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O dever de análise do CADE sobre o impacto nos empregos e a participação dos sindicatos nos atos de concentração

É inegável, nessa senda, que o notável julgado proferido pelo TRT da 15ª Região, a partir de provocação do MPT, enuncia essa nova e alvissareira perspectiva, em perfeito alinhamento à Constituição Cidadã de 1988.

28/9/2023

Em 6 de julho de 2023, o TRT da 15ª Região realizou julgamento emblemático, que põe em xeque o conservadorismo histórico do CADE em relação à sua competência para análise dos atos de concentração quanto ao impacto desses negócios às relações trabalhistas afetadas.

O recurso ordinário analisado no processo 0012149-49.2014.5.15.0081 tem origem em ação civil pública ajuizada pelo MPT contra a Autarquia concorrencial a fim de obrigá-la a examinar, além do impacto comercial das operações de fusão, sua repercussão sobre os direitos dos trabalhadores das empresas negociantes.

De acordo com o entendimento da 6ª Câmara do TRT da 15ª Região, a competência do CADE estabelecida no art. 1º da lei 12.529/11 é ampla e encampa a proteção da ordem econômica e social, orientada por diretrizes constitucionais, entre as quais se destacam “a função social da propriedade e a repressão ao abuso do poder econômico”.

Nesse contexto, o Tribunal Regional do Trabalho destacou que a Carta Magna é impositiva ao prever a proteção à ordem econômica, cujas diretrizes abrangem, expressamente, a justiça social e a valorização do trabalho humano (art. 170).

A decisão inova, por um lado, ao indicar que a interface com sindicatos deveria partir do próprio CADE, e confirma, por outro, o interesse dos sindicatos profissionais na colaboração com a análise de atos de concentração.

A jurisprudência da referida Autarquia registra a participação de sindicatos, como terceiros interessados, em atos de concentração. Para citaralguns exemplos, observamos os casos a) da venda da Refinaria de Manaus, pela Petrobras, ao Grupo Atem; b) da venda do controle da Log-In à MSC; e c) da compra do HSBC pelo Bradesco.

Em maio de 2022, o Sindicato dos Petroleiros do Amazonas (Sindipetro-AM) apresentou recurso, como terceiro interessado1, em face da decisão da Superintendência-Geral do CADE que aprovou a venda, sem restrições, da refinaria Isaac Sabbá (Reman) da Petrobras ao Grupo Atem. Em seu recurso, o Sindipetro-AM argumentou que a venda da Reman acarretaria a formação de monopólio privado de refino e distribuição de derivados de petróleo no Estado do Amazonas e na Região Norte do país. Ao final, o Sindicato se opôs à venda da Reman, mas não obteve sucesso.

Em novembro de 2021, o Sindicato Nacional das Empresas de Navegação de Apoio Portuário (Sindiporto) apresentou recurso de terceiro interessado no Ato de Concentração que analisava a aquisição do controle da Log-In Logística Intermodal S.A. pela MSC Mediterranean Shipping Company Holding S.A., por meio de sua subsidiária integral SAS Shipping Agencies Services SÀRL2. Para o Sindiporto, a operação representava um risco significativo de alavancagem do poder de mercado detido pela Log-In e pela MSC na navegação de cabotagem (e de longo curso) para o mercado de serviços de reboque marítimo portuário, também conhecido como apoio portuário. Além do recurso, o Sindiporto manifestou-se em resposta a Ofício enviado pelo CADE, no qual a autoridade pedia esclarecimentos acerca do mercado analisado na operação. A operação foi aprovada, sem restrições, em maio de 2022.

Em novembro de 2015, o Sindicato Bancários de Curitiba e Região apresentou recurso de terceiro interessado no ato de concentração que analisava a compra do HSBC pelo Bradesco3. Em seu recurso, o principal pleito do Sindicato foi no sentido de que a “manutenção de empregos” fosse levada em consideração quando da avaliação da eficiência da operação.

Em seu voto, porém, o Relator João Paulo Resende registrou que, embora considerasse essa uma preocupação legítima do Sindicato, tal pleito não configura uma preocupação concorrencial stricto sensu, não cabendo à autoridade antitruste rejeitar a presente operação única e exclusivamente em função dos efeitos no mercado de trabalho, nem mesmo exigir tal medida como condição necessária à aprovação da operação. Para o Relator, a preservação de empregos é um bem social que deve ser perseguido por políticas públicas específicas, e não pela autoridade de defesa da concorrência.

É assente na doutrina e na jurisprudência que a Constituição Cidadã de 1988 marca a decisão política pela proteção aos direitos sociais, associados harmonicamente aos direitos e liberdades individuais.

Nesse passo, a ordem econômica baseia-se não apenas na livre iniciativa e na livre concorrência, mas também em outros valores constitucionais igualmente essenciais, como o valor do trabalho, da defesa do consumidor e do meio ambiente, entre outros.

O desenvolvimento econômico, nessa perspectiva, deve ser colocado a serviço das escolhas políticas e jurídicas da sociedade, em particular aquelas explicitadas na lei maior. A livre iniciativa não pode servir de justificativa para atentados à ordem social. Antes, deve promovê-la, contribuindo para que se assegure a livre concorrência e o direito de propriedade, observada sua função social; para a defesa do consumidor e do meio ambiente; para a redução das desigualdades regionais e para a busca do pleno emprego. Nas palavras de Maurício Godinho Delgado, ao tratar do que intitula princípio da submissão da propriedade à sua função socioambiental, é inconstitucional a antítese “lucro versus pessoas”, de modo que “a livre inciativa e o lucro constitucionalmente reconhecidos – e, nessa medida, protegidos – são aqueles que agreguem valor aos seres humanos, à convivência e aos valores da sociedade, à higidez do meio ambiente em geral, inclusive o do trabalho”.

No acórdão proferido pelo TRT da 15ª Região, consignou-se que eventual dúvida exegética quanto à alçada de intervenção do CADE seria solucionada pela disposição do parágrafo único art. 1º da lei 12.529/11, segundo o qual a titularidade dos bens jurídicos protegidos nessa seara pertence à “coletividade”. Em outras palavras, embora a interpretação conferida pela Autarquia Federal seja tradicionalmente restritiva, a legislação aplicável lhe confere responsabilidade extensa de proteção ao interesse coletivo, em compatibilidade com os fundamentos constitucionais da livre iniciativa e da proteção do trabalho.

Em voto elucidativo, a relatora, desembargadora Maria da Graça Bonança Barbosa, registrou que a análise ampla do impacto dos atos de concentração sobre os campos concorrencial e trabalhista não contempla uma mera interpretação do dispositivo, mas uma imposição constitucional obrigatória decorrente da conciliação entre os fundamentos da livre iniciativa e da proteção ao trabalho.

Com efeito, não se pode considerar protegidos os valores da livre iniciativa e da preservação da concorrência justa sem contemplar igualmente a proteção às relações trabalhistas envolvidas nas negociações em questão, ainda mais quando o ato de concentração implicar possível demissão em massa de trabalhadores e trabalhadoras.

Com fundamento na harmonia principiológica das normas maiores, reconheceu-se que o exame indispensável da repercussão dos negócios de fusão sobre os contratos trabalhistas afetados deve ser, necessariamente, acompanhado pelas entidades sindicais vinculadas, a quem a CR assegura participação obrigatória “nas negociações coletivas de trabalho” (art. 8º, VI).

Nesse particular, convém mencionar que o reconhecimento dos sindicatos como agentes democráticos de proteção dos direitos dos trabalhadores em processos judiciais ou administrativos não constitui novidade na jurisprudência brasileira, embora o seja o reconhecimento explícito da responsabilidade do CADE quanto à inclusão das referidas entidades no escopo da análise de atos de concentração.

Cumpre ressaltar, aliás, que o STF, recentemente (8 de junho de 2022), ao julgar o RE 999.435/SP, reafirmou que os sindicatos têm função social reconhecida na Carta Magna, que não pode ser relativizada em prejuízo aos trabalhadores, fixando a tese, no Tema de repercussão geral nº 638, segundo a qual “[a] intervenção sindical prévia é exigência procedimental imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, que não se confunde com autorização prévia por parte da entidade sindical ou celebração de convenção ou acordo coletivo”.

É evidente que o aresto proferido pelo TRT da 15ª Região compatibiliza-se integralmente com a tese proclamada pela SCC no paradigma mencionado, além de contemplar os ditames constitucionais de forma sistemática.

O entendimento firmado pelo Conselheiro João Paulo Resende na análise da compra do HSBC pelo Bradesco tem norteado, até os dias atuais, o posicionamento do CADE com relação à não-inclusão de considerações trabalhistas no escopo da análise de eficiência dos atos de concentração. Contudo, nada impede que o Tribunal Administrativo do CADE adote novas diretrizes, a bem do interesse coletivo e em conformidade aos desígnios constitucionais, na linha do mencionado precedente do TRT da 15ª Região, o que poderá ocorrer já a partir de novos ares provenientes do iminente ingresso de novos conselheiros.

Parece emergir a necessidade de reavaliação das competências do CADE nas notificações dos atos de concentração, não só para assegurar a participação dos sindicatos e do MPT, quando cabível, como também para estabelecer um diálogo permanente entre essas entidades e as empresas, a fim de incorporar os contratos de trabalho ao campo de proteção e planejamento nas operações de fusão.

É inegável, nessa senda, que o notável julgado proferido pelo TRT da 15ª Região, a partir de provocação do MPT, enuncia essa nova e alvissareira perspectiva, em perfeito alinhamento à Constituição Cidadã de 1988.

Gustavo Ramos
Advogado e sócio do Mauro Menezes & Advogados.

Beatriz Queiroz
Advogada do escritório Mauro Menezes & Advogados.

Luana Albuquerque
Advogada e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

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