O crime continuado é um benefício extrínseco criado pelo legislador para, por política criminal, aplicar, adequadamente, uma pena que seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime, nos termos do artigo 71 do Código Penal:
Art. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.1984)
Para evitar decisões discrepantes, o Superior Tribunal de Justiça pacificou a compreensão de que a fração ideal imposta na sentença condenatória deverá levar em consideração a quantidade de crimes praticados em continuidade delitiva, aplicando-se, consequentemente, às seguintes exasperações: aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5 para 3 infrações; 1/4 para 4 infrações; 1/3 para 5 infrações; 1/2 para 6 infrações e 2/3 para 7 ou mais infrações:
Esta Corte Superior firmou a compreensão de que a fração de aumento no crime continuado é determinada em função da quantidade de delitos cometidos, aplicando-se o aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5 para 3 infrações; 1/4 para 4 infrações; 1/3 para 5 infrações; 1/2 para 6 infrações e 2/3 para 7 ou mais infrações. (AgRg no HC 790.606/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 24/4/23, DJe de 28/4/23.)
No julgamento do AgRg no HC 822.158/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 26/6/23, DJe de 29/6/23, sua Excelência destacou que a condição subjetiva da aplicação do instituto deve levar em consideração um plano previamente elaborado pelo agente, onde será possível inferir que os delitos subsequentes fazem parte da elaboração mental do infrator. Confira trechos da ementa:
O crime continuado é benefício penal, modalidade de concurso de crimes, que, por ficção legal, consagra unidade incindível entre os crimes parcelares que o formam, para fins específicos de aplicação da pena. Para a sua aplicação, a norma extraída do art. 71, caput, do Código Penal exige, concomitantemente, quatro requisitos objetivos: I) pluralidade de condutas; II) pluralidade de crime da mesma espécie; III) condições semelhantes de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes (conexão temporal, espacial, modal e ocasional); IV) e, por fim, adotando a teoria objetivo-subjetiva ou mista, a doutrina e jurisprudência inferiram implicitamente da norma um requisito da unidade de desígnios na prática dos crimes em continuidade delitiva, exigindo-se, pois, que haja um liame entre os crimes, apto a evidenciar de imediato terem sido esses delitos subsequentes continuação do primeiro, isto é, os crimes parcelares devem resultar de um plano previamente elaborado pelo agente.
Em outro caso de relatoria do eminente Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, por considerar que não houve liame subjetivo entre o primeiro e o segundo delitos, ou seja, a infração penal subsequente foi independente da primeira, o agente foi condenado em concurso material de crimes, e foi responsabilizado por ambas as infrações penais:
No caso dos autos, a pretensão de reconhecimento da continuidade delitiva não merece acolhimento, pois, no caso, os delitos foram praticados de formas distintas, em tempo (o segundo foi cometido 2 meses e meio após o primeiro delito) e locais diversos, o que resultou em concurso material, não havendo liame subjetivo entre eles, já que a ação posterior foi independente da anterior. (AgRg no HC 831.668/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 8/8/23, DJe de 14/8/23.)
Em recente julgado da Quinta Turma do STJ, o eminente relator do caso, Ministro Ribeiro Dantas, desproveu tese que vindicava a desclassificação do crime continuado para o crime misto alternativo, em que a prática de uma ou das várias condutas praticadas, no mesmo contexto fático, levam à punição por um só delito, ou seja, não há exasperação na forma do artigo 71 do CP. Confira trechos do voto exarado no AgRg no AREsp 2.266.198/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/6/23, DJe de 16/6/23:
Com efeito, no crime classificado como "tipo misto alternativo", a prática de uma ou das várias condutas descritas, no mesmo contexto fático, levam à punição por um só delito. Entretanto, no caso dos autos, as instâncias ordinárias reconheceram que o recorrente praticara a conduta criminosa de postar os lotes de correspondência com selos falsos por diversas vezes – no mínimo cinco - nas mesmas condições de tempo, lugar e modo de execução, de modo que restou caracterizada a continuidade delitiva.
Importante destacar que o artigo 71 do CPP determina que “tratando-se de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção”. Isto é, se o crime vestibular é cometido na cidade “a”, estendendo-se até a cidade “b”, onde foi instaurada a persecução criminal, de acordo com o referido dispositivo legal, o infrator responderá perante a cidade “b”, pois foi na cidade “b” onde ocorreu a instauração da persecutio criminis. Confira trechos da ementa do seguinte conflito de competência:
Consta dos autos que foi instaurado inquérito policial para apurar a suposta prática do crime previsto no art. 215-A do CP, que teria ocorrido de forma continuada em um ônibus, durante o trajeto percorrido entre municípios dos Estados de Santa Catarina e do Paraná. O Investigado, por diversas vezes durante a viagem, teria colocado a mão sobre as pernas da Vítima, mesmo diante de sua veemente oposição.
Nos termos do art. 71 do Código de Processo Penal, tratando-se de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção.
Na hipótese, deve ser reconhecida a competência do Juízo Suscitante, pois ele admite que os fatos também ocorreram dentro do território da respectiva comarca, sendo o primeiro juízo competente que tomou conhecimento do crime. (CC 194.951/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 3/8/23, DJe de 8/8/23.)
Aliás, conforme sustentado no preâmbulo desse estudo, a aplicação da teoria da continuidade delitiva, que é um benefício ao infrator, impõe que essa política criminal seja uma forma coerente de reprovação e prevenção do crime. Isso quer dizer que não deve ser utilizada para o criminoso habitual, ou seja, aquele que pratica crime como forma de sobrevivência, pois, do contrário, o benefício Estatal atentaria contra o objetivo da norma que, como sustentado, tem o propósito de aplicar a pena de forma coerente e efetiva.
No julgamento do AgRg no HC 791.054/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/3/23, DJe de 23/3/23, foi indeferida a aplicação do benefício Estatal do artigo 71 do CP, na medida em que a introdução desse instituto na cálculo da pena depende da somatória dos requisitos objetivos + reconhecimento de não habitualidade:
Não se constata, no caso, flagrante ilegalidade apta a ensejar a concessão de habeas corpus de ofício, uma vez que o acórdão impugnado se encontra em consonância com o entendimento desta Corte Superior, no sentido de que os institutos da habitualidade e do crime continuado não se confundem.
Aliás, a Egrégia Quinta Turma do STJ também não admite a aplicação da teoria do crime continuado quando reconhecida a habitualidade delitiva. Confira trechos da ementa no AgRg no HC 757.480/RJ, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 29/5/23, DJe de 1/6/23:
Por fim, "de acordo com a jurisprudência desta Corte, uma vez reconhecida a habitualidade delitiva, resta descaracterizado o crime continuado, sendo que o reexame dessa questão demandaria o revolvimento do conjunto fático-probatório carreado durante a instrução processual, providência inadmissível na estreita via do writ" (AgRg no HC 618.828/RJ, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 15/3/21).
Como visto a teoria do crime continuado não será aplicada quando for constatada a habitualidade delitiva, ainda que a infração penal processada não tiver relação com os outros delitos praticados pelo agente. Ademais, como se trata de um benefício extrínseco criado pelo legislador para, por política criminal, aplicar, adequadamente, uma pena que seja suficiente para a reprovação e prevenção do crime, a punição por um só delito dependerá de estar comprovado que os delitos subsequentes fazem parte da elaboração mental do infrator.
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decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.
AgRg no HC 790.606/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 24/4/23, DJe de 28/4/23.
AgRg no HC 822.158/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 26/6/23, DJe de 29/6/23.
AgRg no HC 831.668/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 8/8/23, DJe de 14/8/23.
AgRg no AREsp 2.266.198/RS, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/6/23, DJe de 16/6/23.
CC 194.951/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 3/8/23, DJe de 8/8/23.
AgRg no HC 791.054/MG, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/3/23, DJe de 23/3/23.
AgRg no HC 757.480/RJ, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 29/5/23, DJe de 1/6/23.
AgRg no HC 784.569/RS, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/6/23, DJe de 30/6/23.
AgRg no HC 740.228/SC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 29/5/23, DJe de 31/5/23.