INTRODUÇÃO
Das tantas mudanças trazidas pela lei 14.382/22 (lei do SERP), uma, em especial, tem passado despercebida pelos grandes debates públicos, inobstante sua aptidão em remodelar drasticamente a dinâmica do Registro de Imóveis brasileiro. Trata-se da inserção do parágrafo segundo no artigo 54 da lei 13.097/15, por meio do qual a validade dos negócios jurídicos imobiliários passa a condicionar-se, a priori, à observância de elementos objetivos dispostos na lei, cingindo a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente ao afamado princípio da concentração.
Segundo a nova disposição legal, para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, bem como para a configuração da boa-fé do terceiro adquirente ou beneficiário de direito real, basta a expedição das certidões fiscais, das certidões de propriedade e ônus reais, e a exibição do comprovante de recolhimento do ITBI, sendo inexigível a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais (art. 54, §2º da lei 13.097/15 c/c art. 1º, §2º da lei 7.433/85).
Ao associar a validade dos negócios jurídicos imobiliários e a caracterização da boa-fé do negociante aos pressupostos elencados no referido artigo 54, a lei 14.382/22 acaba por impor uma necessária reinterpretação das causas de anulabilidade envolvendo bens imóveis, urgindo averiguar a compatibilidade destas com os novos comandos normativos.
Dentre as causas de anulabilidade a serem repensadas, tem destaque a fraude contra credores. Afinal, conquanto a nova redação do artigo 54, §2º da lei 13.097/15 indique a necessidade de se registrar ou averbar na matrícula atos e fatos capazes de conduzir à evicção como pressuposto de oponibilidade ao terceiro de boa-fé, a conceituação tradicional, legal e doutrinária da fraude contra credores dispensa qualquer publicidade pelo Registro de Imóveis para sua caracterização. Posto isto, questiona-se: a lei 14.382/22 revogou a fraude contra credores?
A FRAUDE CONTRA CREDORES
Disposta entre os artigos 158 e 165 do Código Civil, a fraude contra credores tem lugar quando um devedor, ciente de sua insolvência ou potencial insolvência, aliena um de seus bens a um terceiro, ficando impossibilitado de adimplir suas obrigações junto aos seus credores. Eleita pela legislação como defeito do negócio jurídico, acomoda-se ao lado da simulação como vício social - prejudica indivíduos alheios ao contrato celebrado (credores), não havendo qualquer mácula na manifestação de vontade.
Da dicção do Código Civil se extrai que:
Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1 o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2 o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante. (grifos nossos).
Desde suas origens romanísticas, a fraude contra credores requer a presença de, no mínimo, dois elementos para sua configuração, um de ordem objetiva, e outro de ordem subjetiva. Como elemento objetivo, tem-se o eventus damni, o prejuízo ao credor em razão da alienação do bem; como elemento subjetivo, tem-se o consilium fraudis, a ciência do devedor-alienante acerca de seu estado de insolvência e das consequências do ato para os credores.
Como se depreende dos artigos 158 e 159 do Código Civil, a fraude pode decorrer tanto de ato de transmissão gratuito (art. 158, CC), quanto de alienação onerosa (art. 159, CC). Tratando-se de transmissão gratuita, a legislação torna irrelevante analisar qualquer elemento subjetivo presente na alienação. Nos negócios gratuitos, a ciência do devedor-alienante ou do terceiro beneficiário quanto ao estado de insolvência criado, ou agravado, pelo ato de disposição em nada afeta a caracterização da fraude.
Situação diferente decorre dos atos de disposição onerosos. Conforme o texto do artigo 159 do Código Civil, nesses casos, os negócios são anuláveis quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida pelo adquirente. Nesses casos, a legislação passa a exigir um requisito a mais para a caracterização da fraude contra credores, a demonstração da ciência do terceiro contratante (scientia fraudis).
O reconhecimento do instituto deve ser pleiteado em juízo pelo credor prejudicado por meio da conhecida ação pauliana, cumprindo a este comprovar a existência de seu crédito e a insolvência do devedor, criada ou agravada pela alienação. Tratando-se de contrato oneroso, cumpre ainda ao credor demonstrar que o terceiro adquirente tinha ciência da situação econômica do devedor-alienante, pressuposto, como será evidenciado, de difícil comprovação.
Uma vez reconhecida a fraude contra credores por meio da ação pauliana, a transmissão da propriedade é anulada, retornando ao acervo patrimonial do devedor-alienante.
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