De acordo com sua ementa, a lei 14.039, de 17 de agosto de 2020, foi editada com o vago objetivo de alterar o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)1, bem como o decreto-lei 9.295, de 27 de maio de 19462, para dispor sobre a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade.
Na tentativa de clarificar o objeto subjacente aos termos da Lei, pretendemos aqui proceder a uma análise de seu teor, levando em consideração inclusive informações atinentes à proposição legislativa que lhe deu origem. Em tal análise serão abordados os seguintes aspectos da matéria, sem prejuízo de outros igualmente relevantes:
1. constitucionalidade das disposições inauguradas pela Lei, segundo as quais os profissionais da advocacia e da contabilidade serão legalmente considerados prestadores de serviços singulares de notória especialização, para fins da inexigibilidade de licitação a que se referem tanto o art. 25, inciso II, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos)3, quanto o art. 74, inciso III, da sucedente Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que em breve deve entrar em plena vigência, de acordo com seu art. 193, inciso II);
2. riscos para a Administração Pública na contratação de serviços de advocacia ou de contabilidade, em razão de os respectivos profissionais terem passado a ser, nos termos da Lei sob exame, aprioristicamente considerados pelo ordenamento jurídico como de singular e notória especialização;
3. contraposição entre a classificação ampla e irrestrita desses profissionais como de notória especialização e o princípio administrativista da impessoalidade no ato de contratação;
4. quantidade de municípios no Brasil com procuradoria municipal própria, a fim de identificar possíveis repercussões em seu benefício do advento da Lei nº 14.039, de 2020, que deve facilitar a contratação dos serviços especializados previstos na Lei de Licitações e Contratos Administrativos;
5. jurisprudência atual sobre a contratação pelos entes da federação de serviços advocatícios e contábeis sem exigência de licitação;
6. comentário acerca da matéria à luz do fato de que, porque não teria sido ainda pacificada a discussão sobre a inerência da singularidade aos serviços advocatícios, muitos profissionais estariam sendo condenados pela pretensa prática de atos de improbidade administrativa, depois de terem celebrado contrato com entes públicos para o simples desempenho de atividades que lhes são próprias, e em hipóteses em que a licitação se afigura, por via de regra, patentemente inexigível, com fundamento na Lei nº 8.666, de 1993, art. 25, inciso II e § 2º, combinado com o art. 13, inciso V;
7. riscos potenciais na contratação dos profissionais de advocacia e contabilidade como fachada para a perpetração de corrupção e lavagem de dinheiro;
8. possibilidade de redução de concorrência na prestação desses tipos de serviço para a administração pública, criando castas e reserva de mercado para escritórios de advocacia e de contabilidade ligados aos setores dominantes da política;
9. aumento dos gastos públicos na prestação desses serviços para a Administração.
A lei 14.039, de 2020, é o produto final da tramitação do Projeto de Lei (PL) que, no Senado Federal, recebeu o nº 4.489, de 2019, e, na Câmara dos Deputados, Casa de origem, o nº 10.980, de 2018. O correspondente processo legislativo se iniciou, portanto, antes da vigência do Ato Conjunto do Secretário-Geral da Mesa do Senado Federal e do Secretário-Geral da Mesa da Câmara dos Deputados n° 1, de 2018, o qual instituiu a identificação unificada das proposições legislativas sujeitas a tramitação bicameral.
Da Lei em exame constam três artigos:
o art. 1º promoveu o acréscimo de um art. 3º-A à Lei nº 8.906, de 1994 (Estatuto da Advocacia), composto de caput e parágrafo único, a fim de estatuir que “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização nos termos da Lei”, considerando-se, para tanto, como de “notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”, consoante, aliás, é disposto já hoje no § 1º do art. 25 da Lei nº 8.666, de 1993;
o art. 2º adicionou §§ 1º e 2º ao art. 25 do Decreto-Lei nº 9.295, de 1946, conferindo à atividade exercida pelos profissionais de contabilidade aqueles mesmos atributos que o art. 1º buscou garantir à dos causídicos;
o art. 3º fixou a cláusula de vigência, ao definir que a Lei entraria em vigor na data de sua publicação.
O PL 10.980, de 2018, foi apresentado, na Câmara, pelo então Deputado Efraim Filho4, tendo sido distribuído à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), para apreciação conclusiva, compondo-se de apenas dois artigos, sendo que o art. 1º realizava a finalidade original da proposição, alvitrando a inserção de §§ 3º e 4º no art. 3º do Estatuto da Advocacia, com objetivos idênticos aos do atual art. 1º da lei 14.039, de 2020; e o art. 2º fixava cláusula de vigência imediata da lei porventura aprovada.
Na justificação do PL5, relembrava-se o teor do art. 133 da Constituição Federal (CF), segundo o qual o advogado é indispensável à administração da justiça, e observava-se que, “para exercer tão relevante mister, com evidente múnus público, o advogado passa por um rigoroso processo seletivo, desde um curso de Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais de (...) cinco anos de academia, além de uma habilitação profissional extremamente rigorosa pelo Exame da Ordem, e, ainda, a análise da sua vida pregressa (...), para só então ser deferido o seu registro junto à Ordem dos Advogados do Brasil”. Não haveria, assim, outra classe profissional a enfrentar tamanho grau de exigência para o exercício da profissão.
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1 Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, que, consoante sua ementa, dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
2 Consoante sua ementa, cria o Conselho Federal de Contabilidade, define as atribuições do Contador e do Guarda-livros, e dá outras providências.
3 Consoante sua ementa, regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
4 Ficha de tramitação disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2186526