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O inadequado uso do critério de julgamento melhor técnica e menor preço em licitações envolvendo concessões

Caso o esforço não esteja presente, como se pode observar na grande maioria dos casos, espera-se uma atuação contundente dos órgãos de controle enfatizando a necessária concretização dos valores isonômicos insculpidos no texto Constitucional.

14/9/2023

Com frequência, os procedimentos de licitação têm adotado, como critério de julgamento em projetos estruturados sob a forma de parcerias público-privadas1, a combinação de dois fatores: a melhor técnica e o menor preço. O primeiro elemento – melhor técnica – é potencialmente subjetivo; o segundo – menor preço – possui uma dose maior de precisão e, portanto, de objetividade. Esta metodologia mista, como assim podemos definir, pois congrega elementos de tipologia distinta, pode ser imprecisa e, por consequência, ensejadora de erros quando utilizada sem atenção ao contexto, de modo que, em termos práticos, é factível que acarrete perda de eficiência durante e, sobretudo, depois da conclusão da licitação.

Em primeiro lugar, cabe recordar que a modalidade técnica e preço figura, de maneira expressa, na lei Federal 8.666/932 e na lei Federal 14.133, de 1º de abril de 2021, a nova lei de licitações3. Sendo assim, à evidência, não existem questionamentos quanto à sua legalidade e, portanto, a priori, admissibilidade. O ponto controverso diz respeito à pretensa universalidade de sua utilização, como se não houvesse situações em que o emprego do critério demonstra ser inconveniente e, mais, manifestamente ilegal.

Podemos extrair, portanto, um primeiro pressuposto: os critérios de julgamento precisam encontrar lastro na realidade, na conjugação de elementos que justifica cada licitação em particular. Embora todos os critérios fixados normativamente sejam, a princípio, possíveis, não são adequados – ou mesmo cabíveis – com magnitude idêntica.

Em projetos estruturados na forma de PPP, as regras para a definição dos parceiros devem ser distintas daquelas normalmente adotadas para a contratação de obras e serviços comuns da Administração. Os mercados não são os mesmos. Logo, em uma PPP, interessa à administração pública, verdadeiramente, a contratação de agente econômico com capacidade de investimentos de longo prazo e experiência na gestão de certos ativos, serviços ou infraestruturas públicas – e não a execução de uma técnica preestabelecida na licitação de modo imperativo.

Na realidade – expandindo o argumento –, o uso desarrazoado do referido critério pode resultar em ilegalidade frontal. Cabe lembrar, o administrador público não exerce competências discricionárias quando as circunstâncias lhe impedem. Como assinalado, motivos objetivos norteiam a escolha de cada modalidade de julgamento,4 de modo que existe uma interrelação entre o plano da teoria – com os princípios administrativos constitucionais – e a esfera dos fatos.

Ocorre que – e temos, aqui, um segundo pressuposto – certos parâmetros podem conduzir a determinados resultados e, portanto, prejudicar a probidade da licitação. Com a postura, desvirtuam-se os critérios de julgamento; na realidade, eles perdem a sua finalidade legal, constituindo-se em mero argumento justificador de fins ou agentes definidos de modo prévio. Ingressa-se no terreno arenoso de potenciais direcionamentos.

Sem embargo, o que as boas práticas nacionais e internacionais consolidaram, no mercado de PPPs, é a necessidade de que os editais de licitação estabeleçam com rigor os indicadores de desempenho e as metas ou níveis de serviço esperados do futuro parceiro privado. Isso deixa em aberto a escolha das especificações de entrada (input specifications), meios, processos e tecnologias, que passam a ser um risco transferido ao concessionário em conjunto com os demais riscos comerciais do projeto. Sendo assim, o Poder Público não enfatiza a fiscalização específica da técnica, tecnologia ou da construção da obra, mas os resultados (output specifications), ou seja, a qualidade do serviço prestado ou posto à disposição do usuário.5

É importante registrar que o Tribunal de Contas de São Paulo tem considerado, em sua jurisprudência, tanto o tema da subjetividade quanto, em específico, o fator da técnica e preço.6 Constata-se certa tendência em ponderar a inviabilidade de adotar o critério de julgamento técnica e preço nas licitações que envolvam a delegação de serviços públicos e de infraestrutura (em sentido amplo).7

No mesmo sentido, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo determinou a anulação de editais de parcerias público-privadas, com o argumento de que o julgamento consoante técnica e preço não seria condizente com o objeto da licitação, uma vez que os referidos serviços não se revestem de caráter eminentemente intelectual.8 Em todos os casos, a Corte registrou sua preocupação com o subjetivismo presente na avaliação de quesitos técnicos.

Portanto, à luz dos entendimentos jurisprudenciais, e da reta interpretação de cada um dos institutos, podemos apontar um terceiro pressuposto: a técnica não pode se converter em “tecnicismo”. Por técnica, entendemos, para os presentes fins, a existência ou a necessidade de um conjunto de métodos sistemáticos e, portanto, ordenados, tendo em vista fins concretos. Tecnicismo, aqui, refere-se à deturpação do conceito apontado, com o uso excessivo de termos ou raciocínios especializados, ou sua aplicação em um contexto bastante específico, desconectado, portanto, da realidade a que deveria corresponder de modo autêntico. O tecnicismo não se insere entre os fins e os meios das formas de licitação.

Com o uso amplificado e, portanto, sem razão, do critério combinado de técnica e preço como parâmetro de julgamento, surgem situações de violação à isonomia, à objetividade do julgamento e à razoabilidade. Ora, para que indicadores de desempenho seriam necessários, se a concessionária restaria limitada por uma metodologia prévia e rigorosamente estabelecida no momento da concorrência? Trata-se de inversão da lógica que deve imperar.

Em regra, os níveis de investimentos e os indicadores dos serviços condicionam a metodologia – e, portanto, a técnica – a ser precificada pelos licitantes. Temos, portanto, um quarto e último pressuposto: a análise da proposta técnica – de forma abstrata e apriorista – não gera eficiência, por si, mas, sim, o estabelecimento de metas e de indicadores de desempenho suficientemente arrojados, bem como, por complemento, um sistema de fiscalização eficiente para o seu cumprimento. Considerada a discussão em seu contexto apropriado, a técnica demonstra-se muito menos relevante do que o resultado.

Diante das considerações, parece, em regra, equivocada a utilização do critério de técnica e preço em processos licitatórios que tenham por objeto um contrato de concessão ou de parceria público-privada. O esforço argumentativo necessário para validar a opção do administrador deve ser altamente robusto e em situações bastante específicas e particulares. Caso o esforço não esteja presente, como se pode observar na grande maioria dos casos, espera-se uma atuação contundente dos órgãos de controle enfatizando a necessária concretização dos valores isonômicos insculpidos no texto Constitucional.

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1 Para efeito deste artigo, adotaremos a expressão parceria público-privada (ou, simplesmente, PPP) de modo abrangente, dado que a literatura internacional prefere a apontada terminologia ao invés do termo concessão, conforme YESCOMBE, E. R. Princípios do project finance. 2 ed. Trad. Augusto Dal Pozzo. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 23-24.

2 A Lei Federal n. 8.666/93 vigorará até o dia 31 de dezembro de 2023, por força do disposto no art.198, II, “a”, da Lei Federal n. 14.133/20, com a redação que lhe foi dada pela Lei Complementar n. 198/23.

3 Conforme artigo 45, §1º, III da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993 e artigo 6º, XXXVIII, ‘c’ da Lei n. 14.133, de 1º de abril de 2021.

4 Como demonstrado na sequência, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, de forma sistemática, tem externado cautelas e ressalvas com relação às contratações que adotam o componente técnico na seleção de licitantes.

5 A racionalidade das PPPs está em exigir resultados adequados e, para tanto, é necessário transferir o risco do projeto para o parceiro privado. Mas, se a licitação “engessar” na partida as especificações de tecnologia ou de todo o projeto, haverá menor espaço para inovação por parte do setor privado, além de maior inflexibilidade contratual, o que pode resultar em discussões futuras de reequilíbrio. Não por acaso, a literatura internacional consagrou as expressões citadas acima, que se referem, de um lado, às especificações de projeto, técnicas, tecnologias, meios e processos para entrega do serviço e, de outro, os resultados objetivamente esperados do parceiro privado. Em licitações comuns, em que o risco do serviço não está transferido, apenas o da obra, é natural que o Poder Público especifique minuciosamente o projeto, dado que será o responsável por sua operação; em PPPs, como o operador é o parceiro privado, faz sentido que ele tenha liberdade para escolher o projeto, técnica ou tecnologia e assumir os respectivos riscos, dado que somente assim ele poderá extrair o máximo de valor da exploração da infraestrutura ao mesmo tempo em que entrega serviço adequado, conforme YESCOMBE, E. R. Princípios do project finance, op. cit., p. 217-218. Cf. THE WORLD BANK GROUP. Avaliação de projetos de PPP. In: _______. Guia de certificação de parcerias público-privadas (PPPs) da APMG. Washington, 2023, p. 15-16. Disponível em: https://ppp-certification.com/sites/www.ppp-certification.com/files/documents/Capi%CC%81tulo%204%20-%20Avaliac%CC%A7a%CC%83o%20de%20Projetos%20de%20PPP.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2023.

6 Ilustra: “Subjetividade nos critérios de avaliação. Procedente. Para este ponto acolho a proposta de procedência feita por SDG, que afirma não especificar, o edital, de modo claro, quais deficiências poderão ensejar a redução da nota atribuída a cada subitem da proposta. Deve, pois, a prefeitura, reanalisar o Anexo II, nos seus itens 1.2, 1.3, 1.4, e 1.5, para reformular os subitens, de modo a deixar claro o que interfere na atribuição/redução de notas, eliminando subjetividade. (Tribunal de Contas de São Paulo, 9023/026/11)”

7 Por exemplo, no processo do Tribunal de Contas de São Paulo n. 014544.989.19-7, em sede de exame prévio, a adoção do critério de julgamento técnica e preço foi considerada como vício insanável, com necessidade de anulação do certame. Neste caso, foi analisado edital de concorrência para contratação de parceria público-privada para serviços de iluminação pública. O Relator, Conselheiro Sidney Estanislau Beraldo, consignou: “Refiro-me à adoção do critério de julgamento por técnica e preço para a contratação de serviços que não se revestem de caráter eminentemente intelectual ou que demandem para sua execução ‘tecnologia nitidamente sofisticada e de domínio restrito’, a teor do artigo 46, caput e §3º, da Lei de Licitações. Na esteira da unânime instrução, considero que os serviços pretendidos pelo certame não se revestem de complexidade ou detêm variações técnicas nas propostas que justifique tal escolha. Em que pese toda a argumentação apresentada pela Administração no sentido de os serviços licitados demandarem a realização de diversos projetos de engenharia que evidenciariam o forte caráter intelectual do objeto licitado, por não se tratar de ‘mera substituição de luminárias’, recordo que esta Corte já pacificou o entendimento de que, ‘se a licitação do tipo ‘melhor técnica’ ou a técnica e preço’ são exclusivas dos serviços predominantemente intelectuais (art. 46, caput, da Lei n.º 8.666/93), a recíproca não é inteiramente verdadeira, porquanto nem todo projeto ou cálculo de engenharia, por exemplo, deve ser contratado mediante forma de disputa que essencialmente estabeleça o confronto entre a qualidade técnica das propostas das licitantes” (Tribunal de Contas de São Paulo, 003322.989.15-3 e outros). Destarte, ainda que algumas das atividades licitadas requeiram a elaboração de projetos de engenharia e a presença de profissionais desta área como responsáveis técnicos, tal situação não se mostra suficiente para justificar o critério de julgamento adotado, na “medida em que o sucesso na execução dos serviços licitados dependerá unicamente do domínio e do adequado emprego de normas técnicas e procedimentos padrão já amplamente disseminados no mercado, não havendo um único elemento a demonstrar que o objeto se utilizará dos serviços de natureza predominantemente intelectual a que se reporta o artigo 46, da Lei de Licitações” (TC-30843/026/078). Ademais, recordo que a jurisprudência desta Casa tem se sedimentado no sentido de ser inaplicável o julgamento de técnica e preço para serviços de iluminação pública, a exemplo do decidido nos autos dos TC001031.989.14-8, TC-003322.989.15-3, TC-003388.989.15-4 e TC003389.989.15-3, TC-013614.989.16-8 e TC-013697.989.16-8, TC009849.989.19-9 e TC-009930.989.19-9.

Assim, considero inaplicável o critério de julgamento adotado, apresentando o certame vício de origem que torna imperiosa sua anulação. 2.3 Em decorrência da inaplicabilidade do julgamento por técnica e preço, prejudicado exame das impugnações que recaem sobre os critérios da análise técnica das propostas e atribuição de pontos (itens “b”, “c” e “d”), já que não constarão de eventual novo instrumento convocatório (Tribunal Pleno – Sessão de Julgamento de 28-08-2019, Relator Conselheiro Sidney Estanislau Beraldo).”

8 Conforme pode ser constatado dos processos n. 020611.989.19-5, 014544.989.19-7, 011157.989.19-5 e 023256.989.19-5, todos do Tribunal de Contas de São Paulo, respectivamente.

Augusto Neves Dal Pozzo
Professor de Direito Administrativo e Fundamentos de Direito Público da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutor e Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos da Infraestrutura (IBEJI). Vice-Presidente da Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção São Paulo. Advogado e Parecerista. Sócio-fundador do Dal Pozzo Advogados.

Renan Marcondes Facchinatto
Mestre e Bacharel em Direito Administrativo pela PUC-SP. Pós-graduado em Direito da Infraestrutura pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da PUC-SP. Membro-Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Sancionador (IDASAN). Membro do IBEJI. Membro do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial (IBDEE). Sócio do escritório Dal Pozzo Advogados. Instrutor Acreditado do Programa de Treinamento Certified Public Private Partnerships Professional - Foundation Level (CP3P-F).

Bruno José Queiroz Ceretta
Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em "Diritto Pubblico" pela Universidade de Roma I "La Sapienza". Mestre em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO-SP. Membro da Comissão Permanente de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Membro da Comissão de Infraestrutura, Logística e Desenvolvimento Sustentável da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado no Dal Pozzo Advogados.

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