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Prova, perito e negócio jurídico processual

Conceber acordos cujos objetivos sejam, principalmente, os de acelerar e simplificar o feito ou os de criar caminhos mais seguros para que se chegue à verdade dos fatos.

20/9/2023

A produção de provas é um direito umbilicalmente ligado ao contraditório. Este princípio abrange a “oportunidade de que as partes se manifestem e produzam provas sobre o direito que afirmam ter; de que se manifestem sobre as alegações e sobre o material probatório produzido pela outra parte”.1e hoje se entende também que o contraditório abrange a necessidade de o juiz se manifestar também sobre todo esse material produzido pelas partes no processo.

Fazer alegações de fato e comprová-las são atividades que se consubstanciam em ônus processuais. Afinal, “se concretizada ou realizada, terá (provavelmente) seus resultados revertidos em benefício daquele que a desempenhou. Por outro lado, as consequências danosas decorrentes da omissão com relação à atividade consubstanciada num ônus devem atingir aquele que se omitiu, aquele que deveria ter realizado a atividade, e não a realizou”.2

Sendo, portanto, um ônus, aquilo que diz respeito à produção de provas, na medida da esfera de atuação da parte, pode ser objeto de convenção processual. Essa afirmação é viabilizada pelo que diz o artigo 190 do CPC.

É, portanto, prerrogativa das partes, sendo estas capazes e estando em discussão direito que admite autocomposição, alterar o procedimento, da forma que melhor lhes aprouver. As partes são tidas como gestoras do procedimento, e, com base em sua autonomia, podem estipular adaptações procedimentais que consideram trazer vantagem ao processo.

A possibilidade de celebração de negócio processual a respeito das provas tem precisamente o condão de adaptar a forma de instrução do feito às peculiaridades do caso e facilitar o caminho da busca pela verdade.3 4

O CPC de 2015 deu ampla liberdade para os sujeitos convencionarem, sendo dispensada forma específica para a validade da convenção,5 ainda que haja algumas convenções típicas, como, por exemplo, a possibilidade de escolha consensual do perito, prevista no art. 471 do CPC.6

Isso não impede, porém, que também sejam formuladas convenções atípicas, conforme a conveniência dos sujeitos que participam do negócio. A ampla liberdade de negociação permite, por exemplo, que as partes realizem a limitação consensual das provas que serão produzidas ao longo do processo e renunciem, de forma conjunta, a determinado meio de prova. Admite, igualmente, que os sujeitos estipulem compromissos a serem seguidos pelo perito, inclusive em relação ao dever de imparcialidade, visando preservar a tecnicidade e cientificidade da prova pericial. Isto é, o negócio processual de escolha do perito pode ser ampliado, para abranger outras questões, como, por exemplo, o valor dos honorários periciais e critérios específicos para a produção da prova.

A consequência disso é a de que, em alguns casos, não só as partes sejam sujeitos do negócio jurídico processual. O art. 190, a meu ver, alcança todos os que participam do processo, inclusive, os auxiliares do juízo. É plenamente possível que peritos celebrem convenções processuais e fiquem a elas vinculados. Essas convenções podem conter as mais variadas obrigações: desde a possibilidade de notificar os assistentes técnicos por WhatsApp, sobre o dia da realização de uma diligência, até a criação de hipóteses específicas de impedimento de atuação dos profissionais. É possível que se estabeleça, por exemplo, que o perito não possa publicar academicamente coisa alguma sobre o tema em discussão e que tenha dever de sigilo sobre as questões tratadas no processo, ainda que os autos não estejam protegidos por segredo de justiça.

Um mesmo instrumento pode, em meu sentir, conter cláusulas envolvendo negócios jurídicos processuais típicos e atípicos. Ou seja, no mesmo documento em que as partes formalizam a escolha consensual do perito, podem ainda delimitar v. g. a forma como a prova será produzida e criar novas obrigações aos sujeitos processuais.

Nesses casos, todos os compromissos assumidos devem ser cumpridos pelas partes. Cabe ao juízo, pois, uma vez verificada a validade do negócio celebrado, assegurar a sua observância pelos sujeitos, determinando o cumprimento compulsório da obrigação inadimplida.

A celebração dessas convenções, portanto, parte da esfera de autonomia dos sujeitos processuais, sendo que, uma vez preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos necessários, têm efeito obrigatório e “vincula”, também, o juízo.7

Afinal, a doutrina diz que: “no que tange às convenções processuais probatórias, ainda que o juiz não atue como parte e não seja caso de homologação, ele se vincula ao que foi pactuado pelas partes – assim como se vincula aos negócios jurídicos de direito material – na medida em que deve respeitar normas jurídicas válidas, inclusive as consensuais”.8

Daí que, uma vez celebrada a convenção entre as partes – e entre as partes e o perito – a respeito da prova científica a ser produzida, todos hão de se submeter ao contrato, cumprindo-o (partes) ou respeitando-o e instando as partes para que o cumpram (juiz).

Exemplo disso, já de passagem referido, é o da própria definição, conjuntamente com o perito e antes da sua escolha formal nos autos, dos honorários periciais, na forma de uma convenção preliminar,9da qual sejam sujeitos as partes e o auxiliar. É possível, ainda, que a convenção atribua critérios específicos relacionados à imparcialidade, como o dever de revelação acerca de determinadas circunstâncias ou hipóteses específicas de impedimento e suspeição do perito (ampliando-se, com isso, o rol previsto nos arts. 144 e 145). Esta, inclusive, é uma convenção muitíssimo salutar, especialmente diante da realidade concreta das perícias realizadas e da relação, muitas vezes próxima, entre peritos e assistentes técnicos.

Uma vez descumprido esse negócio jurídico processual, que trataria de critérios pré-estabelecidos na própria convenção que gerariam a impossibilidade de um perito, naquelas condições, participar da produção da prova, não apenas o perito é alcançado. Desrespeitadas as cláusulas da convenção, as próprias partes são alcançadas, porque não poderão mais aproveitar a prova, e o juiz, a seu turno deverá tê-la como nula ou como inexistente nos autos. E isso tudo se dá independentemente de qualquer juízo de valor acerca de ter ou não ter havido favorecimento a uma das partes como resultado da prova.

Percebe-se, também, que, de certo modo, o juiz fica submetido à vontade das partes e dos próprios peritos quanto ao que consta da convenção por eles celebrada. Embora seja tradicional no direito brasileiro o entendimento segundo o qual o próprio juiz de primeiro grau pode exercer atividade complementar à das partes no plano probatório, isso não autoriza que seja mantida nos autos, ou considerada, a perícia feita por perito que integrou a convenção processual e a desrespeitou. O juiz poderá recusar o perito indicado pelas partes, é claro, mas nunca manter um profissional que ambas não desejam (segundo a convenção que firmaram) ou que não poderá atuar, em razão de negócio processual previamente realizado.

Trata se de fato de um instituto novo, cujo alcance e cujo regime jurídico ainda está-se delineando no plano da doutrina e que tem sido usado pelas partes com alguma timidez. Entretanto, isso não deve inibir nem as partes, nem os advogados e nem juízes de conceber acordos cujos objetivos sejam, principalmente, os de acelerar e simplificar o feito ou os de criar caminhos mais seguros para que se chegue à verdade dos fatos.

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1 ARRUDA ALVIM, Teresa; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogerio Licastro Torres de. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 740.

2 ARRUDA ALVIM, Teresa. Os agravos no CPC de 2015. 5. ed. Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2021, p. 383.

3 Nesse sentido, afirma Giovani Ravagnani que o “objetivo das convenções probatórias não é enganar o julgador nem cultuar a mentira processual, mas adequar o procedimento das provas às especificidades do direito material e às peculiaridades das partes no processo. Trata-se de questão estrutural, que deve ser observada a partir das garantias processuais constitucionais”. (RAVAGNANI, Giovani. Provas negociadas. São Paulo: Ed. RT, 2019).

4 Nesse sentido, Robson Renault Godinho: “A resistência aos acordos processuais em sentido amplo possui inegavelmente uma dimensão ideológica, na medida em que há que se depurar a atividade probatória para que o ato de julgar não receba outras interferências e seja proferido de maneira solipsista. Na realidade, os contratos ou acordos probatórios não servem para entorpecer a ação do julgador, nem para premiar a chicana e mentira processual. Os negócios probatórios são acordos ou convenções processuais pelos quais as partes regulam o modo de produção da prova, podendo incidir sobre o ônus ou sobre os meios de prova. Trata-se de uma repercussão da autonomia privada no processo, indubitavelmente, mas não é algo a se rechaçar aprioristicamente e muito menos considerar por resolvido se houver consagração legislativa, já que se trata de uma questão estrutural e que deve ser analisada a partir de um modelo de processo compatível com a conformação constitucional”. (GODINHO, Robson Renault. Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo código de processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 226-227).

5 “O art.?190 não exige uma forma específica para a validade do negócio jurídico processual. Tampouco veda que o negócio se aperfeiçoe por meio de determinada forma. Isso permite concluir que a forma do negócio jurídico processual é livre. Contudo, considerando-se a relevância das estipulações que ele pode conter, recomenda-se que o negócio seja formalizado por escrito. Isso será fundamental para se aferir a real vontade das partes. O negócio poderá ser entabulado no âmbito de uma cláusula de um contrato ou sob a forma de uma contratação específica e apartada em relação a um contrato principal. A forma livre do negócio processual não é infirmada pelo fato de o negócio processual se destinar a regular situações processuais ou procedimento”. (AMARAL, Paulo Osternack. Provas. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021).

6 Art. 471. As partes podem, de comum acordo, escolher o perito, indicando-o mediante requerimento, desde que: I - sejam plenamente capazes; II - a causa possa ser resolvida por autocomposição.(...) § 3º A perícia consensual substitui, para todos os efeitos, a que seria realizada por perito nomeado pelo juiz.

7 Na lição de José Carlos Barbosa Moreira: “(...) se concebe que as partes queiram apenas criar, para uma delas ou para ambas, a obrigação de assumir determinado comportamento, de praticar ou deixar de praticar certo ato processual (não recorrer, desistir de recurso interposto, não executar a sentença, desistir da ação ou da execução etc.): os autores de língua alemã usam aqui a denominação Verpflichtungswirkungen, traduzível por efeitos obrigatórios”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual. Temas de direito processual – terceira série. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. GZ, 2023, p. 115-131).

8 MAFFESSONI, Behlua. Convenções processuais probatórias e poderes instrutórios do juiz. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 114. Ainda, como bem explica Marcela Kohlbach, “especialmente em se tratando de direitos disponíveis, o juiz deverá preservar ao máximo a vontade manifestada pelas partes no que tange à forma de condução do processo. Se por um lado a autorização legislativa para que as partes convencionem sobre matéria processual não garante a estas uma carta branca, possibilitando-as, inclusive, a limitação dos poderes instrutórios do juiz, em claro retorno ao modelo privatista de processo, também não se pode ignorar por completo a vontade manifestada pelas partes. Afinal, no modelo cooperativo, não existe protagonismo com relação à condução do processo, a qual deve ser realizada de forma paritária, conferindo-se voz ativa a todos os seus participantes”. (KOHLBACH, Marcela. Vinculação do juiz às convenções das partes sobre matéria de prova no Novo CPC. [s. l.], p. 15).

9 “A convenção preliminar permite que seja desde logo firmado acordo sobre o conteúdo mínimo do encontro de vontades já existente, para que, num momento de maior tranquilidade ou de amadurecimento das tratativas, as partes voltem a convencionar para complementar aquela negociação inicial, agora acordando de maneira suplementar sobre os detalhes faltantes, pontos acessórios ou sobre temas que não encontraram consenso nas primeiras tratativas”. (CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 265).

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

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