.11 Sobre a avaliação, em si, ela recai perante a ANTT, com participação da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos do TCU.12
É importante registrar como a Portaria faz referência, reiteradamente, à expressão infraestrutura – e não ao conceito de serviço público rodoviário – ao tratar da atividade objeto de delegação concessionária. É uma escolha tecnicamente correta. Ela remete a uma distinção fundamental para o tratamento científico da infraestrutura. Conforme defendido, “com a atividade de serviços públicos, a atividade de infraestrutura também não se confunde.”13 Ocorre que, “a prestação de serviços públicos impõe a ocorrência de relações jurídicas concretas entre o Estado e o usuário do serviço.”14 E, ainda, “essa relação jurídica concreta tem um traço fundamental: o oferecimento, por parte da Administração, de um benefício pessoal (específico) a ser usufruído pelo particular devidamente identificável e suscetível de quantificação individual (divisível).”15 Os elementos realmente não são iguais. Há uma evolução no reconhecimento.
Como pode ser percebido, o procedimento perpassa por fases de admissibilidade e de avaliação. Seu descumprimento enseja consequências expressivas. Fornecem-se incentivos, mas eles permanecem condicionados a um conjunto de requisitos técnicos consistentes. O termo aditivo permite que contratos com problemas de adequação financeira sejam remodelados. O prazo de vigência da Portaria é exíguo. Já existem registros de empresas que celebraram termo aditivo com fundamento na norma.
Hoje, é preciso repensar os modelos de contratação. É necessário que tenham maior dinamismo para atender às demandas atuais de investimentos, que estão sempre sujeitas a alterações. É urgente uma nova estrutura de concessões – e o instrumento analisado faz parte desse esforço. Urge evitar a judicialização e o rompimento de promessas e expectativas entre todas as partes, que apenas atrasam os investimentos no setor.
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1 Os procedimentos de formulação e estruturação de políticas públicas são complexos. Em regra, eles podem ser sistematizados nas fases de identificação do problema, formulação das primeiras propostas, tomada de decisões, alocação de recursos, implementação e, por fim, monitoramento para fins de ajustes complementares e revisões. O enquadramento jurídico expressa as regras com que elas podem operar com legitimidade e, principalmente, continuidade. O processo perpassa a Constituição e as leis fundamentais regentes da matéria. Sem surpresas, encontra desdobramento naquelas regras de maior especialidade técnica, como portarias e resoluções.
2 Conforme acórdão 1.593/23, Plenário, de 2 de agosto de 2023, do Tribunal de Contas da União.
3 DAL POZZO, Augusto Neves; GALIL, João Victor Tavares. Administração Pública Consensual e o Novel Instituto da Transação Administrativa: Consensual Public Administration and the Novel Administrative Transaction Institute. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI, São Paulo, Thomson Reuters, Livraria RT, v. 7, n. 24, p. 162, 2023. DOI: 10.48143/rdai.24.dalpozzo. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/rdai24dalpozzo. Acesso em: 12 set. 2023.
4 Conforme artigo 1º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
5 Conforme artigo 2º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
6 Conforme artigo 3º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
7 Conforme artigo 3º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
8 Conforme artigo 4º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
9 Conforme artigo 5º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
10 Conforme artigos 8º, 9º e 10 da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
11 Conforme artigo 6º da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
12 Conforme artigo 12 da portaria 848, de 25 de agosto de 2023.
13 DAL POZZO, Augusto Neves. Direito da Infraestrutura. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 77.
14 Ibidem.
15 DAL POZZO, Augusto Neves. Op. cit., p. 77-78.