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O PL 2.630 – o PL das fake news – E o que se espera do Judiciário

O PL 2.630 não deve ser das fake news nem da censura. É um projeto de lei que merece atenção da sociedade e de seus representantes legitimamente eleitos.

22/9/2023

O PL 2630 institui a lei brasileira da liberdade, responsabilidade e transparência, contudo, foi apelidado, de um lado, de PL das Fake News; de outro, por PL da Censura, dependendo, obviamente, do espectro político que se debruçará sobre a questão em tela. É prudente reconhecer que existem temporalidades distintas entre a sociedade, a política e o Direito. As sociedades, hiperconectada em redes, avançam num ritmo cujas mudanças são – ou deveriam – ser tratadas no campo da política (das relações de poder) e, não menos importante, reclamam por regulações e leis que sejam  condizentes com o contexto histórico vivido.

Imperioso lembrar que o uso de inverdades para manipulação política não é fenômeno novo, sendo ferramental já utilizado como, por exemplo, na Guerra do Paraguai (com Solano Lopes acusando o Brasil), do Japão (quando invadiu a Manchúria chinesa) e da Alemanha nazista (alegando ter sida invadida pela Polônia). No bojo daquilo que se convencionou chamar de fake news estão presentes discussões atinentes à liberdade de expressão, direito de resposta, proteção de dados, desequilíbrio do poder econômico, proteção de crianças/adolescentes, prevenção de crimes das variadas naturezas e, em última análise, a soberania do Estado e da própria democracia. Há que se postular, simultaneamente, o equilíbrio, pluralidade de opiniões e respeito aos entendimentos diversos, preservação do debate democrático; de outra banda, a necessidade de agilidade e eficácia ante a escalada de violência e atos criminosos, que tiveram nas plataformas de mídias sociais um palco privilegiado no qual foram arquitetadas e colocadas em operação tais ilegalidades.

Não raro, os detratores do projeto ora retratado afirmam que há deliberada busca de censurar e – assentados em argumentos – citam o “direito à liberdade de expressão”. Sabidamente, a liberdade de expressão é um pilar presente em todas as constituições democráticas brasileiras, desde 1824, de natureza fundamental, mas isso não significa que seja algo absoluto e ilimitado. Assim como a liberdade de expressão, há, também, outros valores fundamentais protegidos constitucionalmente, como o direito à vida, a proteção às crianças e adolescentes e, dentre outros, à própria democracia e ao Estado Democrático de Direito.

Em que pese que fake news e desinformação não sejam, como dito, novidades, o momento atual tem nos avanços tecnológicos uma velocidade espantosa e, muitas vezes, inalcançável, uma singularidade premente. Aqui, o tempo da sociedade se mostra célere e as esferas da política e do Direito não acompanham pari passu. No surgimento da Internet, na década de 1980, Demi Getschko, aduziu que a rede era um mero “espelho” da sociedade. Mais recentemente, Getschko afirmou que regular a Internet seria algo como “dar tratamento analógico ao ambiente digital”. Hodiernamente, as grandes plataformas, as big techs, mídias sociais, não meros reflexos da sociedade, mas potentes propagadores – em nível exponencial – via algorítmica, daquilo que se presencia analogicamente na vida real.

Nossos dados pessoais, nossas vidas, preferências, hábitos, pesquisas, tudo, absolutamente, tudo, está registrado nas redes sociais. Todos conseguem voz neste ambiente, para fins virtuosos ou objetivando atos criminosos contra indivíduos, grupos e a própria normalidade democrática. O debate em voga não é exclusividade brasileira. O parlamento da UE aprovou leis de mercado digital (DMA) e de serviços digitais (DAS) que contemplam regras sobre segurança, direitos dos internautas, privacidade, combate às fake news, com mecanismos que exigem que plataformas promovam a retirada de conteúdo ilícito tão logo tenham ciência acerca da ilicitude e adotem medidas de transparência, agindo de forma diligente e colaborativamente. França, , Reino Unido e Alemanha são assertivas em combater a escalada do discurso do ódio e de se remover conteúdo manifestamente ilegal em 24 horas, além de reportar às autoridades policiais para que as devidas apurações das responsabilidades criminais possam ser realizadas. Não se trata de censura, mas de liberdade com responsabilidade.

Imaginem, prezados leitores, caso questionassem, no século XIX, Rockfeller e JP Morgan sobre as leis antitruste. Certamente, seriam contrários a qualquer ação legal que limitasse seus negócios e lucros. Impossível, hoje, tolerar modelos empresariais que esmaguem a concorrência com o objetivo de monopolizar o mercado, tornar reféns seus usuários de quaisquer serviços e agindo sem transparência e, pior, negando-se a atender ordens das autoridades ou determinações judiciais. A própria soberania dos Estados pode ser colocada em xeque a prevalecer ações sem a  devida regulação,  com ações políticas e  campo legal.

Como se depreende o tema tratado neste escrito é assaz complexo e, por certo, os autores não pretendem, nestas poucas linhas, esgotá-lo e, tampouco, assumir visões prontas e acabadas. O que imaginamos é a necessidade, urgência mesmo, de que o Poder Legislativo realize suas funções, debatendo em suas Casas (Câmara e Senado) os assuntos que se avolumam em nossa sociedade e que merecem atenção, atenção ao cidadão, atenção à economia e atenção à democracia. Não é de hoje que muitos afirmam que o Poder Judiciário ultrapassa suas atribuições e quer legislar, sendo que não foram eleitos para tal intento. Sabemos, também, que o Judiciário age quanto provocado e que, não poucas vezes, o próprio Legislativo não consegue avançar em suas pautas e assumir postura ativa e não reativa.

O PL 2630 não deve ser das fake news nem da censura. É um projeto de lei que merece atenção da sociedade e de seus representantes legitimamente eleitos. A polarização que há tempos se faz presente na cena política brasileira não pode ser maior que a própria democracia, que, ainda que alquebrada em alguns momentos, mostra-se resiliente. Aos atores políticos que assumam suas responsabilidades, aos operadores do Direito que avancem em sua seara e o cidadão que seja consciente de sua responsabilidade individual e atento aos impactos coletivos de suas ações sociais.

Mauricio Felberg
Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil e na Ordem dos Advogados Portugueses. Sócio Diretor Felberg Advogados Associados. LL.M Executive CEU Law School. Diretor Adjunto de Comunicação Projeto 150 anos e Secretário-Executivo da Comissão de Políticas e Midias Sociais do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Relator Vice-Presidente (IV Turma) e Coordenador do Grupo Especial de Estudo Sobre Ética, no Tribunal de Etica e Disciplina da OAB/SP. Sócio-fundador da FALP - Federação dos Advogados de Língua Portuguesa.

Rodrigo Augusto Prando
Professor e Pesquisador. Cientista Social, Mestre e Doutor em Sociologia. Membro da Comissão de Políticas e Mídias Sociais do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.

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