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Fim do concurso formal para atos de improbidade: Um enigma para a Justiça Eleitoral

Reforma na lei de improbidade: desafios e responsabilidades para a Justiça Eleitoral.

20/9/2023

A lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92) sofreu substanciais alterações por meio da lei 14.230/21. Dentre as várias mudanças introduzidas, destacam-se as regulamentações que vedam expressamente o concurso formal de tipos de improbidade. Agora, para cada ato de improbidade, deve ser indicado apenas um tipo dentre os artigos 9, 10 e 11 da referida norma. Isso impossibilita a condenação do réu por mais de um tipo em relação ao mesmo ato. O concurso formal é um instituto previsto no âmbito criminal, regulamentado pelo artigo 70 do Código Penal, onde o agente, mediante uma única ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes1.

Antes da alteração legislativa, era comum encontrar petições iniciais de ações de improbidade que narravam a prática de atos prejudiciais à Administração Pública, imputando ao mesmo ato todas as modalidades delitivas da lei 8429/92 e, inclusive, solicitando a condenação do agente por todas as penalidades do artigo 12 e seus incisos.

Com a recente reforma, esse procedimento não é mais aceito. De acordo com o artigo 17, da lei de improbidade administrativa, 'Após a réplica do MP, o juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor.' (§10-C). Além disso, 'Para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11 desta lei.' (10-D). Esse é o entendimento que vem sendo adotado pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de SP, que tem anulado decisões proferidas em desacordo com as novas regras em análise.

Diante dessa alteração legislativa e do entendimento jurisprudencial que caminha a ser consolidado pelos Tribunais, uma das hipóteses de inelegibilidade prevista na lei da ficha limpa pode adquirir uma nova perspectiva, especialmente no contexto das eleições municipais.

A LC 64/90, alterada pela LC 135/10 (lei da ficha limpa), prevê a inelegibilidade decorrente de ato doloso de improbidade administrativa, conforme a alínea l, artigo 1º, inciso I, que estabelece a inelegibilidade dos 'que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena.'

Essa disposição legal requer três requisitos cumulativos: i) a prática de ato doloso de improbidade administrativa que enseje; ii) dano ao erário; iii) enriquecimento ilícito. Além disso, é necessário que o ato de improbidade seja sancionado com a suspensão dos direitos políticos. A jurisprudência atual do c. TSE é clara ao estabelecer que a inelegibilidade supracitada depende dos requisitos cumulativos, que relacionam o dano ao erário e o enriquecimento ilícito ao ato impugnado pelo autor do processo.

Em recentíssimo precedente, o TSE delimitou que “A incidência da causa de inelegibilidade insculpida no art. 1º, I, l, da LC 64/90 pressupõe a coexistência dos seguintes requisitos: (i) condenação à suspensão de direitos políticos; (ii) decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado; (iii) ato doloso de improbidade administrativa; e (iv) ato gerador, concomitantemente, de lesão ao patrimônio público e de enriquecimento ilícito” (RECURSO ORDINáRIO ELEITORAL 060053406, Acórdão, Rel. Min. Carlos Horbach, Publicação:  DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 68, Data 17/4/23). Na mesma veia: RECURSO ORDINáRIO ELEITORAL nº 060082847, Acórdão, Rel., Min. Cármen Lúcia, Publicação:  PSESS - Publicado em Sessão, Data 19/12/22.

Aqui, faz-se necessário destacar que à Justiça Eleitoral é vedado dar nova interpretação a acórdão proferido em sede de condenação por improbidade administrativa, sob pena de invadir a competência de outro órgão do Poder Judiciário. Tal premissa está prevista, inclusive, no verbete sumular do TSE 41: 'Não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos tribunais de contas que configurem causa de inelegibilidade.'

No entanto, a Justiça Eleitoral pode analisar o conteúdo da decisão condenatória da Justiça Comum e extrair os requisitos da inelegibilidade, mesmo que não estejam expressos na parte dispositiva (AgR–REspe 18–40/RJ, rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 30.10.18, DJe de 3.12.18; RECURSO ORDINáRIO ELEITORAL nº 060055652, Acórdão, Relator(a) Min. Raul Araujo Filho, Publicação:  PSESS - Publicado em Sessão, Data 22/11/22). Ou seja, “Para verificar a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, 'l', da LC nº 64/1990 é possível à Justiça Eleitoral extrair do acórdão da Justiça Comum os requisitos exigidos, a partir tanto do dispositivo quanto da fundamentação, interpretando-se o seu exato alcance, desde que não desfigure a decisão”  (Recurso Ordinário nº 060223444, Acórdão, Relator(a) Min. Luís Roberto Barroso, Publicação:  PSESS - Publicado em Sessão, Data 13/11/18).

Portanto, embora pese a vedação ora contida na lei de improbidade, não é necessária a condenação do agente por duas modalidades pelo mesmo ato para atrair a hipótese de inelegibilidade, basta que a Justiça Eleitoral infira do conteúdo da decisão condenatória os requisitos da inelegibilidade.

Neste ponto, surge outra questão: com o atual texto da lei 8.429/92, até que ponto poderá a Justiça Eleitoral 'adentrar' na fundamentação do decreto condenatório para buscar a cumulação dos requisitos necessários à inelegibilidade do art. 1º, I, 'l', da LC 64/90

A reforma legislativa impôs restrições claras à cumulação de tipos de atos ímprobos para uma mesma conduta, preservando princípios fundamentais do devido processo legal, como o contraditório e a ampla defesa. Nesse contexto, a Justiça Eleitoral deve observar com rigor, mas com razoabilidade, os requisitos necessários para a configuração da inelegibilidade. É imperativo que essa análise seja feita com a devida cautela, levando em consideração a nova legislação de improbidade, que restringe a cumulação de tipos de atos ímprobos, até mesmo para não fazer da 'letra morta' o art. 17, §§ 10-C e 10-D.

Assim, a busca pelos requisitos necessários à inelegibilidade deve respeitar e subordinar-se à lei especial em matéria de improbidade (lei 8.429/92, alterada pela lei 14.230/21), sem descuidar da proteção devida dos direitos políticos dos jurisdicionados.

Nesse contexto, a Justiça Eleitoral se encontra diante de uma responsabilidade delicada. Ela deve assegurar a integridade do processo eleitoral, garantindo que candidatos que pratiquem atos de improbidade administrativa sejam devidamente impedidos de concorrer, conforme previsto na lei da ficha limpa, mas respeitando as restrições e regulações impostas pela reforma na lei de improbidade administrativa, que visa proteger o devido processo legal e os princípios de ampla defesa e contraditório e também os direitos políticos do agente processado.

Para tanto, a Justiça Eleitoral deve realizar uma análise cuidadosa das decisões condenatórias, buscando extrair os requisitos necessários à inelegibilidade, conforme estabelecido na LC 64/90, mas com a devida cautela, respeitando a nova legislação de improbidade que restringe a cumulação de tipos de atos ímprobos para uma mesma conduta, mas sem desconsiderar os princípios e objetivos da lei da ficha limpa.

Em resumo, a reforma na lei de improbidade administrativa trouxe à tona um desafio complexo para a Justiça Eleitoral, exigindo uma abordagem equilibrada que harmonize a aplicação da lei da ficha limpa com as novas restrições da legislação de improbidade. A responsabilidade da Justiça Eleitoral é fundamental para garantir um processo eleitoral justo e transparente, preservando tanto os direitos políticos dos cidadãos quanto a necessidade de responsabilização de candidatos envolvidos em atos ímprobos. Nesse sentido, a interpretação e aplicação das leis devem ser guiadas pela prudência, pelo respeito aos princípios legais e pelo compromisso com a democracia.

______________

1 Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.(Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)

Fatima Cristina Pires Miranda
Pós-Graduada em Processo Civil pelo Centro de Estudos Universitários - CEU/SP e em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.

Daniel Santos de Freitas
Pós-graduado em Prática de Direito Administrativo pelo DAMÁSIO e associado do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

Marcela Caldas dos Reis
Especialista em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e associada do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

Gabriel Silva Pereira
Pós-graduando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG e associado do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

Gabriel Gomes Ferreira de Oliveira Lima
Pós-graduando em Direito Eleitoral e Processual Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral Paulista (EJEP), pós-graduando em Direito Penal Econômico pela PUC-MG, Pós-graduado em Ciências Criminais pela PUC-MG e associado do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados.

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