Que tal conversarmos sobre base do funcionalismo público e as questões remuneratórias do serviço público do nosso ordenamento jurídico?
Para início de conversa é impossível pensar em uma sociedade evoluída sem que haja legítima cidadania e serviços públicos de qualidade. E, para que tenhamos este último é indispensável que haja factual valorização, tanto econômica, social e estrutural a esses servidores.
Abramos a mente por um minuto e paremos de repetir que todo servidor público “mama” nas tetas do Estado ou que são todos “vagabundos”. Evidente que com mais frequência do que gostaríamos sabemos de profissionais públicos que envergonham a classe. Mas é preciso lembrar que a maçã podre está em todo cesto. Logo, profissional ruim tem tanto no funcionalismo público quanto na iniciativa privada.
Algo que, sem dúvida, impede ou desmotiva uma melhor entrega no serviço público é falta de estrutura e a má remuneração. Entenda: somente poucos cargos e servidores tem bons salários (alto escalão). A grande massa do funcionalismo público enfrenta uma dolorida contradição: baixo salário e grande responsabilidade.
Veja o professor, o policial, o técnico em enfermagem, o gari. Já pensou não termos a entrega do serviço desses profissionais? O buraco social que seria? Então, porque é tão difícil entender, aceitar e implementar políticas administrativas e legais voltadas à valorização da base do funcionalismo público?
Aqui é preciso dar um passo para trás e entender como é o sistema de remuneração do serviço público. Com o advento da EC 19/98 adotou-se como sistema remuneratório para o serviço público no Brasil o regime de subsídio e o teto remuneratório. Em 2003, a EC 41 introduziu na CF, entre outros assuntos, novas alterações sobre remuneração e os seus subtetos para cada ordem política.
Desse modo, passaram a coexistir para os servidores públicos duas modalidades remuneratórias: a remuneração (parcela fixa + variável) e o subsídio (parcela única). Aquela corresponde ao salário (parcela fixa definida em lei) somada a parcela que tem por variação questões como qualificação do servidor, tempo de serviço, horário diferenciado etc. O último é retribuição mensal do servidor por parcela única (art. 39, §4, CF/88) que passou a ser atribuída a certos cargos da estrutura estatal. O principal objetivo do constituinte reformador em relação ao subsídio foi tornar mais visível e controlável a retribuição de certos cargos, evitando os aumentos descontrolados nascidos da criação de parcelas variáveis sem qualquer critério.
Contudo, a própria constituição, excetuando a regra, expressamente permite os seguintes acréscimos ao regime de subsídio: a) verbas de natureza indenizatórias e b) verbas decorrentes de garantias constitucionais (garantias próprias dos trabalhadores – art. 39, §3º CF/88 – 13º salário, 1/3 de férias etc.).
Talvez pela ganância, infelizmente, vê-se que a administração pública brasileira tem uma clara desordem na aplicação dessas regras constitucionais, criando situações em que se tem o rótulo de legalidade, mas o seu conteúdo revela verdadeira simulação ou fraude. Vou exemplificar com dois casos:
- IUVP – indenização por utilização de veículo próprio sem a efetiva comprovação do gasto respectivo em atividade relacionadas às atribuições específicas do cargo (conhecido carinhosamente como “vale volta ao mundo” já que para gastar quase R$ 6.000,00 de combustível no exercício da função, o beneficiário teria que dar uma voltinha ao mundo). O TCE/SC, na decisão 468/23¹ já adiantou que a indenização deve contar com a comprovação do efetivo gasto, mas, que por conta da celeuma (leia-se: mexer no bolso de “gente grande”), irá postergar a adoção de eventuais medidas corretivas para depois do julgamento da ADI 7.258², em que se tem pedido liminar (análise pendente) formulado pelo Procurador Geral da República para que o STF suspenda esses pagamentos imediatamente;
- Lei que disciplina o pagamento de verbas indenizatórias a agentes públicos estaduais em que se previa uma certa cambialidade na classificação da natureza jurídica da verba, ou seja, até um certo montante a verba era remuneratória, depois desse patamar, seria indenizatória. Isso tudo sem qualquer respaldo legal. Só porque alguém entendeu que dar nome diferente a algo ilegal, o tornaria lícito. Nesse bizarro caso, o STF já concedeu liminar na ADI 7402 suspendendo essas ditas leis estaduais e essa esdrúxula forma de pagamento³.
Aí sabe o que acontece nesse cenário? A elite do funcionalismo público engole todo o orçamento previsto para aquela instituição/classe e a base do serviço público fica completamente esvaziada. Parece com o ditado popular “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
Não se está aqui a dizer que determinados cargos não mereçam ser bem remunerados. Devem! É compatível com a responsabilidade e conhecimento do cargo. Contudo, isso não significa que a base, tão importante para o bom funcionamento de qualquer estrutura, seja desrespeitada em sua valorização e espaço.
Sabe o prédio lindo que você vê construído? É indiscutível que o engenheiro e o arquiteto são responsáveis por aquilo. Mas o que seria desse prédio sem os pedreiros, eletricistas e encanadores bem qualificados para levantar essa estrutura? E qual a dúvida sobre quem foi imensamente mais bem remunerado?
Entendeu a lógica? A base é o bruto. É a porta de entrada. É o primeiro enfrentamento. É a primeira acolhida. Merece e DEVE ser igualmente bem valorizado e bem remunerado.
A discussão é ampla e por isso vou me referir só ao básico: Art. 37, X, CF/88 – direito de revisão da remuneração dos agentes públicos de forma geral, anual, na mesma data e sem distinção de índice. Perceba que nem se está falando de aumento real. É mera reposição inflacionária. Contudo, nem isso a base do funcionalismo público tem visto respeitado.
A mencionada previsão constitucional configura autêntico direito subjetivo do servidor, ou seja, direito efetivamente garantido ao indivíduo por lei. Aí você pode me perguntar: Ok, Alci, e onde está a treta? A controvérsia começa com a vontade do administrador (ou melhor, com a falta dela).
Ainda que diante de garantia constitucional, ele se omite, posterga e despreza a necessidade de implementar a observância do dito direito subjetivo do servidor.
Essa falta de vontade ficou tão absurda que várias ações foram ajuizadas no STF para discutir o dever de se encaminhar (ou não) projeto de lei específico que objetivasse definir a questão da revisão geral dos servidores públicos. Hoje, em suma, temos as seguintes definições prolatadas pela Suprema Corte:
- RE 565.089/SP – Tema 00194: O não encaminhamento de projeto de lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos, previsto no inciso X do art. 37 da CF/88, não gera direito subjetivo a indenização. Deve o poder executivo, no entanto, pronunciar-se de forma fundamentada acerca das razões pelas quais não propôs a revisão;
- RE 905.357/RR – Tema 08645: A revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos depende, cumulativamente, de dotação na lei orçamentária anual e de previsão na lei de diretrizes orçamentárias;
- RE 843.112/SP – Tema 06246 - O Poder Judiciário não possui competência para determinar ao Poder Executivo a apresentação de projeto de lei que vise a promover a revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos, tampouco para fixar o respectivo índice de correção.
O que temos em comum em todas essas decisões? Para que o comando constitucional seja atendido é preciso da vontade do senhor da iniciativa (o “rei” da instituição). Em outras palavras: apesar de ser um direito subjetivo, a lei que regulamente a revisão geral anual só terá aplicabilidade se observados os requisitos delineados pelo STF e conforme o desejo do administrador.
Quando o administrador não tem o interesse em atender o comando constitucional (ainda que todos os outros requisitos estejam observados) resta ao servidor, além de chorar e se deprimir com a realidade da desvalorização e falta de estrutura e apoio de sua instituição, lançar mão de ações judiciais que visem dar efetividade a um direito constitucionalmente previsto, como, por exemplo, a ADI por omissão7.
Na ADI 2.061/DF e nos Embargos Declaratórios do RE 565.089/SP ficou delineado o que pode ser feito pela classe prejudicada em caso de descumprimento arbitrário do poder respectivo. Em suma é o seguinte: a falta de lei específica para definir revisão geral para os servidores públicos pode ensejar inconstitucionalidade por omissão.
A norma prevista no art. 37, X, da CF/88 impõe ao administrador o dever de se pronunciar, anualmente e de forma fundamentada, sobre a conveniência e possibilidade de reajuste ao funcionalismo. Disse o STF que não lhe cabe impor sanção não prevista em lei ou na constituição, no caso de o administrador desrespeitar aquela regra, contudo, a consequência jurídica é a possibilidade de propositura de ação judicial para fazê-lo cumprir o dever de fundamentação.
Ou seja, só resta à classe de base que tem seu direito procrastinado, brigar. Atitude que ao invés de fortalecer qualquer laço institucional, o destrói. O embate desnecessário em qualquer relação gera rachaduras que dificilmente serão restauradas. Uma estrutura que poderia ser vigorosa com a valorização de seus integrantes, acaba adoentada, e, por reflexo, debilita a entrega do serviço para a própria sociedade.
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1 Chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://consulta.tce.sc.gov.br/RelatoriosDecisao/ConsultaDecisao/1900255496_149009.pdf
2 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6501701
3 chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360696449&ext=.pdf
4 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=19
5 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=864
6 https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=624
7 Nesse sentido: cita-se, a título de exemplo, as ADI 2.497, 2.061, 2.504.